Cultura

Assentamento Contestado e Teatro Positivo são palcos de encontro entre a música clássica e luta

No Paraná, ação Arte da Resistência: Por Terra, Teto e Pão ocorreu no último sábado e uniu camponeses/as, moradores/as da periferia de Curitiba e artistas
Em ensaio aberto, crianças tocam piano no palco do Teatro Positivo.  Foto: Valmir Fernandes

Por Leonardo Henrique e Ednubia Ghisi
Da Página do MST

Da primeira fila da plateia do Teatro Positivo, em Curitiba, a pequena Eduarda Beatriz regia os músicos, desenhando com as mãos no ar o ritmo da música. Era a primeira vez que ela assistia a um concerto de música clássica, assim como dezenas de pessoas da sua comunidade, a Pantanal, periferia da capital. 

O espetáculo gratuito ocorreu na noite do último sábado (13), como parte da ação Arte da Resistência: Por Terra, Teto e Pão, realizado pelo Instituto Res Publica, em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Fernanda Cordeiro, moradora e coordenadora da comunidade Jardim Veneza, ocupação urbana no bairro Tatuquara, afirmou que foi emocionante assistir o concerto no teatro. “Dá pra ver nos olhos das crianças que estão curiosas, porque eles não têm acesso a isso. A arte e a cultura são muito importantes para eles que estão se desenvolvendo agora”, afirmou. O Jardim Veneza foi uma das dezenas de ocupações urbanas formadas em Curitiba ainda durante a pandemia.

No palco, quem inspirou a brincadeira da aprendiz de maestrina foram músicos que se apresentaram em palcos internacionais em vários lugares do mundo. Gabriel Squizzato (viola), Cristian Badu (piano), Angelo Martins (violino), Rafael Cesário (violoncelo) e Pedro Gadelha (contrabaixo) foram ao Assentamento Contestado pela manhã interagir com as crianças no campo e, à noite, se juntaram com as da cidade. (Clique aqui para saber mais sobre os os artistas).

Na primeira fila, a maestrina Eduarda Beatriz conduziu a orquestra. Foto: Leonardo Henrique 

“Os artistas vão às comunidades e as comunidades vêm ao teatro”, declarou Gabriel, diretor cultural no Instituto Res Publica. “Esse dia é de fato um símbolo de que a gente pode alcançar patamares dignos. A gente precisa começar a entender que isso é necessário, essas atividades que promovem a possibilidade de aproximação das pessoas aos espaços públicos, às atividades culturais, que não seja algo só para as elites”.

Estavam na plateia do espetáculo cerca de 50 camponeses do Assentamento Contestado e centenas de moradores das comunidades Jardim Veneza, Vila União, Chacrinha, Pantanal, Nova Guaporé 2, trabalhadores da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis Novo Amanhecer, de Curitiba, e Nova Esperança, de Campo Magro. 

Na abertura do evento, Matheus Henrique, do Instituto Res Publica, expressou a emoção ao presenciar aquele momento raro. “Passei a última hora na recepção, e eu vi pela primeira vez o povo pobre entrando por essa porta. Eu várias vezes me emocionei e acho que esse movimento que nós temos que fazer de agora em diante, acho uma fagulha que nós estamos acendendo. Que a gente de fato possa dia após dia promover mais espaços como este, para democratizar não só esse espaço, mas sim tantos outros para estarem abertos, acessíveis, democráticos”, declarou.

Música para cuidar da terra que gera o alimento

Um dia de muita troca de ensinamentos marcado por alegria, apoio mútuo, sorrisos, solidariedade e esperança de uma sociedade melhor. Tantas atividades fizeram com que a programação começasse bem cedo. Nos primeiros raios tímidos do sol, no sábado, um ônibus levou cerca de 45 estudantes, professores, sindicalistas e integrantes de organizações sociais para a roça, no Assentamento Contestado, Lapa. 

Os voluntários do coletivo Marmitas da Terra fizeram o manejo da horta e colheram batata e repolho, alimentos servidos nas refeições distribuídas semanalmente em praças e ocupações de Curitiba e Região Metropolitana.

Adriana Oliveira, Dirigente Estadual do MST, comemorou os resultados do trabalho conjunto na roça. “Nós temos povo organizado e temos terra para plantar”, afirmou referindo-se ao papel da Reforma Agrária no combate à fome e às 86.200 marmitas distribuídas na cidade desde o início da pandemia.

Sábado de música, cultura e colheita de alimentos para partilha. Fotos: Valmir Fernandes
Foto: Kauan Fonseca
Foto: Leonardo Henrique (3ª)

O cuidado com a natureza envolveu o plantio de árvores nativas (Ipê, Cedro e Peroba); dentre elas, frutíferas, como Pitanga, Guabiroba e Uvaia. Todos puderam participar. Para Rafael Cesário, violoncelista, o momento foi de “plantar vida”. Após plantarem juntos uma muda de Uvaia, os músicos aplaudiram e disseram “viva”.

As mãos que tocam instrumentos também mexem na terra para plantar árvores. Da esquerda para a direita: Rafael Cesário, Angelo Martins, Cristian Budu e Gabriel Squizatto. Foto: Leonardo Henrique
Violoncelo que “está com Rafael” tem 130 anos. Foto: Valmir Fernandes

Troca de experiências entre campo e cidade

Artistas e voluntários puderam conhecer um pouco do Assentamento Contestado, onde vivem cerca de 180 famílias, a cooperativa Terra Livre, e a Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA). 

Poemas de luta foram declamados por camponesas(es) e trabalhadoras(es) da cidade segurando enxadas tornaram a mística mais especial. Bandeiras do MST e de organizações campesinas internacionais, dentre outras, ornamentaram o momento.

O incentivo à arte e a cultura está presente nas práticas do MST em todo o Brasil, e no assentamento Contestado ganhou reforço com a inauguração do Centro Cultural Casarão, em 2018. A construção antiga foi erguida com mão de obra escravizada no ano de 1835, quando ainda pertencia ao Barão dos Campos Gerais, que ganhou a área do governo brasileiro. O Casarão carrega nas suas estruturas séculos de injustiça contra o povo negro e campesino, mas agora serve como ambiente de memória e produção cultural.

Recordar a história se torna essencial para valorizarmos a resistência popular. Uma formação sobre o histórico de luta na região informou os presentes sobre o lugar em que estavam. Todos entraram no casarão cantando “é um tempo de guerra, é um tempo sem sol”.

Apresentações culturais e mística marcaram o dia de atividades no Assentamento Contestado. Fotos: Valmir Fernandes

Sandra Mara Meier, diretora da Escola Municipal do Campo Contestado, enfatizou a importância da cultura e a arte para a sociedade. “A gente já teve dois anos de atividade, oficinas, música, teatro, várias linguagens culturais. Ficou parado neste período da pandemia”, relatou. 

“O acesso à cultura dessa forma a gente quase nunca tem. A música clássica a gente quase nunca ouviu. A gente tem acesso  à cultura de massa que está nos meios de comunicação. Por isso é muito importante para as famílias da nossa comunidade”. Os músicos se apresentaram para 50 famílias da comunidade e artistas populares fecharam a manhã. A atividade se encerrou com almoço coletivo.

“A cultura é parte central do desenvolvimento humano”

Tema recente em redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o acesso à cultura está previsto em constituição. Porém, é com a organização popular que famílias carentes e que moram nas periferias das cidades garantem esse direito.

Da ocupação Nova Guaporé 2, próxima ao Teatro Positivo, é possível verver a cobertura dos prédios de classe alta do bairro Campo Comprido. Apesar da proximidade geográfica, muitas famílias da comunidade nunca tinham entrado em um teatro.

“A cultura é parte central do desenvolvimento humano”, afirmou Roberto Baggio, da direção nacional do MST. “Faço um paralelo histórico: nós, do MST, entramos em um grande teatro em 1985. Foi um fato histórico os camponeses acessarem aquele lugar pela primeira vez”, referindo-se ao 1º congresso nacional do MST, realizado no Teatro Guaíra, também em Curitiba.

“Nós estamos numa grande crise estrutural, violência, fome na nossa periferia. Um período de muita dor e sofrimento. É muito simbólico esse dia, em que justamente essas pessoas que nunca tiveram acesso a esse ambiente”.

A cultura marcou a presença inédita não apenas nas cadeiras do Teatro. Em uma mística combinada previamente com a organização do evento, 3 mulheres e 3 homens integrantes do MST, do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadores por Direitos (MTD), Movimento Popular por Moradia (MPM) e voluntários subiram ao palco para entoar a plenos pulmões e com os punhos erguidos “Arte e Resistência: Por Terra, Teto e Pão”.

O concerto durou aproximadamente 1h30m e contou com muita emoção, aplausos e alegria, como da maestrina Eduarda Beatriz. 

As atividades da Série foram realizadas com apoio da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), da Fundação Bianca Bianchi, do Sindicato dos Engenheiros do Paraná (Senge-PR), da Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná (APUFPR) e dos Escritórios de advocacia Bentivenha Advocacia Social e Godoy Advocacia.

Público aplaudiu e se emocionou com o concerto de música clássica. Muitos nunca tinham entrado em um teatro. Integrantes de movimentos sociais também estiveram no palco com palavras de ordem. Fotos: Valmir Fernandes

*Editado por Fernanda Alcântara