Resistência

Um ano da resistência do acampamento Quilombo Campo Grande

Em agosto de 2020, famílias Sem Terra resistiram mais de 50 horas ao despejo violento promovido pelo governo Zema em meio a uma pandemia
Foto: Agatha Azevedo

Por Iris Pacheco e Larissa Goulart
Da Página do MST

Aqui sobre vossos peitos, persistimos,
como uma muralha, famintos, nus,
provocadores, declamando poemas,
somos os guardiões da sombra, das laranjeiras
e das oliveiras, semeamos as idéias
como o fermento na massa…”

Era madrugada, no horizonte o sol anunciava sua chegada e com ele a apreensão da execução da ordem de um despejo, que até então não se sabia que seria um dos mais longos da história do campo brasileiro no século XXI.

O despejo iniciou no dia 12 pela manhã e se estendeu até a tarde do dia 14 de agosto de 2020. Foram mais de 50 horas de resistência das famílias Sem Terra, acompanhada de numerosas manifestações de apoio e solidariedade nacional e internacional. Em meio a uma pandemia, o Governo Zema mobilizou o aparato militar de mais de 700 policiais militares de Minas Gerais e despejou uma das áreas do Acampamento Quilombo Campo Grande, demolindo as casas das famílias camponesas, lavouras e a Escola Popular Eduardo Galeano.

Conhecido pela produção do café Guaií, o acampamento Quilombo Campo Grande, situado em Campo do Meio (MG), o território é formado por 450 famílias, que há mais de 20 anos produzem alimentos sem veneno. As famílias Sem Terra exigem da justiça a garantia do direito à Reforma Agrária nas terras da antiga usina de cana Ariadnópolis, que faliu deixando dívidas com o Estado e os trabalhadores.

Um ano depois da ação violenta, Silvio Netto, da Direção Nacional do MST, faz um balanço do processo e afirma que a unidade e a solidariedade de classe foram fundamentais para a resistência. “É importante resgatar essa data porque saímos vitoriosos desse embate, além de não conseguir destruir a resistência e a luta do povo trabalhador, nós despertamos a solidariedade entre o povo brasileiro e demonstramos na prática de que quem luta, quem resiste, tem coragem e está organizado não vai será derrotado por nenhum poder neofacista do capital. O Quilombo Campo Grande continua produzindo o nosso café Guaií, os alimentos saudáveis, continua acolhendo um projeto de vida. Não recuaremos um passo da decisão de implementação da Reforma Agrária Popular no Acampamento Quilombo Campo Grande.”

Na época, a manobra jurídica ilegal ancorou o despejo de 14 famílias Sem Terra, 36 pessoas, dessas 16 crianças, ficaram sem suas casas em meio a pandemia. E também promoveu a demolição da Escola Popular Eduardo Galeano, deixando toda a comunidade sem o espaço da construção do conhecimento que alfabetizou crianças e adultos. Quanto ao governador de Minas Gerais, Romeu Zema, não fez nada para impedir o despejo, ao contrário, mobilizou um forte aparato militar para o acampamento.

Foram vários os momentos de tensão, de organização para que a luta da resistência permanecesse. Tuíra Tule, da coordenação do MST, relembra alguns deles. “Hoje eu lembro do barulho das bombas, de tanta tristeza, tudo ressoa dentro da gente, do nosso corpo, da nossa alma. Mas, também faz um ano que a gente se juntou, entre nós, e com a sociedade, para poder falar que cada família nossa já tem seu lugar para morar e começa a colocar na terra a semente da esperança e produzir novamente. Faz um ano que a gente trabalha com os corações e mentes que viveram aquele momento, principalmente as crianças, para que possam sonhar de novo e ter esperança.”

Foram três dias de tensão, violações de direitos humanos e solicitações para que o governador Romeu Zema suspendesse a ação policial. Porém, em um país onde o Estado serve os interesses da burguesia, o que vimos foram tratores derrubar os tijolos e as lavouras que sustentam mais do que sonhos, são a materialização de um projeto de vida no campo, antagônico ao agronegócio, que é de morte e violência.

A integrante da coordenação do MST na região do Sul de Minas, Débora Vieira, afirma que esse é um momento que nunca será esquecido. Pois, é um lugar de produção e reprodução da vida.

“Uma parte da área do acampamento Quilombo Campo Grande sofreu um despejo. 14 famílias tinham suas lavouras e casas. A nossa Escola Eduardo Galeano, por onde centenas de pessoas passaram se formaram, não somente foi fechada pelo governador Romeu Zema no início do ano de 2020, como foi derrubada no dia 13 de agosto. Uma escola que trazia emprego, dignidade, conhecimento e agroecologia, foi simplesmente derrubada ao chão.”

Escola Popular Eduardo Galeano – o sonho não morreu

Foto: Gean Gomes

Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã já vai chegar.
Venham comigo companheiras e companheiros,
ver a cor do mundo mudar!
A resistência durou 3 dias…

A escola popular Eduardo Galeano foi o primeiro local a ser destruído durante despejo. Mais do que tijolos no chão, tentaram apagar os sonhos e a memória de um povo.

E como já nos ensinou o patrono deste espaço de confluência de saberes, Eduardo Galeano, “a justiça é como uma serpente, só morde os pés descalços”. E assim, vimos o Estado se colocar contra os interesses do povo e promover a escalada de violência no campo. Além de realizar um ataque direto à educação do campo, quando a operação derrubou a Escola Popular Eduardo Galeano, local que oportunizou a inúmeras crianças, jovens e adultos o direito de aprender a ler e escrever.

Nessa perspectiva, a educadora Helen Mayara dos Santos, uma das sem terra despejada durante o conflito, afirma que a escola “não era só um espaço de ensinar, era um espaço de cultura, de conhecimento popular, de troca de saberes e experiências, perder esse espaço foi muito revoltante e triste, simbolizou interromper sonhos, uma vida melhor, uma sociedade melhor. Sentimos como se tivessem cortado nossas asas, tirando nossa esperança de um futuro no qual a gente sonha e o povo faça parte como sujeitos da própria história.”

Já Rosa Helena Gonçalves, também educadora na escola, relembra que apesar do sentimento de perda, a solidariedade recebida foi fundamental para seguirem na luta. A educadora ainda falou do centenário de Paulo Freire e seu legado, assim como o de Eduardo Galeano, para a educação e o povo brasileiro.

“Agradecemos a todos que no momento do despejo, por conta da pandemia não puderam chegar até aqui, mas com cartazes, mensagens e campanha de solidariedade para construção da escola, nos apoiaram. Estamos aqui firmes e fortes, caminhando com esse processo. Somos um povo de luta e vamos construir nossa escola, estamos com nossos sonhos bem adiantados, parceiros arquitetos com uma planta da escola, estamos já sonhando e não vemos a hora de colocar o primeiro tijolo.”

Logo após o despejo, foi realizada uma campanha de solidariedade para reconstrução da Escola Popular Eduardo Galeano.

“Esse sonho nosso que a gente tá reconstruindo é com muitas mãos, é com muitas mãos do Quilombo Campo Grande e também de quem não está aqui na terra, mas quem tá com a cabeça aqui, sonhando com um projeto de desenvolvimento que coloque a vida em primeiro lugar e não o lucro, que coloque a vida e não a morte nesse momento tão difícil que a gente vive da pandemia”, finaliza Tuíra.

Frente ao crime,
uma muralha de gente.
Brava, destemida, combativa.
Atravessando a violência sangrenta
do agressor de mais de 500 anos.
Defendendo a vida.
Violada, ressurgida, revoltada!
Um Brasil atordoado diante da
truculência, selvagem e covarde,
de um Estado assassino,
de uma justiça vendida,
de governos que gerenciam a morte.
Não é mais tempo de defender
migalhas pútridas da democracia.

(trecho do Poema “Ao Quilombo Campo Grande”, de Diva Lopes, do MST/MA)