Centenário Paulo Freire

Conhecendo Paulo Freire: Lisete Arelaro reflete sobre vida e legado do pensador

Em entrevista exclusiva à página do Movimento Sem Terra, a professora fala com carinho do pensador e relembra histórias sobre Paulo Freire
Professora Lisete Arelaro fez parte da equipe de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, entre 1989 e 1992. Foto: Reprodução/FE-USP
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Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

Pensar sobre a educação popular no Brasil implica, necessariamente, entender o legado de Paulo Freire e como seus escritos guiaram diversos pensadores na luta por uma educação igualitária. Neste sentido, nas preparações do centenário do pensador, um dos nomes que não poderiam ficar de fora desta comemoração é o da professora Lisete Arelaro, pedagoga e doutora em educação, que fez parte da equipe de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, entre 1989 e 1992.

Assim como Paulo Freire, o trabalho da professora Lisete Arelaro tem como norte pensar uma prática educativa que considere o educando. Nesta entrevista exclusiva, ela reflete sobre a convivência pessoal, o legado e os ensinamentos que ficaram na memória e na história junto à Paulo Freire.

Atualmente, Lisete Arelaro é professora titular sênior da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), atuando há pelo menos cinco décadas na vida acadêmica, responsabilidade que assumiu e desempenhou de forma comprometida com sua história de luta pelo direito da população a uma educação pública de qualidade e na redução da desigualdade social.

Paulo Freire, educação emancipadora e método

A professora Lisete Arelaro não só trabalhou com Freire: ela compartilhou a amizade que traz elementos de sua vida acadêmica, luta social e atuação política. Com uma trajetória plural em diversos níveis da educação brasileira, a professora teve os primeiros contatos com a obra de Freire no início dos anos 60.

“Eu era estudante secundarista e nós tínhamos um compromisso, da mesma forma que UNE [União Nacional dos Estudantes], de dar aulas de alfabetização para que pudéssemos ter um novo homem e uma nova mulher e, obviamente, uma nova sociedade. Nessa época, chegavam para nós alguns materiais do Paulo Freire, dávamos aula achando que estávamos sendo “super freireanos”, mas nós não tínhamos nenhum material concreto. Quer dizer, nós só vamos ter conhecimento [dos livros] nos anos 70, na prática, nós tínhamos xerox“, lembra a professora.

Estes materiais eram a base do que esses grupos interpretavam como o método Paulo Freire, e assim, criavam centros de cultura com estas experiências, em geral com parceria de grupos mais progressistas. “Na prática, entretanto, era um pouco exagerado dizer que era um método Paulo Freire, mas de todo jeito, a gente tinha certeza que nós estávamos mudando o Brasil e o mundo. A gente usava figuras, gravações, ou slides, na maioria das vezes eram feitos até em caixas de sapato, da forma mais simples que se possa imaginar”.

Arelaro conheceu Paulo Freire depois da lei de Anistia, quando ele voltou ao Brasil, em um grande encontro no Tuca, teatro da PUC [Pontifícia Universidade Católica] de São Paulo. “A partir daí mantemos um contato razoavelmente regular, até porque o momento também é histórico, precisávamos e contávamos sempre com Paulo Freire nessas reuniões de resistência à ditadura nos anos 80.

Lisete Arelaro e Paulo Freire trabalharam juntos em defesa da escola pública. Foto: Reprodução/FE-USP

Nesta época, um momento particularmente rico do país em sua visão, havia diferentes grupos políticos propondo realmente reformas. “Uma grande preocupação de Paulo Freire era o uso de toda tecnologia que você tivesse disponível para uma experiência educativa que levasse realmente um processo de reflexão do jovem e do adulto, que eram nossos alunos. Essa não é uma discussão qualquer porque, em geral, o aluno pobre ou operário nunca é perguntado sobre o que ele acha sobre as coisas. Ele nunca é um sujeito, e portanto, ele é alguém que cumpre ordens. Até para apagar a luz, significa que isso dava um pouco coragem de eles começarem a falar.”

Esta análise, a professora traz consigo de forma geral. “Até hoje o nosso ensino, quantas vezes de fato nós professores e professoras paramos para dar tempo dos alunos e alunas manifestarem o que elas pensam? Sentar em círculo e não em carteiras uma atrás da outra, por exemplo. O Paulo Freire costumava brincar que é muito melhor olhar na face do outro do que olhar a nuca de um dos colegas, um atrás do outro. Era uma questão que nos emocionava como estudante, isso nos pegou, não foi à toa que tiveram mais de 10 mil salas de aula sob a responsabilidade nossa. E quando você não sabia o que fazer, você improvisava, tudo em nome do Paulo Freire.”

Quando a gente pega a teoria de Paulo Freire é um pouco admitir que, e ele tem uma frase sempre muito muito bonita, “ninguém luta por aquilo que não entende”. Essa é uma questão que teríamos que ter mais paciência histórica para entender, que o processo de conscientização, como ele sempre enfatizou, é um processo coletivo.”

Segundo a professora, Freire insistia que é a práxis que vai gerar a necessidade de uma nova teoria, e nesse sentido, a educação passa a ser transformadora exatamente porque segue esse processo de caminharmos de uma visão ingênua para uma visão crítica. E para ele, é a visão crítica que nos permite a possibilidade de optarmos por uma transformação social.

Paulo Freire muitas vezes insistia: ‘olha, a liberdade e não é uma coisa simples, e não é uma coisa fácil’. Porque é uma opção que você faz todos os dias. Você e o coletivo onde você atua.

” Tive esse privilégio histórico de ter o Paulo Freire exatamente bem pertinho de mim”, conta Lisete. Foto: Reprodução/FE-USP

Sobre o convívio com Freire, a professora ressalta com carinho a figura carismática do pensador. “Ele era um homem do século 21 no século 20. Ele costumava brincar “Você gostou? Acredita em mim? Re-signifique! Quer dizer, faça diferente, traduza para o momento atual aquilo que você achou interessante que a gente estava fazendo”. Ao mesmo tempo em que provocava, Freire também estendia a sua ajuda. “Do ponto de vista concreto, ele era um homem extremamente gentil, sempre de bom humor, extremamente atencioso, era um homem realmente do diálogo e um homem acima de tudo que gostava de ouvir. Tinha uma paciência infinita para vários assuntos, até os que nem precisavam de tanta atenção.”

Paulo Freire na Prefeitura de São Paulo

Seguindo em seu relato, Arelaro fala da preocupação com a educação pública e, em 1988, com a vitória de Luíza Erundina à Prefeitura de São Paulo, a professora é convidada por Paulo Freire para incorporar a equipe. “Daí para frente eu diria que nunca mais a gente se separou. Tive esse privilégio histórico de ter o Paulo Freire exatamente bem pertinho de mim.”

Á frente da Secretaria, Freire realizou diversas modificações. “Nós chegamos com uma proposta de reformular a estrutura da Secretaria de Educação, que historicamente, aliás a prefeitura inteira, tinha estrutura extremamente hierarquizada. Lembrando que a gente assumiu o governo pós-Jânio Quadros, e o Jânio Quadros, um homem extremamente polêmico, tinha na Secretaria de Educação o quadro mais à direita de todo o seu governo”. E continua: “Só para se ter uma ideia, nós encontramos escolas que estavam inauguradas sem estarem construídas, com 600 alunos matriculados, por exemplo; escolas que estavam sem nenhum material dentro, que tinham sido inauguradas; escola que estava com suas paredes de fora erguidas, mas não tinha nenhuma divisão interna, nem de banheiros, nem de cozinha, nem nada.”

As expectativas desta gestão eras grandes, principalmente porque era o primeiro partido de esquerda que assumia a prefeitura de São Paulo. “Ainda mais uma mulher, nordestina, assistente social, que gostava de pobre, e solteira ainda por cima. A Luiza encontrou em todas as secretarias situações de fazer chorar. Mas isso não nos abatia, nem ao Paulo Freire. Então era um pouco isso, o que a gente estava esperando? Que eles fossem deixar tudo bonitinho para a gente governar direito? Não! Era o pior [cenário] possível, e no pior possível a gente deu a volta por cima e fizemos um bom governo, considerados hoje, em uma avaliação não necessariamente nossa, o melhor governo que a cidade de São Paulo já teve.”

A professora também se recorda do quanto Paulo Freire adorava visitar a escola. “Ele era muito espertinho, porque pegava e deixava toda a parte da burocracia conosco e caía fora, ia para as escolas quase todos os dias e gostava mesmo de conversar com as crianças, e saber das coisas, sentava e comia com eles”. Assim, o pensador também exercia o que Arelaro chama de gestão democrática.

“A gestão democrática que nós estamos falando não é só na criação de conselhos, mas é com cada professor, em cada sala de aula, com a sua turma; é ali que realmente a criança, o jovem, ou o adulto, aprendem exatamente o que é ser democrático, o que é direito à divergência, o direito e fundamentar suas opiniões. É o direito de poder divergir e não necessariamente romper e é o espaço ideal para você enfrentar a chamada “educação bancária”.

Professora Lisete na sala de aula; ela comenta sobre a visão de coletividade e liderança de Paulo Freire. Foto: Reprodução/FE-USP

Segundo ela, esse grande empenho do Paulo Freire. “Quando ele entrou na Secretaria tinha um compromisso, que ele cumpriu até o final, como um homem coerente que era: nada seria publicado no Diário Oficial, que é a linguagem da burocracia, da institucionalidade, nada era publicado que não tivesse sido discutido antes com os envolvidos daquelas decisões. E foi isso que aconteceu nos quase três anos da sua permanência na Secretaria de Educação.”

Deste período, Arelaro ressalta ainda a mudança promovida por Paulo Freire da Educação de Jovens e Adultos para a pasta da Educação (antes na Secretaria de Bem Estar Social), mas também a sua visão de coletividade e liderança.

“Paulo Freire sempre teve uma preocupação: o mundo não começa no dia em que eu assumo uma a função de liderança; o mundo já está vindo, ele é resistente, ele tem equívocos, ele foi, voltou, já decidiu. Por isso, é fundamental que eu conheça a história da comunidade.”

“Assim, Paulo Freire publicou, na concordância da Luíza Erundina, no primeiro de janeiro de 1989, no Diário Oficial, as duas coisas importantes na educação. Primeiro, tinham sido elaboradas no governo anterior propostas curriculares às quais Jânio Quadros havia mandado queimar, ou seja, anular toda a produção que havia sido feita junto à comunidade. Paulo Freire recuperou elas e também o regimento comum das escolas, uma vez que ali haviam sido produzidos por discussões com professores e professoras e existiam algumas propostas que avançavam na direção de criar coletivos mais horizontais dentro das escolas.”

Outro destaque para Arelaro é a mudança na educação de jovens e adultos. “Logo que chega na Secretaria de Educação, Freire já sabia que existia um programa mais tradicional de Educação de Jovens e Adultos, conhecido como EDA, mas ele criou o Mova [Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos da Cidade de São Paulo], exatamente tentando buscar aqueles que não seriam incorporados pelos programas institucionais. É importante lembrar aqui que uma grande conquista de dignidade às pessoas, e formando supervisores populares para acompanhar a experiência”.

Então esse era o Paulo Freire: coletivo, sempre. Ele não tinha nenhum problema em admitir, às vezes, que ele não tinha razão como ele tinha pensado no início, provando que é da discussão coletiva que realmente alternativas melhores podem aparecer.

Conjuntura da Educação no Brasil e esperançar

Para a professora Arelaro, Paulo Freire, se vivo estivesse, estaria na linha de frente da educação inclusiva, pensando em como os professores, professoras e as próprias direções de escola podem procurar e conhecer diante da pandemia.

Segundo a professora, o enfrentamento em relação ao pensamento de Paulo Freire na conjuntura do governo Bolsonaro “é uma disputa política” e “ideológica, que não é pequena”. Foto: Reprodução/FE-USP

“Essa é uma questão que eu acho que marca Paulo Freire na sua atualidade, que Paulo Freire sempre defendeu, ardorosamente, que cada escola tem o direito de elaborar o seu projeto político pedagógico. Ele era contra qualquer material impresso; tanto assim que mesmo que o método dele, aquela proposta dele tenha sido mantida como método Paulo Freire, ele não gostava que se identificasse assim porque método e modelo, para copiar e fazer igual, e se é uma coisa que ele nunca quis era isso.”

Sobre a Base curricular nacional, a professora é enfática no que diz respeito à disputa que acontece hoje no Brasil sobre o processo de unificação e uniformização dos currículos e do mérito sobre o índice da aprendizagem dos alunos. Segundo ela, quem acompanha o tema sabe o equívoco que é essas teses representam, e o mal ou retrocesso que isso pode trazer para a educação. “Hoje, para uma chamada Base Nacional Comum Curricular, conhecida na praça como BNCC, a situação vem piorando enormemente. E do governo Temer pra cá a situação vem se acelerando, lembrando que as pessoas que propuseram, por exemplo, a reforma do ensino médio, todas elas são de direita, e todas pretendem a desqualificação do ensino para a maioria da população brasileira, especificamente para a população população pobre.”

Neste sentido, o processo de uniformização não tem a ver com o que se entende como “qualidade do ensino”, mas com a possibilidade de fazer das redes públicas um espaço privilegiado de venda de materiais. “E isso só é possível se você for uniformizando, porque se cada um tiver um sistema, não tem graça nenhuma, porque ninguém vai conseguir dar conta, e portanto os lucros não serão significativos.”

É por isso, e não por acaso, que o Bolsonaro já dizia antes de ser eleito que tem que ser contra o Paulo Freire. Primeiro, porque ele falou uma verdade que a direita, a extrema direita e os fascistas, não gostam de admitir que é a educação é um ato político. Dar este ou aquele conteúdo é achar que eles serão mais ou menos significativos para o grupo; o conteúdo será escolhido também em função da visão de mundo que se tem, e portanto, o enfrentamento que Paulo Freire é uma disputa política, uma disputa ideológica, que não é pequena.

Diante desta conjuntura, Arelaro ainda traz uma mensagem de esperança, uma vez que “propor o Paulo Freire é resistir. É uma coisa que nos anima, algo que nos leva para frente na luta”. E conclui. “Ainda é muito comum encontrar a famosa frase de Paulo Freire por aí que ‘o mundo não é. O mundo está sendo’. Eu acho que essa é a proposta de esperança de Paulo Freire, nos lembrar que o que estamos vivendo hoje não é permanente. Ninguém tem destino, nós construímos o nosso destino. E como ele está sendo, pode ser diferente. Estamos coletivamente contribuindo para que ele seja diferente, seja cada dia melhor, mais justo, menos desigual, e obviamente, mais solidário.”

Veja a entrevista completa abaixo:

*Editado por Solange Engelmann