Aromas de Março

As Mulheres e a Agroecologia

Na Coluna Aromas de Março deste mês, Ceres Hadich escreve sobre a experiência das mulheres Sem Terra e a Agroecologia
Foto: Acervo MST
Ouça a Coluna deste mês aqui

Por Ceres Hadich*
Da Página do MST

Historicamente, o cultivo da terra foi tido como uma atribuição feminina. O cultivo das sementes e plantações, a transmissão do conhecimento tradicional nas famílias. Da mesma forma, a observação dos processos naturais e cósmicos que permitiram às mulheres desenvolver valorosos conhecimentos sobre o corpo, os ritmos e os ciclos.

Muitos dos métodos, ferramentas e equipamentos que usamos atualmente tem origem nas invenções e descobrimentos provavelmente feitos pelas mulheres nesta era (Neolítico), como a utilização de plantas de forma curativa, a domesticação de animais, o cultivo das plantas, a construção das casas, os princípios da nutrição infantil, e enxada, o amolador e quem sabe, inclusive, o carro de boi (ÖCALAN, 2016)

A substituição/negação do conhecimento tradicional pelo conhecimento dito científico/acadêmico (na saúde, na agricultura…) acarretou consequências na identidade das mulheres que cada vez mais se sentem incapazes de desenvolver suas atribuições, desenvolvendo uma negação do seu feminino. Entretanto, a essência do feminino está na vida e as mulheres são as guardiãs da vida e da biodiversidade, quando falamos em mulheres camponesas.

A Agroecologia é um projeto em defesa da vida, e as mulheres, em sua essência, em sua natureza são capazes de entender e assimilar isso. Nesse sentido, é importante refletir sobre o posicionamento e o papel que as mulheres devem cumprir nos territórios.

Foto: Acervo MST

Todas nós (as mulheres) pertencemos à uma linhagem longuíssima de pessoas que se tornaram lanternas luminosas a balançar na escuridão, iluminando os próprios caminhos e os passos das outras. Elas conseguiram isso por meio da decisão de não desistir, por suas exigências de que o outro sumisse de sua frente, por sua atitude previdente de esperar até que o outro não estivesse olhando, pela sabedoria de ser como a água e descobrir como passar pelas menores fendas ou por sua tranqüila determinação de abaixar a cabeça e simplesmente pôr um pé diante do outro até conseguir chegar onde se quer (ESTÉS, 2007)

De modo geral, as mulheres estão ligadas às tarefas que dizem respeito à produção e à reprodução da vida. Por exemplo, num lote, numa pequena propriedade, onde se concentra a biodiversidade? Onde se concentra o trabalho da família (mulheres, homens, crianças, jovens, idosos)? Onde se concentra a renda?

Via de regra, o trabalho feminino (em atribuições e tempo) está concentrado em subsistemas dedicados à reprodução e auto sustentação da família (a casa, a horta, o pomar, os pequenos animais – porcos, galinhas…). Nestes subsistemas estão concentrados a Biodiversidade e a Soberania Alimentar, que são pilares da Autonomia da família. E isso é controlado, organizado e realizado pelas mulheres (a chamada renda não monetária). Representam uma economia, trabalho e exploração ocultos, invisíveis, sem voz. A renda, o poder e a tomada de decisões estão concentrados no trabalho masculino, e isso é visibilizado, vinculado à produção da renda monetária dentro da família, o que resulta em uma lógica patriarcal de produção e exploração familiar.

Perceber a mulher e seu papel neste contexto, ter a consciência da importância que elas têm na lógica da produção e da reprodução da vida é papel de toda a família, não somente das mulheres; é fundamental que as pessoas se percebam como companheiros, como membros de uma mesma classe, e percebam que os inimigos não são os próprios membros da família, mas sim um sistema externo, que impõe a lógica de exploração e alienação do trabalho.

É necessário também buscar promover a participação e a emancipação efetiva das mulheres, em suas dimensões econômica (geração e apropriação da renda), política (participação e tomada de decisões) e humana (com a elevação da cultura e dos níveis de consciência de homens e mulheres). Outro importante desafio é o de avançar nos processos de cooperação, em suas diferentes formas e sentidos, pois ela é uma necessidade para a agroecologia e para a emancipação das mulheres e da classe trabalhadora.

A agroecologia é pauta do MST, fundamental, pois ela é entendida e posicionada como parte da estratégia do desenvolvimento político e econômico, da família, da comunidade, da organização. Neste contexto, às mulheres, em sua determinação histórica em defesa da vida, tem as condições de pautar e de protagonizar essa construção, de colocar a Agroecologia no centro da Economia Política e, assim, permitir que ela seja, de fato, uma ferramenta estratégica de enfrentamento ao agronegócio e a construção da contra hegemonia.

A agroecologia é um novo paradigma, determinado por novas relações, e esse é um desafio e um processo para as famílias. A participação das mulheres enriquece, embeleza e engrandece as organizações. Por isso, mulheres, mães, camponesas, companheiras, militantes, dirigentes, todas essas facetas e qualidades desenvolvidas pelas mulheres devem ser potencializadas e colocadas no sentido da organização e do fortalecimento da participação delas a começar pelo rompimento com a organização convencional da divisão de tarefas no campo e a desvalorização dos trabalhos ditos femininos, pois as mulheres devem ser valorizadas pelos trabalhos de produção de alimentos saudáveis e podem transformar tal tarefa em geração de renda para toda a família.

Se for verdade a máxima de que “Sem Feminismo não há Socialismo”, também é certa a afirmação de que a Agroecologia, assim como o Feminismo é uma forma de enfrentar o capital e construir uma nova sociedade.

Bibliografia

ESTÉS, Clarissa Pinkola. A ciranda das mulheres sábias: ser jovem enquanto velha e velha enquanto jovem. Rio de Janeiro, Rocco, 2007.

ÖCALAN, Abdullah. Vida libertadora: revolução das mulheres. Porto Alegre, Sindicato dos Bancários, 2016. (apostila)

*Ceres Hadich é assentada da Reforma Agrária e militante do MST
**Editado por Fernanda Alcântara