Internacionalismo

41 anos de FMLN: um sujeito coletivo da história de El Salvador

Um estudo introdutório sobre a história da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), de El Salvador, que completa 41 anos de fundação em 2021
Combatientes del Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional, durante la guerra civil en El Salvador. (Fuente: “Historia de la violencia en El Salvador”/ C. Dupuy)

Por Fábio Tomaz*
Da Página do MST

El pueblo salvadoreño tiene el cielo por sombrero,
tan alta es su dignidad, en la busqueda del tiempo
en que florezca la tierra por los que han ido cayendo,
en que venga la alegria a lavar el sufrimiento.

Alí Primera

No dia 10 de outubro de 1980, no país centro-americano de El Salvador, as cidades amanheceram cheias de panfletos. Parte da população se surpreendeu, outra parte não tanto. Parte se encheu de esperança, outra parte de dúvidas. Porém, os mais surpresos foram os membros do governo de então. Os panfletos tornavam pública a criação da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional. Resultado de um longo processo de organização popular e de um esforço coletivo de unidade política, a FMLN se tornava a principal expressão política da luta contra a pobreza, a desigualdade, o autoritarismo e a violência que marcava o comportamento das classes dominantes da sociedade salvadorenha.

Pelas circunstâncias históricas, essa expressão política era, simultaneamente, também uma expressão de natureza militar. Compreender essas circunstâncias é essencial, e implica em compreender a própria trajetória deste país em suas lutas por liberdade, democracia e emancipação.

América Central: a independência e o papel das elites

Ao longo de todo o período colonial, depois do massacre e subjugação de povos maias e pipiles pelo império espanhol, a economia de El Salvador era centrada na produção e exportação de anil (também conhecido como ïndigo), um corante de tonalidade azul, derivado primariamente de plantas tropicais. A província de El Salvador era parte da Capitania Geral da Guatemala, então centro do controle dos domínios espanhóis na América Central. Ao longo dos anos, as elites locais (chamadas de criollas), entraram em conflitos crescentes com os interesses da Espanha.

Três fatores principais incidiram na luta destas elites criollas pela independência na região: o rechaço aos aumentos constantes de tributação que essas elites deveriam pagar à metrópole; a fragilização do controle espanhol de seus territórios nas Américas após a invasão de Napoleão à Espanha em 1808; e a busca dessas elites locais por outros mercados para a produção que então controlavam. Após muitos conflitos entre criollos mais radicais e outros mais conservadores, representantes das províncias centro-americanas se reuniram na Guatemala e declaram sua independência da Espanha em 1821.

A concepção de “república” das elites

Após dois anos, foi criada a Federação das Províncias Unidas da América Central, que incluía Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica. Este novo país, muito inspirado pelo sistema federativo dos Estados Unidos, foi incapaz de superar as tensões e os interesses conflitantes das elites locais. Mesmo sob o chamado à unidade de figuras históricas como Francisco Morazán, províncias passaram a abandonar a Federação e irrompeu uma guerra civil. O sonho da unidade dos povos centro-americanos foi destroçado pelos interesses das elites locais e a Federação se desfez por completo em 1840.

El Salvador enfrentava uma crise econômica sem precedentes. A criação do anil sintético na Europa praticamente eliminou sua principal fonte de renda. As elites locais optaram pela monocultura do café como solução. Uma série de reformas foram levadas à cabo. As terras comunitárias indígenas (ejidos) foram extintas e a propriedade privada foi assegurada como a única forma de posse de terras. As oligarquias consideraram que os ejidos eram um impedimento para o crescimento econômico e a própria Lei de Terras afirmava, em seu prólogo que “a existência [das terras comunitárias] contraria os princípios sociais e econômicos adotados pela república”. Todo o financiamento do Estado foi direcionado para a oligarquia cafeicultora, que no final do século XIX já representa 90% dos membros do legislativo.

A luta de classes se impõe

O evidente resultado da “política do café” foi a ampliação maciça de grupos de sem-terra, compostos de campesinos e indígenas, além da ampliação simultânea dos graus de exploração dessa mão de obra pela oligarquia. Frente ao descontentamento crescente desses setores da classe trabalhadora, em 1912 surge a Guarda Nacional, que tinha os soldos pagos pela própria elite do café, com o objetivo de manter a “ordem e segurança interna”, além de mapear atividades “suspeitas”, uma vez que as leis proibiam a organização dos trabalhadores em entidades representativas.

Ao mesmo tempo, setores urbanos e médios da sociedade salvadorenha tinham representação política cada vez mais reduzida e restrita em comparação às oligarquias cafeeiras. Com a crise econômica internacional de 1929, e consequentemente com o colapso das exportações de café, se instaurou em El Salvador uma nova crise econômica, social e política.

Farabundo Marti. Foto: Domínio Público

Em 1930, Miguel Mármol, um sapateiro pobre, participa da fundação do Partido Comunista Salvadorenho (PCS). Junto com ele Farabundo Martí. De origem rural, El Negro (como era conhecido), tinha uma trajetória de atividades radicais e longo trabalho de organização política, com prisões, exílio, retorno clandestino, novas perseguições e fuga para a outros países da região. É na Nicarágua que Farabundo se une a Augusto César Sandino, que combatia os fuzileiros navais estadunidenses que ocupavam aquele país sob pedido da ditadura local. É no retorno da luta na Nicarágua que Farabundo se une a Miguel Mármol em 1930.

No final deste mesmo ano, as elites locais organizaram um o golpe de estado e instauraram uma violenta ditadura. Todas as votações onde se suspeitava da presença do PCS foram suspensas. Sob a avaliação de que estavam fechadas as possibilidades democráticas, o PCS passou a planejar um conjunto de levantamentos simultâneos em todo o país. Após dois anos de extenso trabalho de base com amplo apoio de campesinos e indígenas, além de estudantes e professores, num exercício de unidade sem precedentes, tudo estava pronto e marcado para o dia 22 de janeiro de 1932. Porém, as autoridades obtiveram informações do plano e 4 dias antes dos levantamentos, Farabundo Martí foi capturado junto com os estudantes Mario Zapata e Alfonso Luna.

Impossibilitada a comunicação entre seus líderes, os levantes ocorreram de forma descoordenada e desorganizada, enfrentando uma brutal repressão do governo. Conhecido como La Matanza, o episódio resultou no assassinato de aproximadamente 30 mil pessoas, a maioria camponeses e indígenas. Estima-se que menos de 10% dos assassinados tinham alguma participação direta nos levantes. Poucos dias depois, Farabundo Martí, Mário Zapata, Alfonso Luna, Feliciano Ama (líder indígena) e “Chico” Sánchez (líder camponês) foram executados. Dos principais líderes, apenas Miguel Mármol sobreviveu. Baleado, fingiu-se de morto entre cadáveres e conseguiu se salvar, tendo uma vida ativa de organização política clandestina. Ao fim da matança, os militares, junto com a oligarquia, haviam derrotado a unidade forjada entre trabalhadores urbanos, campesinos, indígenas e estudantes.

A breve esperança democrática e o papel da igreja católica

As décadas seguintes em El Salvador foram marcadas por sucessivos golpes militares e fraudes eleitorais. O processo político seguia, no entanto, com algumas constantes: por um lado, a exclusão política das grandes massas da população de dos setores médios da sociedade salvadorenha; por outro, as tentativas desses mesmos setores de criar espaços democráticos mínimos para enfrentar o revezamento dos militares e oligarquia que estavam, ora em unidade, ora em conflitos internos.

Monseñor Oscar Romero. Foto: Domínio Público

É na década de 60 que as pressões populares e progressistas passam a ganhar força. O Partido Democrata-Cristão (PDC), se torna o ponto público de referência das muitas forças sociais que se organizavam na clandestinidade, além de setores sindicais, estudantis e outros organizados pelas chamadas Comunidades Cristãs de Base (CCB), expressões da Teologia da Libertação da Igreja Católica no país.

Soma-se a esse processo um fator internacional importante. Após a Revolução Cubana de 1959, os governo dos EUA criaram a Aliança para o Progresso, uma tentativa de favorecer uma política liberal moderada e assim, evitar que as desigualdades na América Latina resultassem em revoluções socialistas. Uma parte dessa política incluía condicionar empréstimos por parte dos EUA à uma abertura democrática mínima nos países evidentemente autoritários (o que incluía El Salvador). O PDC passou a ganhar cada vez mais posições nas eleições seguintes. Junto a isso, a mobilização popular se ampliava. Muito ocorria na clandestinidade, e o trabalho mais “visível” era o da igreja.

Em 1970, o Vaticano nomeou a Óscar Arnulfo Romero como bispo auxiliar de San Salvador (capital do país). Romero, visto como um conservador, se mantinha até então distante da Teologia da Libertação, inclusive com algumas críticas à chamada “igreja popular”. A aposta do Vaticano e da oligarquia era que ele poderia reduzir a participação da igreja nas questões políticas. Após outro golpe que não reconheceu a vitória das forças opositoras ao regime nas eleições presidenciais de 1972, o trabalho de base da igreja se radicalizou ainda mais. Em 1977, o Vaticano nomeou a Romero como arcebispo de San Salvador, em outra tentativa de combater a Teologia da Libertação. Não poderiam ter cometido maior erro.

Romero tinha visto as atrocidades do fascismo na Itália quando estudou teologia em Roma no final da década de 1930. No mesmo ano de sua nomeação como arcebispo, o regime não reconheceu a vitória da oposição nas eleições presidenciais. A polícia abriu fogo contra a população que foi protestar para denunciar a fraude e matou dezenas. A crescente repressão, corrupção e fraudes do regime em El Salvador e os assassinatos de muitos religiosos passam a ser cada vez mais criticados publicamente por Romero. Ele se tornou uma voz contundente de oposição ao regime.

Quando foi exigir a libertação do frei Rafael Baharona (que pela segunda vez havia sido preso e torturado), Romero escutou o então presidente pedir que ele controlasse seus padres, pois senão poderia até dialogar com o Vaticano. Romero respondeu: “Com todo devido respeito, Sr. presidente, nossas ordens vêm de alguém mais elevado”.

No dia 22 de janeiro de 1980, 48º aniversário da insurreição de 1932, mais de 200 mil pessoas se reuniram na capital. O regime se assustou com tamanha capacidade de mobilização das organizações populares. No dia 9 de março do mesmo ano, foram encontrados explosivos no altar central onde Romero faria uma missa em memória do ex-secretário geral do PDC, que havia sido assassinado. O governo não fez nenhuma investigação formal do caso. No dia 24 do mesmo mês, Romero foi assassinado no momento em que celebrava uma missa. O tiro fatal, disparado por um franco-atirador, acertou o coração momentos antes da Consagração.

As Organizações Político-Militares

O assassinato em praça pública de Romero e o não reconhecimento dos processo eleitorais deixava clara a situação de El Salvador: todas as vias legais e democráticas haviam sido fechadas pelo regime, que só se expressava através do autoritatismo, violência e repressão contra qualquer voz dissidente. A “democracia” era uma farsa e uma fachada. O componente militar se tornou uma fator necessário para a resistência e a luta por democracia verdadeira no país.

As Organizações Político-Militares (OPM) já operavam em El Salvador desde antes. Articulavam todo o trabalho político de organização e mobilização popular com estruturas de defesa armada, em grande parte frente a repressão do regime. Principalmente quando em meados dos anos 70 se forma a FALANGE (Forças Armadas de Libertação Anticomunista de Guerras de Eliminação), um dos muitos grupos paramilitares de extermínio financiados por empresários e latifundistas. Sob o lema “Seja patriota, mate um padre”, cometia assassinatos também de camponeses, sindicalistas, professores e estudantes. O Diretor de Inteligência do regime, major Roberto D’Aubuisson, foi o mais notável articulador desses grupos.

Guerrilha FMLN. Foto: Domínio Público

Em 1970 foi fundada as FPL (Forças Populares de Libertação). Dois anos depois, surge o ERP (Exército Revolucionário do Povo). Um grupo com divergências da direção do ERP funda a RN (Resistência Nacional). O histórico Partido Comunista funda as FAL (Forças Armadas de Libertação). Também surge e se organiza o PRTC (Partido Revolucionário dos Trabalhadores Centro-Americanos). Dois elementos são essenciais para compreender essas organizações político-militares.

O primeiro, que trata de sua natureza, implica em compreender seu vínculo com as organizações populares salvadorenhas. As diferentes OPM tinham diferentes níveis de inserção tanto nos movimentos populares organizados (sindicais, estudantis, camponeses, de mulheres, religiosos, partidos, etc) como também possuíam diferentes níveis de inserção e organização nos territórios urbanos e rurais do país. Haviam organizações mais amplas que juntavam todos esses movimentos e territórios, como o BPR (Bloco Popular Revolucionário), a FAPU (Frente de Ação Popular Unificada), as LP-28 (Ligas Populares 28 de Fevereiro), UDN (União Democrática Nacionalista) e o MLP (Movimento de Libertação Popular).

Essa diversidade de organizações e suas relações com as OPM nos dá uma dimensão tanto da amplitude de sujeitos em luta envolvidos como da extensão que essas organizações, em seu conjunto, tinham em todo o território salvadorenho.

O segundo elemento das OPM trata de suas diferentes táticas e estratégias. Algumas tinham uma linha inspirada pela Revolução Cubana, outras um caráter mais maoísta, outras relacionadas com linhas mais “clássicas” do comunismo internacional. Essas características táticas e estratégicas diversas refletiam no peso e no papel das dimensões militares (defensivas e ofensivas), organizativas e políticas.

Embora fosse consenso a necessidade de uma unidade de todas as OPM frente ao regime, os termos dessa unidade ainda não eram claros. O triunfo da Revolução Sandinista na Nicarágua em 1979 e a comoção nacional contra o regime gerada pelo assassinato do Monsenhor Romero no ano seguinte, somados ao fechamento completo das vias democráticas, foram componentes que aceleraram o processo da unidade necessária.

A unidade possibilitou uma greve geral que parou o país por 48 horas nos dias 24 e 25 de junho de 1980. Essa unidade se expressou finalmente na Formação da FMLN, que resgatou o nome e a memória do revolucionário que também tinha apostado na unidade popular contra o totalitarismo décadas antes. E no dia 10 de outubro de 1980, o país amanhece cheio de panfletos. Um silêncio foi a marca dos próximos meses.

A luta armada pela democracia

No dia 10 de janeiro de 1981, unidades insurgentes da FMLN ocuparam as estações de rádio de San Salvador. O comunicado transmitido em todo o território nacional dizia:

Chegou o momento de darmos início às batalhas militares e insurrecionais decisivas para a tomada do poder pelo povo e para a constituição de um governo democrático revolucionário. Convocamos o povo para se erguer como um só corpo, com todos os seus meios de combate, sob as ordens de seus líderes imediatos, em todas as frentes de batalha e por todo o território nacional. O triunfo definitivo está nas mãos desde povo heróico… Revolução ou morte! Venceremos!

Em cidades por todo o país, unidades de guerrilha e de milícias populares atacaram posições do exército. Por 48 horas, a bandeira da FMLN tremulou na capital. Depois de dias de batalhas e duros golpes ao exército (cerca de 80 soldados da Segunda Brigada de Santa Ana queimaram o próprio quartel e se somaram aos insurgentes), foi anunciado o fim da “primeira fase da ofensiva geral”.

Neste período, os EUA já haviam abandonado a proposta da Aliança para o Progresso e apoiava explicitamente ditaduras em toda América Latina, sob a chamada Doutrina de Segurança Nacional. O presidente estadunidense Jimmy Carter enviou 10 milhões de dólares e 19 instrutores militares em apoio ao regime. Meses depois, foram enviados mais 25 milhões e 65 especialistas militares. Com o governo de Ronald Regan, esse apoio se amplia ainda mais e chega a 196 milhões de dólares só no ano de 1984. Para os EUA, além dos ataques à Cuba, era necessário derrotar da Revolução Sandinista na Nicarágua e todos os movimentos insurgentes na América Central, como a FMLN em El Salvador, a URNG (Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca) na Guatemala e muitas outras forças insurgentes que operavam em todas as regiões da América Central.

O regime de El Salvador elabora um nova constituição em tempos de guerra, e surge como representante da direita a ARENA (Aliança Republicana Nacionalista), fundada pelo mesmo Roberto D’Aubuisson que organizava os grupos de extermínio. Porém, o apoio financeiro e militar dos EUA não são suficientes para derrotar a FMLN. Se estabelece um impasse militar ao longo dos anos. Os consultores dos EUA passam a participar de todos os batalhões e brigadas do exército no país. Há também uma tentativa de Reforma Agrária Contra-insurgente, que buscava retirar o apoio que o campesinato dava à insurgência, que evidentemente fracassou. Como afirma na época um membro da da FMLN:

Quem alimenta os guerrilheiros? Quem os alerta sobre os movimentos do exército? (…) Não são os russos, cubanos ou nicaraguenses que enviam milhares de toneladas de comida para milhares de guerrilheiros, toneladas de roupas para vestir, e informações tão exatas sobre a movimentação do inimigo. É o povo que faz tudo isso, o povo que semeia os grãos básicos, que prepara a comida e tece roupas. El Salvador não tem montanhas, mas as montanhas para seus guerrilheiros são o povo”.

Além do aspecto militar e do trabalho com a população, a FMLN também organizou uma estrutura de apoio internacional que a fez ser reconhecida como um grupo insurgente legítimo por diversos países, o que abriu as portas para as negociações sobre democracia e o fim da guerra. Na segunda metade da década de 1980, se iniciaram os primeiros diálogos, com a medição de outros países, para um acordo de paz. A comunidade internacional já não via o conflito em El Salvador como uma cruzada contra o comunismo, mas relacionado a questões internas do país.

A posição da FMLN não era de apenas encerrar hostilidades militares, mas de reestruturar o país e atacar as causas fundamentais do conflito: desigualdade, injustiça, violência e autoritarismo estruturais. 76% dos salvadorenhos, em pesquisa na época, apoiavam as negociações com a FMLN.

Para poder se impor nas negociações e responder aos ataques que seguiam por parte do exército e dos paramilitares (com a detonação de bombas em diversos sindicatos), a FMLN organizou, em novembro de 1989, uma grande ofensiva de três semanas, envolvendo 3 mil combatentes, chegando até a capital San Salvador. Essa ofensiva mostrava que a FMLN não era um grupo reduzido, sem apoio popular ou sem capacidade de coordenação como o regime e os EUA propagandeava.

Embora não tenha derrubado o governo, essa ofensiva teve muitos impactos significativos: mostrou a capacidade de mobilização da FMLN, as falhas da inteligência dos EUA, a incapacidade e brutalidade do exército do regime. Os 1,35 bilhão de dólares em gastos militares diretos dos EUA ao longo de uma década havia fracassado em seu propósito. A pressão internacional, junto com as denúncias dos EUA usando dinheiro do narcotráfico para enfrentar a insurgência na América Central, fez com que os EUA suspendessem a ajuda militar direta, o que deixava inviável qualquer possibilidade de vitória militar do exército sobre a FMLN.

Embora não em condições ideais, a FMLN tinha conseguido garantir o diálogo pela paz e a retomada da democracia no país, sendo assim a expressão máxima dos anseios da população.

Os acordos e a promessa de paz

Em 1990, os dois lados do conflito de reuniram em Genebra, na Suíça, para avançar e formalizar as negociações. No início de novembro de 1991, a FMLN anunciou uma trégua unilateral. Semanas depois o governo anunciou o fim de bombardeios e do uso de artilharia pesada. Em janeiro de 1992, são firmados os Acordos de Chapultepec (nome de uma fortaleza, no México, onde foram assinados), com início de implementação em 1º de fevereiro do mesmo ano.

Celebração dos Acordos de Paz, 1992.

De forma geral, os Acordos contemplavam amplos temas da realidade do país: papel das forças armadas e sua redução; criação de uma polícia civil; reformas no sistema judiciário; criação de uma Procuradoria de Direitos Humanos; reformas no sistema eleitoral; reincorporação civil dos combatentes insurgentes; e várias reformas de ordem econômica e social.

A FMLN se institucionalizou e se converteu em um partido político, tornando-se imediatamente a segunda maior força política do país, ganhando muitas cadeiras no parlamento, além de alcaldías (prefeituras) em várias localidades. A década de 1990 foi o período de maior hegemonia neoliberal na América Latina, e os governos da ARENA foram paulatinamente flexibilizando a implementação dos Acordos de Paz, até praticamente abandoná-los por completo. Além disso, algumas discordâncias, disputas internas e rupturas fragilizaram parte da experiência institucional da FMLN. Descobriu-se posteriormente que muitos dos que saíram haviam contribuído com o regime, inclusive sendo autores intelectuais de assassinatos de seus próprios companheiros dirigentes.

Em especial as questões sociais, como a Reforma Agrária, e o modelo econômico fundamentado na justiça social foram abandonados em prol de políticas de privatizações e de acordos de livre comércios com os EUA. O ponto mais alto dessa submissão dos governos da ARENA aos EUA foi quando, em 2001, El Salvador abre mão de sua própria moeda e passa a utilizar o dólar impresso nos EUA como moeda local. Evidentemente, essas políticas ampliaram as desigualdades políticas, econômicas e sociais.

No contexto da ascensão dos “governos progressistas” na América Latina, a FMLN ganhou as eleições presidenciais em 2009, rompendo com 18 anos de dominação da ARENA desde os Acordos de Paz. Também governou o executivo entre 2014 a 2019. Porém, da mesma forma que muitos dos governos progressistas, embora foram feitos avanços econômicos e sociais consideráveis, a FMLN sozinha não conseguiu fazer as mudanças estruturais necessárias para romper com a dominação das elites locais associadas ao imperialismo. Sofre os mesmos ataques da ofensiva totalitária e conservadora que vemos em muitos outros países na atualidade.

A FMLN 40 anos depois

A FMLN não é apenas mais um partido político no atual sistema eleitoral de El Salvador. É parte da própria história da luta do povo salvadorenho por uma sociedade justa e democrática. Uma luta de longo tempo. De Farabundo Martí e tantos outros nos anos 30, dos movimentos populares dos anos 60 e 70, da insurgência dos 80, das lutas pela paz e democracia dos 90 e das complexidades da luta de classes no século XXI.

E assim como todas as lutas do povo, a FMLN sintetiza também muitos avanços e muitos limites. Celebrações necessárias. Críticas feitas e não feitas. Muitas esperanças e desilusões. Sonhos e pesadelos. Adiante, são muitos os caminhos possíveis. Atrás, há uma trajetória que simboliza a esperança de um povo. Existem momentos mais favoráveis, outros menos. Cada momento tem sua exigência histórica e é preciso estar à altura. Mas embora sejam diferentes os momentos, nunca existe um momento de parar de lutar.

Para nós, militantes, conhecer a história da FMLN, de El Salvador e da América Central, é um exercício de celebrar nossa identidade latino-americana, sua beleza e suas contradições. Um exercício de ver como aquilo que nos diferencia não necessariamente nos separa, quando o objetivo é luta por libertação. Encontramos, ao olhar outras experiências históricas, muitos processos que possuem paralelos com nossas realidades.

A FMLN, nesses 40 anos de história, para seguir cumprindo seu papel na luta de classes, sempre dependerá daquilo que a originou: um esforço de construção de unidade na diversidade, um objetivo claro e uma vinculação permanente com o povo até às últimas consequências. Desafios e compromissos estes que também estão diante de muitas outras organizações populares de nossa luta.

Algumas sugestões para quem quiser aprofundar um pouco:

Documentários

El lugar más pequeño. Direção: Tatiana Huezo.

El pueblo vencerá. Produzido pelo Instituto Cinematografico de El Salvador Revolucionário: https://www.youtube.com/embed/PvuDHoXaFfs?feature=oembed

Los ofendidos. Direção: Marcela Zamora

Livros

Ana María: combatiente de la vida. Iosu Perales e Cláudia Sanchez. Ocean Sur, 2012.

A Revolução Salvadorenha. Tommie Sue-Montgomery e Christine Wade. Editora Unesp, 2002.

Comandante Ramiro. José Luiz Merino. Ocean Sur, 2010.

El Socialismo: una alternativa para América Latina?. Schafik Handal e Marta Harnecker. Ocean Sur, 2014.

En el silencio de la batalla. Berne Ayalá. Editorial Expedición Americana, 2014.

Farabundo Martí: la biografía clássica. Jorge Arias Gómez. Ocena Sur, 2010.

La guerra que no quisimos. Salvador Sanchez Cerén. Ocean Sur, 2012.

Legado de un revolucionario (três tomos). Schafik Handal. Instituto Schaik Handal, 2014.

Filmes

Romero. Direção: John Duigan.

Salvador – O martírio de um povo. Direção: Oliver Stone.

Vozes inocentes. Direção: Luis Mandoki.

Literatura e Poesia

El turno del ofendido. Roque Dalton. Ocean Sur, 2015.

Entre los escombros de la madrugada. Otoniel Guevara. Editorial del gabo, 2015.

Las historias prohibidas del pulgarcito. Roque Dalton. Ocean Sur, 2014.

Miguel Mármol. Roque Dalton. Ocean Sur, 2007.

Pobrecito poeta que era yo…Roque Dalton. Ocean Sur, 2019.

Quadrinhos

Los doce nacimientos de Miguel Mármol. Dani Fano. Astiberri Ediciones, 2018.

* Fábio Tomaz é da Coordenação Político-Pedagógica da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e Coletivo de Relações Internacionais (CRI) do MST. Ex-brigadista internacionalista do MST na América Central.

** Artigo publicado originalmente em 10 de Outubro de 2020.

***Editado por Fernanda Alcântara