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Senado aprova o Projeto de Lei que suspende despejos na pandemia, mas exclui população do campo

O PL 827/2020 foi aprovado no Senado com destaques que excluem a população do campo de se beneficiar da medida, e atrasa a possibilidade de sua sanção
Durante protesto pela aprovação de suspensão temporária dos despejos em frente a Alepe, Pernambuco. Foto: Sérgio Maranhão/Acervo MST-PE, junho de 2021

Por Lays Furtado
Da Página do MST

Nesta quarta-feira (23/6), o Projeto de Lei 827/2020 foi votado e aprovado por 38 votos contra 36 votos no Senado, após votação acirrada. O PL que suspende despejos até o fim de 2021, devido à pandemia da Covid-19, agora retorna à Câmara dos(as) Deputados(as) para que seja apreciado novamente, após o acréscimo dos destaques de emendas que alteram a proposta inicial. E retiram a apreciação da medida de suspenção temporária dos despejos em propriedades rurais.

Com a mudança da emenda, foi excluído a suspensão de despejos em propriedades rurais e se manteve a paralisação temporária de despejos em zonas urbanas. A proposta da emenda foi apresentada pelo Senador Luis Carlos Heinze, do Partido Progressista (PP/RS), e defendida pela bancada ruralista.

A votação polêmica acendeu um debate acalorado durante a audiência, que dividiu a opinião da maior parte dos(as) parlamentares, entre votos contra e a favor do PL 827. Por essa razão, a maior parte das lideranças de bancadas dos partidos do Senado justificaram a liberação da orientação dos votos.

Por 43 votos a favor, contra 27 a alteração do texto com a emenda foi feita entre senadores(as). O autor do destaque alegou que os efeitos da pandemia, em especial a diminuição da renda, concentraram-se no meio urbano, ao contrário do meio rural, onde a atividade produtiva teve que continuar operando com mais capacidade para atender a demanda e evitar o desabastecimento.

Apesar da argumentação defendida pela proposta de emenda feita pela bancada ruralista, de manter os despejos em ocupações do campo. É justamente nas zonas rurais, que sem auxílio para os/as pequenos(as) produtores(as) e o desmonte de políticas para trabalhadores(as) do campo, a falta de subsídios, de renda, fome e insegurança alimentar são mais graves, apontam estudos.

O PL 827/2020 prevê a suspensão de medidas judiciais, extrajudiciais e administrativas de desocupação e remoção forçada para aluguéis residenciais de até R$ 600 mensais e não residenciais de até R$ 1,2 mil, quando o locatário demonstrar incapacidade para cumprir o pagamento em decorrência da pandemia. E originalmente, incluía também a suspensão de despejos em propriedades rurais.

A medida se aplica em casos de ocupações existentes antes do marco temporal de 20 de março de 2020; quando foi decretado no país o estado de calamidade sanitária por conta da pandemia da Covid-19. Se for sancionada, a medida é válida até 31 de dezembro de 2021, e com o destaque da emenda, contempla somente a paralisação de despejos de ocupações já existentes antes do início da pandemia em imóveis urbanos.

O relator Jean Paul Prates (PT/RN) afirmou que mesmo antes de ser decretada a crise sanitária desencadeada pela Covid-19, já havia um déficit habitacional com quase 8 milhões de famílias sem casa ou moradia adequada; das quais 93% apresentaram rendimentos de até 3 salários mínimos, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2015).

E que o impacto da pandemia na atividade econômica e no aumento do desemprego, sobretudo entre as famílias mais pobres, têm contribuído para agravar ainda mais o problema habitacional no Brasil. De acordo com dados da Campanha Nacional Despejo Zero, mais de 14 mil famílias foram despejadas durante a pandemia e existem mais de 84 mil ameaçadas de desapropriação em todo o país.

Despejo zero e subsídios à ocupação de trabalhadores(as) no campo é tão necessário quanto nas cidades

É no campo onde se produz alimentos, mas a falta de acesso à terra e subsídios para famílias agricultoras refletem nos índices de insegurança alimentar presentes no Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil; que aponta que a fome atinge 12% dos domicílios rurais, enquanto afeta 8,5% dos lares urbanos. Outro levantamento feito pela Universidade Federal de Minas Gerais em conjunto com Universidade de Brasília e Universidade Livre de Berlim, alerta que este índice pode ser ainda mais grave, com 27% das famílias do campo passando fome.

Mesmo em ano de safra recorde, em 2020 o setor ruralista do agronegócio deixou de empregar 949 mil trabalhadores(as), de acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP. Já este ano, durante o primeiro trimestre de 2021, a diminuição de população ocupada (PO) no agronegócio foi de 3,1% (equivalente a 551 mil pessoas) frente ao mesmo período do ano passado.

Ocupação da Cutrale. Foto: Fabetz/Acervo MST-SP, 2011

Entre os primeiros trimestres de 2021 e de 2020, destacam-se as reduções observadas na agroindústria e nos agrosserviços, de aproximadamente 9% em cada segmento. Segundo pesquisadores(as) do Cepea, a diminuição nos números da população ocupada no agronegócio no primeiro trimestre deste ano frente ao mesmo período de 2020, em partes, ainda é reflexo da intensa redução dos empregos observada entre abril e junho de 2020, devido, sobretudo, à pandemia da covid-19 e seus desdobramentos.

A pesquisa também revelou que os grupos mais impactados pela diminuição da ocupação foram os  economicamente e socialmente mais vulneráveis, como empregados(as) sem carteira assinada (-13,4% ou menos 427 mil pessoas), pessoas com menor instrução formal (-15,6% ou menos 137 mil pessoas), e mulheres (-6% ou menos 343 mil).

O aumento do desemprego ultrapassou a margem de 14 milhões da população e a falta de opções de renda levou mais de 60 milhões à pobreza e quase 20 milhões a viverem em situação de miséria. Um estudo feito pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP), apresentado este ano, evidencia alguns dados importantes para entender o recorte de gênero e raça das desigualdades por regiões, que se agravaram após a crise sanitária no país.

Tramitação do PL 827 e liminar no STF

O Projeto de Lei 827/2020, que propõe a suspensão dos despejos durante a pandemia, nasceu na Câmara dos(as) Deputados(as) logo no início da pandemia. Proposto por um conjunto de parlamentares, liderados, principalmente, pela deputada Natália Bonavides, do Partido dos(as) Trabalhadores(as) (PT).

“Mas mesmo após ser protocolado, este PL foi ignorado por muito tempo na Câmara”, conta Kelli Mafort, da Direção Nacional do MST. Por outro lado, durante este tempo, houve uma votação no Supremo Tribunal Federal (STF), de um pedido de excepcionalidade ao que tange a medida de suspensão temporária dos despejos.

O pedido de excepcionalidade, instrumento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 828), foi protocolado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e deferido pelo ministro do STF, Luís Roberto Barroso. Com o intuito de: “evitar que remoções e desocupações coletivas violem os direitos à moradia, à vida e à saúde das populações envolvidas”, declarou na ocasião o ministro.

Trabalhadores/as do MST cobram o direito de lutar pela Reforma Agrária e a manutenção nas ocupações de terras durante à pandemia. Foto: Wellington Lenon/Acervo MST, 2017.

A medida é válida pelo prazo de seis meses, contados a partir da decisão, tomado no último dia 6 de junho, “sendo possível cogitar sua extensão caso a situação de crise sanitária perdure”, destacou o ministro. Como “amicus curiae” do processo, interessados(as) que apresentam potenciais impactos as decisões judiciais; além do PSOL, se encontram também um conjunto de 40 organizações e movimentos populares que reivindicam o direito à moradia e compõem a Campanha Despejo Zero, que defendem a urgência da aprovação do PL.

Apesar da medida do STF surtir efeito positivo como orientação jurídica que orienta a suspensão de despejos temporariamente. Por outro lado, “ela suscitou por parte do governo e da base governista no Congresso Nacional, várias declarações de ataque a essas suspensões dos despejos”, conta Kelli Mafort.

Latifúndio acima da vida na pandemia

Neste cenário, o próprio presidente Bolsonaro orientou sua base governista a votar contra o PL, destacando que seu conteúdo dana o direito à propriedade privada no Brasil. “E com isso, esse clima de politização em torno da defesa da propriedade privada acima da vida, ela influenciou a votação do PL, que já tinha sido aprovado na Câmara e agora estava sob apreciação do Senado”, afirma Kelli.

Para as organizações que defendem o PL ficou evidente na votação da última quarta-feira (23), a manobra da bancada ruralista apresentada pela emenda do senador Heinze do PP, de retirar do texto original a garantia do direito de suspensão temporária de despejos no campo. “No Senado o tema do rural acabou revelando todo o caráter ideológico, na própria fala da senadora Kátia Abreu, ela deixa isso evidente”, analisou Kelli Mafort.

Durante a audiência, a senadora Kátia Abreu, do Partido Progressista (PP/TO), disse que é a favor da suspensão dos despejos para quem paga aluguel, há exemplo de se solidarizar com as famílias empobrecidas durante a pandemia nas cidades e que tiverem a suspensão do auxílio emergencial, mas para o âmbito rural não. “Então, enfim, os interesses do agronegócio, ruralistas e da mineração falaram mais alto na votação no Senado”, declara Kelli.

Ação despejou mais de 250 famílias Sem Terra, em Amaraji/PE. Foto: Juntas (Psol)/Acervo MST-PE, 2021.

Benedito R. Barbosa, coordenador da Central de Movimentos Populares da Capital, da articulação nacional da Campanha Despejo Zero, concorda com Kelli. Ele chamou a manobra de um duro golpe. Benedito, também conhecido como Dito, também é advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da União dos Movimentos Moradia de São Paulo (UMM-SP).

Segundo ele, para quem acompanhou o debate acalorado entre senadores(as) da casa, ficou evidente a ideologização do Projeto de Lei e o peso do latifúndio no Senado. “Quem manda no senado são os ruralistas, o latifúndio. Isso ficou muito caracterizado no debate entre os Senadores”. E defendeu que o projeto não se trata de retirar o direito de propriedade e sim de Direitos Humanos, por uma moratória temporária neste período tão difícil de pandemia.

Ou seja, apesar da aprovação do PL no Senado, “Eles ideologizaram o projeto em relação a esse tema do conflito da terra, entre a questão do direito de propriedade e a questão da suspensão de despejo neste período. Quando a gente está tratando de temas de direitos humanos e temas humanitários”, aponta Benedito. E conta que após a votação, as organizações que compõem a mobilização da campanha Despejo Zero voltam a se reunir para avaliarem e redefinirem suas articulações, a fim de se posicionar frente a essas novas emendas e atrasos, que recaem sobre o PL em questão.

Dessa forma, as representações das organizações que compõem a campanha apontam que as emendas impostas no Senado não somente excluem a população do campo de serem beneficiadas pela possível sanção da Lei. Mas também mantém o interesse de atrasar sua aprovação, para que a mesma tenha menos chances de ser sancionada e atender o apelo que a faz urgente, em meio a crise sanitária e econômica em que vive o país, onde mais de meio milhão de pessoas já morrem, só de Covid-19.

*Editado por Solange Engelmann