Resistência

Jovem preta, LGBT e Quilombola: conheça a história de Débora Gomes Lima

Perfil de jovem quilombola mostra história, cultura e resistência
Débora é uma das lideranças jovens da comunidade. Arte: Gustavo Palermo

Por Geanini Hackbardt
Da Página do MST

“Eu era mulher preta, no meio de um monte de cara branco. Então fui desacreditada”. Assim Débora Gomes Lima descreve a experiência hostil que vivenciou na universidade, quando cursava Química. Mulher preta, LGBT e Quilombola, a jovem de 24 anos, de Aragominas-TO, se deparou com inúmeras formas de opressão ao buscar a formação acadêmica fora da comunidade onde nasceu.

Os ancestrais do Quilombo Pé do Morro foram guiados pela matriarca Antônia Barros nos 50, para uma terra distante, para onde levaram suas rezas, benditos, romarias, penitências, garrafadas e outros conhecimentos medicinais. Dona Antônia de Barros, chamada de “Velha” por todos, recebeu a terra em “visão”. A moça conta que lá não tinha ninguém, era mata fechada, não tinha picada de facão. E Velha dizia sempre que “a passagem por aquela terra seria pouca, porque ela tinha a missão de levá-los até lá e depois seria levada para o seio de Padre Cícero e as entidades que a protegiam”. Assim a comunidade construiu suas igrejas, sua religiosidade sincretizada entre o catolicismo e a matriz africana, fez sua plantação e a cultura própria do território.

Vendo a movimentação das pessoas e os alimentos que elas vendiam na cidade, anos depois, chegaram os grileiros de terra. Débora conta que seu pai e sua mãe eram analfabetos, assim como grande parte dos fundadores do Quilombo. Quando os grileiros chegaram, traziam papéis e representantes do poder público. Através da violência psicológica, de ameaças e coações, conseguiram retirar as famílias do local.

“Ao pezinho do morro, onde é nosso território, tem o cemitério onde estão enterrados nossos ancestrais. Também tem várias igrejas, espaços para rezas e diversas manifestações culturais. E esse lugar ainda está lá. Algumas pessoas ainda moram lá, dois mais velhos que resistem. Até então ninguém mexe com eles não, mas também eles não podem fazer nada na terra, até ser titulada. Eles ficam lá mais por uma questão de simbologia mesmo, da resistência”, recorda saudosa.

Atualmente, 200 famílias resistem na cidade de Aragominas, a dois quilômetros da terra. “Juntando todo mundo, neto, filho, sobrinho, são 1.200 pessoas”, que vivem num espaço urbano, na esperança de ter o reconhecimento da área, que após passar por seis etapas, aguarda a assinatura do presidente. Mas Débora não tem ilusões em relação ao “desgoverno” de Bolsonaro: “Antes, nas gestões anteriores, até que tinha algo a nosso favor, a gente tinha um pouco mais de fôlego na luta. Agora piorou tudo. A campanha dele mesmo foi em cima de não dar um centímetro de terra para indígena, para quilombola”.

Débora é uma das lideranças jovens da comunidade, e se divide entre os estudos e o aprendizado dos conhecimentos tradicionais da família e de seus anciãos. “Nos foi tirado, da minha geração e da geração antes de mim, o direito de crescer, de cuidar, de pertencer de fato ao território. A gente teve que crescer estando urbana”. A jovem destaca que a escola pública da cidade, apesar lhes receber, não estava preparada pedagogicamente, assim como o sistema de saúde também não estava preparado para receber pessoas quilombolas. “Quando a gente retomar o território, vai ter que começar do zero. Vai ter que montar uma escola quilombola, vai ter que montar uma unidade de saúde quilombola, todas as questões básicas”, planeja.

Atualmente, ela cursa enfermagem no IFTO (Instituto Federal do Tocantins). Foi na universidade que ela começou a se autoafirmar LGBT, ao mesmo tempo que enfrentava o racismo, machismo, lesbofobia e preconceito étnico. Ao se organizar no movimento estudantil, conheceu os direitos que lhes negavam, encontrou referências, pares, e estudou as questões sociais. “A gente teve que ocupar a universidade. Isso foi uma das coisas que mais atrapalhou meu psicológico. Essas situações me fizeram perceber o tanto que a universidade é hostil para quem é quilombola, para quem é preto, para quem é de movimento. Eu percebia situações que os quilombolas passavam na universidade e a gente não conseguia ver aquilo e simplesmente sentar ali e estudar”.

Foi assim que ela afirmou sua sexualidade, diante da família e comunidade, que tem característica muito religiosa e conservadora, mesmo sabendo da atração sexual e afetiva por mulheres desde os 13 ou 14 anos. “Se dentro da cidade grande, onde as pessoas têm (entre aspas) liberdade – uma liberdade limitada porque o Brasil é o quarto país que mais mata LGBTs -, no interior é mais complicado ainda. Você explica, explica e ninguém entende. Eu tentava me esconder para que ninguém me visse e contasse para minha família”.

Quando Débora revelou que era lésbica, as pessoas do Quilombo passaram a enxergá-la de forma diferente, a fazer comentários, e a “fofoca” se espalhou, o que a motivou a parar de participar das atividades do Quilombo. “Eles passaram a não me enxergar da mesma forma, então eu parei de participar. As pessoas marginalizam o corpo LGBT. Já taxam a gente de vagabundo e outras coisas. Acharam que aquela Débora que eles viram crescer não ia ser a mesma Débora”.

Foi o tempo que tonou que as coisas mais “suportáveis”, porque as pessoas perceberam que sua orientação não afetou em nada quem ela era. Apesar da lesbofobia estar escancarada nos olhares, ela compreende que é necessário muito tempo e diálogo para que as pessoas passem a compreendê-la e respeitá-la. “Se pra mim, que sou LGBT, demorou anos para entender, imagina na cabeça deles. Então eu compreendo até um limite, mas não deixo que as pessoas fiquem fazendo galhofa, como minha mãe diz”.

Para outras mulheres e jovens que passam pelas mesmas opressões, ela pede paciência e estudo, mas é necessário sair do armário e se colocar na sociedade por inteiro. “Eu não consigo ser uma mulher preta, lésbica, quilombola e falar sobre só uma parte de mim. Eu conheço pessoas que quiseram arrombar a porta do armário, e entendo, porque a gente se cansa, mas foi traumático, foi adoecedor, foi difícil. A gente tem que ter paciência não para os outros, é pra gente. É pra saúde mental, pro autocuidado. Eu me armei de conhecimento, me armei de sentimento para que, quando as pessoas que eu amo, como minha mãe, minha irmã e a família me perguntassem, eu pudesse responder”, concluiu.

*Editado por Fernanda Alcântara