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Artigo | Chorei por causa do MST

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também plantou suas sementes no mercado financeiro; saiba mais
Cooperativas do MST são as maiores produtoras de arroz orgânico da América Latina . Foto:Tiago Giannichini

Por João Paulo Pacifico
Do Brasil de Fato

Depois de vários meses, nessa semana acabou meu período de silêncio… Calma, não é uma promessa ou um silêncio absoluto (até porque fico quase o dia todo falando), mas quando estamos fazendo operações financeiras, o órgão regulador (no caso a CVM) não nos permite falar sobre o assunto.

Provavelmente você leu ou ouviu alguém falar sobre uma operação revolucionária do mercado financeiro com cooperativas ligadas ao MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Muitas pessoas questionaram: por que a Gaia resolveu trabalhar com o “polêmico” Movimento??? Findo o período de silêncio… agora eu posso falar… vem comigo!!!

1. Como conheci o MST…

Sempre ouvi na mídia que o MST era um grupo de terroristas que roubava e não trabalhava… até que um dia o meu amigo Eduardo Moreira resolveu viver por algumas semanas em acampamentos e assentamentos ligados aos Sem Terra. 

Quando nos encontramos, ele pegou o seu celular e me mostrou a foto de uma agroindústria bem bonita e arrumada: “Sabe onde é isso, João?”, ele perguntou. Eu não fazia ideia.

“Num assentamento do MST”, ele disse, me trazendo uma sensação de surpresa absoluta! Nos minutos que se seguiram, ele contou super empolgado as vivências e aprendizados que teve nas semanas anteriores.

Passada a primeira quebra de paradigma, e com várias interrogações em minha mente, marcamos uma reunião na Gaia com os principais líderes do Movimento.

2. O dia em que o MST foi para a Faria Lima

Antes de começar a reunião, Dudu se emocionou ao ver juntos, em uma mesma mesa na Faria Lima, líderes sociais e pessoas do mercado financeiro (eu e meu sócio Fabio Gordilho)… uma das pontes mais improváveis que alguém poderia imaginar.

Nessa reunião ativei o modo curiosidade (aquele olhar infantil de quem está descobrindo o mundo), deixei todos os preconceitos de lado… ouvi, perguntei, me encantei…

João Pedro me disse uma frase que me marcou: “pegamos o mundo emprestado dos nossos filhos e netos e devemos devolvê-lo melhor para eles” (frase original é de Wendell Barry).

Mas falar é fácil… qualquer um pode contar histórias bonitas… nas semanas seguintes nos aprofundamos, fizemos mais algumas reuniões até que eu e o Dudu fomos visitar a Coopan, cooperativa ligada ao MST que fica perto de Porto Alegre.

3. Você sabe como é um assentamento?

Chegando no assentamento fomos MUITO bem recebidos com um almoço delicioso. Vi crianças brincando, pessoas trabalhando, um lugar lindo… ao entrar na indústria de arroz, percebi que eram ensacados produtos de marcas que compramos em São Paulo, e que eu não fazia ideia que eram produzidas por eles.

Entramos dentro de num silo de arroz e parecíamos o Tio Patinhas… descobri que as cooperativas do MST são as maiores produtoras de arroz orgânico da América Latina (sim, até você que tinha preconceito deve ter se alimentado graças a elas).

João Paulo Pacífico com os braços abertos, dentro de um silo de arroz. Foto: Arquivo Pessoal


Aquele lugar, com uma vila de casas bem arrumadas (veja foto abaixo, que tirei), foi totalmente construído com o suor de centenas de famílias que plantaram. Se não estivessem lá, provavelmente essas famílias estariam vivendo nas ruas das grandes cidades, sem emprego, sem perspectivas… mas elas tinham a oportunidade de plantar o que a gente come (e sem agrotóxicos).

Foto de uma casa rodeada com muitas árvores e muito verde. Foto: Arquivo Pessoal

Mas eles roubam? Nãooooo, mais a frente, contarei a questão jurídica… seguimos com a história…Voltei pra Gaia com uma certeza: iríamos contribuir com aquele projeto, mas e o preconceito? E será que a cooperativa teria condições de cumprir as rígidas exigências do mercado financeiro?

4. Quebrando tabus…

Enfrentei MUITA resistência, dentro e fora da Gaia, mas fizemos uma primeira operação pequena. Captamos R$ 1,5 milhão para aquela cooperativa. Foi um sucesso!!! 

A notícia se espalhou, críticas vieram, mas um inesperado apoio popular começou a surgir… e o Dudu Moreira idealizou um movimento chamado Finapop (para fomentar recursos para agricultura familiar).

Mesmo com as ameaças de gente mandando recado que não iria mais trabalhar com a Gaia, decidimos dar um enorme passo.

Dizem que coragem não é a ausência de medo, mas agir apesar do medo.

O mercado financeiro é elitista! Foi feito para ricos investirem melhor, para ricos receberem os recursos. O sistema é assim!

Então, resolvemos fazer uma operação em que pessoas pudessem investir a partir de R$ 100 (isso mesmo, cem reais) na agricultura familiar, que produz alimentos orgânicos, agroecológicos. 

Para fazer isso, a burocracia é desafiadora. As grandes empresas que captam recursos no mercado financeiro têm enormes departamentos financeiros, jurídicos, mas estávamos falando de cooperativas de agricultores familiares, assentados da reforma agrária.

Alguns escritórios de advocacia recusaram trabalhar na operação. Eu pedi que eles se dispusessem a ouvir, a entender o que era o MST, mas não quiseram. Não os condeno, mas são reféns do sistema.

Até que falei com um dos mais renomados escritórios do país, mas que nunca tínhamos contratado, o Veirano Advogados. E eles aceitaram!

Montamos um grupo de trabalho e por cerca de um ano mergulhamos no mundo das cooperativas, o trabalho foi imenso, reuniões semanais. Até que tudo estava pronto para lançarmos o produto financeiro (chamado de CRA).

Nessa operação não tínhamos um banco ao nosso lado, muito menos assessores de investimentos para falar com os investidores, não gastamos um centavo para fazer marketing.

Nossa grande aposta era uma live cheia de restrições (link fechado, sem gravação). Só poderíamos enviar o link para as pessoas que se cadastrassem, nossa sorte era que o Finapop tinha despertado o desejo de milhares de pessoas.

5. “Cancelaram a live”. Como assim?!?!

Enfim chegou o dia da live. Equipe ansiosa. Depois de um ano de trabalho essa seria a nossa única oportunidade de falar sobre o investimento. Era 8 ou 80!

Separei minhas anotações, combinei com os advogados o que deveria falar. Testamos os computadores, decidimos que eu usaria o da Priscila, que tem câmera melhor que o meu, ela separou os documentos para caso perguntassem algo específico. Uffaaa tudo pronto, até que…

Cerca de uma hora antes da live, recebi o email de um dos participantes solicitando que cancelássemos o evento, dizendo que era contrário à realização (apesar de a CVM ter aprovado).

Ficamos tensos!!! O que fazer??? Cancelar a live significaria o fim do projeto. Não havia outra forma de as pessoas ficarem sabendo.

Refletimos e tomamos a decisão: ignorar o pedido e fazer a live.

Eduardo Moreira (como apresentador), um casal de cooperados e eu ficamos 1h40 falando para cerca de 2,5 mil pessoas que não deixavam a audiência baixar. Foi um sucesso!!! Foi emocionante!!!

Mas por que pediram o cancelamento da live? Bingo se você achou que os ruralistas pressionaram para que a operação não tivesse êxito.

6. Oferta suspensa!!! E agora???

O resultado da live foi incrível, nos dias que se seguiram muitas matérias positivas na mídia nacional e internacional, centenas de investidores fizeram as suas reservas de investimentos, tudo indo maravilhosamente bem, até que veio uma bomba…


Isso mesmo que você leu, “CVM suspende a oferta”.

A operação não tinha nada de errado, mas tinha uma minoria torcendo muito contra!!! (Para não termos problemas jurídicos, prefiro não contar uma dezena de tentativas de boicote que sofremos).

Mas para azar dos que torceram e agiram contra, a suspensão da oferta trouxe uma enorme mobilização da sociedade civil, a mídia noticiou, influenciadores se posicionaram…

Explicamos para a CVM todos os pontos, Veirano e os advogados das cooperativas foram brilhantes e revertemos a situação.

7. Agora é tudo ou nada!

Com a liberação, a mídia noticiou a possibilidade de investimentos… a mídia espontânea aumentou ainda mais, depois dessa reviravolta… fizemos uma força tarefa na Gaia para responder as centenas de e-mails que recebíamos…

As mais lindas histórias chegavam até a gente, como algumas senhoras de mais de 80 anos que queriam investir, um padre, vários grupos se formaram naturalmente para ensinar para as pessoas o que era esse tal de CRA do MST.

Alguns dias depois, com MUITA emoção atingimos a incrível marca de 4.794 contas abertas, dos quais as primeiras 1.518 pessoas conseguiram investir (mais de 3 mil interessados ficaram de fora).

E assim o MST plantou suas sementes no mercado financeiro… que venham as próximas…


8. Chorei

Quando tivemos a confirmação de que o último investidor confirmou o seu pedido, nossa equipe não cabia em si… sensação máxima de dever cumprido e chorei…

Chorei ao lembrar dos rostos das pessoas que nos receberam com tanto carinho… mas que são diariamente julgadas por uma sociedade que não os conhece… Chorei ao lembrar que aprendi lições de cooperação, amor e respeito… Chorei ao lembrar das milhares de pessoas que se engajaram para criar essa revolução no mercado financeiro… Chorei ao lembrar que com esses recursos eles produzirão alimentos saudáveis, que vão alimentar milhões de pessoas, de pessoas em situação de rua e até mesmo você…
Que esse seja o primeiro capítulo desta improvável transformação…

“Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou.” ~ Margaret Mead


Gratidão por ter lido. Escrevi esse texto com muito amor e com a intenção que você leia sem preconceitos, e se dedique a construir pontes, plantar sementes e ajudar os menos privilegiados.

Ps1. Minha gratidão enorme ao núcleo duro de pessoas que sonharam junto e fizeram acontecer. Em especial ao idealizador e querido amigo Eduardo Moreira (e Rafa), aos agricultores familiares (Carla, Luis, Rascunho, JP, Stedile e Bea) ao Veirano (Rafa, Brunão, Joy, Gi, Felipe e Dani) e ao time da Gaia (Jey, Bia, Rodrigão, Bea, Pitty, Sassá, Nat e tantos outros/as), essa turma trabalhou com amor, como uma família… a cada desafio a gente se fortalecia mais… Garra, Orgulho e Resistência definem (listei alguns nomes, mas certeza que fui injusto e esqueci muitos, me perdoem).

Ps2. Foto de quando conheci a Coopan:

Foto: Arquivo Pessoal


Ps3. Para constar: durante a pandemia o MST doou milhares de toneladas de alimentos.

Ps4. MST não é uma entidade jurídica, não tem CNPJ nem conta corrente, é um movimento social. “Ahhh, mas ouvi que o MST fez isso, fez aquilo”. Seres humanos acertam e erram diariamente. Não estou aqui para julgar, mas para avançar em causas que defendo. Desigualdade e meio ambiente são duas das três que elegi para me dedicar.

Ps5. Como prometido, segue a explicação jurídica: A Constituição Federal do Brasil diz em seu artigo 186 que as terras em território nacional têm uma função social, e devem respeitar requisitos como: preservação do meio ambiente, observância das relações de trabalho e aproveitamento adequado do solo. 

Ainda segundo a Constituição, a União poderá desapropriar áreas para fins da reforma agrária, exceto nos casos de terras produtivas e de pequenas e médias propriedades rurais. 

Os donos das terras que o governo venha a desapropriar, são pagos por isso. Portanto, não é roubo, já que há recompensa financeira nessa transação. E basta o proprietário fazer sua terra rural produzir para que não seja objeto da reforma agrária.

Normalmente o MST vai atrás de áreas que além de improdutivas tenham altas dívidas com a União, para facilitar o processo de conversão em algo que seja bom para todos e para o país.

Os assentados não ganham a terra, não podem vende-la. Mas sim, viver e plantar…

Ps6. Essa newsletter possui 117.230 assinantes. Como sempre digo, não quero que as pessoas concordem comigo, mas que reflitam…

Ps7. Esse artigo teve a revisão da querida Priscila Navarro (que não gosta que eu a agradeça publicamente…rs… valeu, Pitty).

Ps8. Para você que leu até aqui vou contar algo pessoal (evito falar de coisas pessoais nas redes). O MST me influenciou de tal forma que estou plantando uma pequena agrofloresta com os conceitos agroecológicos…

 Foto: Arquivo Pessoal

*João Paulo Pacifico é CEO ativista do Grupo Gaia. Esse artigo foi publicado originalmente no Linkedin.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo/ Brasil de Fato