Privatização dos Assentamentos

PL que regulariza grilagem de terras em São Paulo deve ser votado nesta terça-feira (30)

Impulsionado pelo governo de João Dória, Projeto de Lei 410/2021 retoma votações na Assembleia Legislativa de São Paulo ameaçando as políticas de Reforma Agrária do estado
Ocupações do MST na região do Pontal do Paranapanema em SP, denuncia PL 410/2021 e pressiona o Estado para a arrecadação de terras devolutas para a Reforma Agrária. Foto: Coletivo de Comunicação do MST em Pontal do Paranapanema

Por Lays Furtado
Da Página do MST

Nesta terça-feira (30/11) o Projeto de Lei 410/2021 volta a ser pautado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), quando a medida deve ser votada. De autoria do governo de João Dória (PSDB), o PL altera a Lei nº 4.957 de 1985, que dispõe sobre os planos públicos fundiários, entre outras. Apresentada no dia 26 de junho, a medida coloca em risco a vida de mais de 7 mil famílias dos 140 assentamentos do estado de São Paulo.

Na última terça-feira (23), o PL 410/2021 já havia sido debatido na Alesp. Diante de uma perspectiva de negociação de redução de danos frente a possível aprovação do PL, deputadas(os) aliadas(os) aos movimentos do campo popular defendem a inclusão da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) como opção de titulação definitiva e a retirada do artigo quarto deste Projeto de Lei, que favorece a grilagem da terra.

A Lei de 1985 foi criada a partir do contexto de conflitos fundiários, no qual famílias Sem Terra lutavam pela arrecadação de terras devolutas, exigindo que as mesmas fossem destinadas para a Reforma Agrária. Entretanto, em nome da titulação de assentadas(os), o governador João Dória quer passar cerca de 500 mil hectares de terras públicas para latifundiários e fazendeiros do agronegócio em São Paulo.

Com o discurso de que é o melhor para as famílias assentadas, a medida facilita a regularização da grilagem de terras públicas e a privatização das políticas de assentamentos no estado. “Vários deputados são ruralistas ou têm relações com especulação fundiária. Querem abocanhar as terras do povo paulista. Dória quer acabar com o Itesp [Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo]”, afirma Kelli Mafort, da Direção Nacional do MST em São Paulo.

A medida estabelece que os produtores(as) que ocuparem as terras há, pelo menos, dez anos ou que tenham a concessão há 5 anos, poderão realizar a transferência. Uma das condições para possuir o título definitivo da terra obriga ainda as(os) assentadas(os) a assumir uma dívida compulsória, por meio do pagamento de uma porcentagem do valor total do espaço.

“Os assentados e assentadas sonham com um título, mas vão ganhar uma dívida impagável. Da forma como está proposto o PL410, não se trata de atender um direito, mas sim de arrumar um jeito de se livrar deles através da privatização da Reforma Agrária. O Título de Domínio vai ser obrigatório e tem custo. Não pagou a terra, tá fora sem direito a nada!”, alerta Kelli.

Negociações

Na última semana, atendendo às reivindicações de parte dos assentados e assentadas do estado de São Paulo, deputadas(os) da bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) negociaram com o Itesp e presidente da Alesp a inserção do Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) como opção ao assentado(a), além do Título de Domínio previsto na medida. “Nós não somos contrários à titulação, o que nós somos contrários é a forma como o governo do estado pretende fazer essa titulação”, anunciou a deputada estadual Márcia Lia (PT), sobre o PL.

O outro pedido de negociação sobre a medida, foi sobre o artigo quarto, para que o mesmo fosse retirado da votação do Projeto de Lei, considerando que ele: “É a entrega do patrimônio do estado de São Paulo para pessoas que grilaram terras e se apropriaram de terras que deveriam ter sido divididas e entregues para a Reforma Agrária”, complementa a deputada, reafirmando o compromisso com a desconcentração de terras no estado e em apoio a reivindicação de assentadas(os).

Devido a gravidade da proposta, movimentos sociais, entidades e organizações da sociedade civil defendem a retirada do regime de urgência na tramitação e a realização de uma amplo debate entre a categoria, assentadas(os), para discutir os rumos da política agrária e fundiária no estado de São Paulo. Veja abaixo posicionamento de MST, OAB-SP, MP-SP e Afitesp sobre o projeto:

Nota

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Associação dos Funcionários da Fundação ITESP (AFITESP), a Comissão de Direitos Humanos da OAB, o Ministério Público do Estado de São Paulo, diversos pesquisadores ligados a universidades, entre outras organizações, denunciam que o Projeto de Lei nº 410/2021, apresentado em 26 de junho de 2021, propõe a privatização das terras públicas estaduais através da titulação de domínio aos lotes, em assentamentos rurais e a regularização da grilagem de terras públicas no estado. 

De acordo com as entidades, a obrigatoriedade do processo de titulação, conforme prevê o PL, impõe ao beneficiário uma dívida compulsória com o Estado, estando assim em nítido desacordo com o previsto na Constituição Federal, que garante ao beneficiário, em seu Artigo 189, o direito de livre escolha entre o Título de Domínio (TD) ou a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU). A proposta também contraria a Constituição Estadual, que prevê, em seu Artigo 187, que “a concessão real de uso de terras públicas far-se-á por meio de contrato”, não havendo previsão legal para o Título de Domínio, conforme proposto pelo governo do estado. 

O texto do PL estabelece uma série de condições resolutivas que, caso não cumpridas, poderão resultar na perda dos lotes por inúmeras famílias assentadas. As obrigações estabelecidas quando da expedição do título de domínio se imporão apenas aos atuais assentados, livrando futuros compradores de qualquer obrigação para com a racional exploração e cumprimento da função social da parcela de terra adquirida mediante a compra do Título de Domínio. 

Considerando-se que grande parte dos assentamentos estaduais se encontra apenas sob detenção do Estado, não possuindo este o domínio real sobre tais áreas, os Títulos de Domínio eventualmente emitidos não serão passíveis de registro em cartório, situação que não proporcionará segurança jurídica alguma ao assentado e apenas estimulará a realização de contratos particulares de compra e venda (contratos de gaveta). Ainda, a eventual aprovação do PL e a consequente mercantilização do acesso à terra em assentamentos tende a estimular processos de especulação com terras, elevando seus valores no mercado. 

As entidades consideram que frente à conjuntura atual, com crescente redução de recursos destinados ao fomento da agricultura familiar, desemprego estrutural e conjuntural, e crises econômica, política e institucional, uma equivocada titulação dos assentamentos estaduais poderá contribuir para o agravamento do cenário descrito, com empobrecimento da população rural e urbana de inúmeros municípios no Estado, desconfiguração dos assentamentos enquanto comunidades de direitos, trabalho e vida, “inchaço” das periferias das cidades, redução da produção e encarecimento dos alimentos, ameaçando, também, a segurança alimentar e nutricional da população paulista.

Sabendo que em torno de 70% dos alimentos básicos que compõem a mesa dos brasileiros são produzidos pela agricultura familiar, a eventual aprovação do PL e a consequente reconcentração fundiária e estímulo a arrendamentos nas áreas de assentamentos rurais, com substituição das áreas de produção de alimentos básicos por produção de commodities destinadas à exportação, contribuirá para agravar a crise alimentar vivida por milhares de pessoas nos centenas de municípios paulistas.

As entidades expõem ainda que como não bastassem os riscos contidos no PL em sua redação original, somam-se, também, os riscos advindos de Parecer emitido pelo relator especial do PL na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Por meio de emenda, pretende-se modificar a ementa do Projeto de Lei, acrescentando-lhe artigo 4º que, conforme sua redação, possibilitará “a alienação, onerosa, a pessoa natural, de terras devolutas ou presumivelmente devolutas, mediante pagamento de preço fixado […]”.

Tal proposta, se acatada, possibilitará a regularização da grilagem de terras públicas no estado de São Paulo, transferindo para as mãos dos grileiros em torno de 500 mil hectares de terras, utilizando do PL 410/2021 como verdadeiro “Cavalo de Tróia” para a consecução deste obscuro objetivo, dado que permitirá aos ocupantes irregulares (grileiros de terras) regularizar as áreas ilegalmente ocupadas mediante pagamento, aniquilando qualquer possibilidade de arrecadação de terras devolutas para a implantação de novos assentamentos rurais.

Ou seja, ao invés de praticar a justiça, punindo os infratores e arrecadando tais áreas para a implantação de assentamentos rurais, conforme preconiza a política agrária e fundiária estadual, o Governo do Estado de São Paulo estará incentivando a grilagem de terras no estado, com premiação aos grileiros. Tal manobra vem sendo questionada por diversas entidades, não havendo, até o momento, qualquer resposta por parte do governo do estado.

Por fim, considerando-se o quadro descrito, as entidades ressaltam a urgência da realização de amplo debate acerca da tentativa de titulação dos assentamentos rurais estaduais, para que se possa, coletivamente, discutir os rumos da política agrária e fundiária no Estado de São Paulo.

Destaca-se que a eventual aprovação do Projeto de Lei nº 410/2021, na forma como está apresentado, significará a privatização de imensa fração do estoque de terras públicas estaduais e sua reconcentração nas mãos daqueles mesmos que as ocupavam anteriormente e que ainda hoje são detentores do poder político e econômico no Estado.

*Editado por Solange Engelmann