História

Há 22 anos, um levante indígena derrubou um presidente no Equador

Entenda a história de luta e resistência do Movimento Indígena no país
Levante Inti Raymi marcou a retomada da luta política pelos indígenas equatorianos – Créditos: Agencia de Noticias Plurinacional del Ecuador-ANPE

Por Janelson Ferreira
Da Página do MST

No dia 21 de janeiro de 2000, em Quito, capital do Equador, o então presidente, Jamil Mahuad, foi deposto de seu cargo. O motivo da queda: um levante indígena. O levante foi uma série de manifestações que eclodiram em todo o Equador no começo daquele ano contra as políticas neoliberais adotadas pelo governo do país.

O acontecimento foi o ápice de uma série de lutas, que, no período recente, iniciou-se em 1990, com o Levante de Inti Raymi. Neste período, o movimento indígena equatoriano desenvolveu sua luta política, saiu de  uma posição marginal no cenário político nacional e inseriu em seu discurso uma crítica à estrutura de representação e exercício do poder. 

Pedro de la Cruz atualmente é dirigente nacional do Movimiento Revolución Ciudadana, que tem em Rafael Corrêa, ex-presidente do Equador, seu principal nome. Indígena do povo Quíchua, de la Cruz nasceu em Cotacachi, província de Imbabura, ao norte do país. Filho de mãe solteira, passou pela pobreza extrema e desde jovem é militante de esquerda. 

“Nós, indígenas, somos um dos segmentos populares de maior relevância no Equador por conta de nossa organização”, afirma de la Cruz. “Se temos que sair às ruas, ocupar as estradas, saímos aos milhares”, lembra. 

Pedro de la Cruz, dirigente do Movimiento Revolución Ciudadanas. Foto: Asamblea Nacional del Ecuador

De la Cruz era dirigente da FENOCIN – Confederação Nacional de Organizações Camponesas, Indígenas e Negras do Equador – em 2000. A Confederação foi uma das organizações protagonistas do levante de 22 anos atrás.  

“Fomos com 50 mil pessoas para a capital do país, Quito, enquanto outros grupos permaneceram nos territórios, ocupando as estradas”, afirma o militante.

Anos 90 no Equador: neoliberalismo e revoltas populares

O processo de redemocratização do Equador após sua ditadura militar (1972-1979) foi marcado, em grande parte, pela implementação de uma série de políticas neoliberais. É justamente contra estas políticas e governos que o movimento indígena se levanta a partir de 1990. 

“A história do Equador é assim, sempre que cai um governo de direita outro, com o mesmo perfil, logo se organiza para assumir em seu lugar”, analisa de la Cruz. Ao longo daquela década, protestos populares e indígenas ocorreram em 1992, 1994, 1996, 1997, 1999 e 2000. “Em 1994 nos levantamos contra a política de desenvolvimento agrário do presidente Sixto Ballén e em 1997 derrubamos o então presidente Abdalá Bucaram”, lembra o dirigente. 

Pela “modernização” do Estado, Equador entra em crise econômica

Jamil Mahuad foi eleito em 1998 com a pauta de redução do tamanho do Estado, as privatizações e a economia de mercado. E dentre os últimos presidentes de direita, até aquele momento no Equador, Mahuad foi quem mais internalizou a adoção de políticas neoliberais. 

Contando com bons índices de aprovação no começo de seu governo, em março de 1999 o presidente passou a aplicar a agenda política e econômica neoliberal. A eliminação dos subsídios do gás de cozinha e energia elétrica e o aumento do preço dos combustíveis geraram um imediato aumento dos preços de diversos itens. Em paralelo, um pacote com uma série de projetos de privatizações (setores elétricos, petróleo, telefonia, correios…) foi enviado ao Congresso. O argumento para esta série de medidas era uma suposta modernização do Estado. 

Jamil Mahuad (esq.) junto de Fernando Henrique Cardoso (centro) e Alberto Fujimori, ditador peruano nos anos 1990 (dir.). Foto: Reprodução

A dependência econômica do país frente ao mercado financeiro internacional, fruto da política neoliberal, levou o Equador a uma forte crise financeira em 1999. “Foi um governo terrível para o povo equatoriano, as pessoas estavam desacreditadas com o país”, afirma Pedro de la Cruz. 

Segundo o dirigente político, cerca de três milhões de pessoas deixaram o país em busca de melhores condições de vida, migrando, principalmente, para os Estados Unidos e Europa. Na época, o desemprego atingiu 18% da população, enquanto 52% estavam em condições de subemprego. A pobreza chegou a 83% dos equatorianos. 

Com o povo na rua, com destaque para os movimentos populares, principalmente indígenas, camponeses e taxistas, ainda no mês de março, o governo foi forçado a recuar diante suas intenções. No entanto, tal recuo foi pontual, e, meses depois, o governo aprofundou o pacote econômico neoliberal, alegando a deterioração da situação financeira. 

A perca de popularidade (a popularidade de Mahuad caiu de 66% em 1998 para meros 7% no final de 1999) e as grandes mobilizações finalizaram, mais uma vez, Jamil Mahuad recuar, realizando um acordo com o movimento indígena em julho. 

O povo equatoriano derrubou o presidente

A cartada final de Mahuad veio nos últimos dias de 1999, quando ele decidiu dolarizar de vez a economia equatoriana, adotando a moeda estadunidense para transações internas ao país. “Mahuad assumiu o governo prometendo mudanças, um governo para o povo”, lembra Pedro de la Cruz. “Mas, o que vimos, foi uma política que terminou com a dolarização da economia e a desvalorização do sucre”, afirma. 

No dia 14 de janeiro de 2020, o Parlamento Nacional dos Povos (PNP) foi instalado oficialmente, na capital do país, Quito. Representantes das 22 províncias do país se deslocaram para a cidade. 

Milhares de pessoas ocuparam cidades em todo Equador contra o governo de Mahuad. Foto: El Universo

O PNP foi um instrumento democrático de discussão sobre os temas centrais envolvendo o Equador. O Parlamento foi uma instância popular de debate e deliberação política e representou uma importante etapa do movimento indígena equatoriano como sujeito político central no país. 

Em sua resolução de abertura, o PNP defendeu “uma mudança total do modelo neoliberal por uma economia justa, solidária, ambientalmente sustentável, que reconhece a plurinacionalidade e a diversidade cultural, produtiva e democrática, orientada para o desenvolvimento humano”. 

O medo de que a instalação do Parlamento pudesse gerar mais manifestações contra seu governo fez com que Mahuad decretasse estado de emergência em todo país, com o Exército tomando as ruas e bloqueando as vias de acesso à capital. 

No dia 17 de janeiro ocorreu uma grande manifestação em todo país. “A cidadania voltou às ruas”, ressalta de la Cruz. Segundo o dirigente, aquelas mobilizações representaram um momento central na luta política equatoriana. “Víamos rios e rios de gente pelas ruas de Quito e em todo país”, destaca. Mesmo a forte repressão policial não foi suficiente para desmobilizar o levante. 

Seguindo-se pelos dias, no dia 20 de janeiro, o levante ocupou diversos órgãos públicos na capital. Nestas ações, a ocupação de dois prédios são de significativa relevância: a Suprema Corte do país e o Congresso Nacional – no qual a bandeira do movimento indígena foi hasteada.

“Para nós, uma mobilização é uma luta mais calma, pacífica”, explica de la Cruz. “Já um levante é algo maior, vamos até alcançar o que queremos, se temos que derrubar um governo, lutamos até ele cair”, ressalta. 

Além dos segmentos populares organizados, em especial, indígenas e camponeses, militares de patentes baixas e médias foram fundamentais para que o movimento alcançasse seus objetivos. Insubordinando-se contra seus superiores e evidenciando uma fratura no seio do exército equatoriano, estes militares, pobres, apoiaram as diversas ações realizadas pelo levante.  

Militares de baixa patente e outros segmentos populares se uniram para derrubar Jamil Mahuad. Foto: El Universo

Diante da pressão popular, falta de apoio político e com as forças militares divididas, Jamil Mahuad não teve outra opção que não fosse fugir do país. 

O legado do levante indígena 22 anos depois

“Mudanças estruturais não ocorreram”, afirma de la Cruz, ao resgatar os resultados do levante indígena. “Os militares logo assumiram o poder e depois veio Gustavo Noboa, vice de Mahuad”, lembra. O dirigente afirma que apesar de conseguirem conquistas pontuais – congelamento dos preços do gás e combustíveis, recuo das privatizações dos setores elétrico, petróleo e da previdência social – o saldo imediato do levante não foi grande. “Nos sobraram as migalhas”, destaca. 

Apesar de não conseguir tantas conquistas em curto prazo, o processo de mobilização indígena no Equador foi fundamental para a criação das bases que permitiram a eleição de Rafael Correa, em 2006, que fez parte do ciclo de governos progressistas na América Latina. Além disso, diversas outras revoltas populares – como as que ocorreram em 2019 contra o governo de Lenin Moreno – se inspiraram nos levantes da década de 1990. 

Mulher protesta em Cotopaxi, interior do Peru, contra o presidente Lenin Moreno, em 2019. Foto: David Diaz Arcos

Atualmente, o Equador é governado por Guilherme Lasso, político de perfil neoliberal. Pedro de la Cruz, no entanto, acredita que esta é uma situação transitória. “Chile era o exemplo dos neoliberais e a eleição de Gabriel Boric demonstrou o que o povo chileno acha dos governos neoliberais”, analisa de la Cruz. 

“A América Latina vive um movimento de pêndulo, entre governos progressistas e conservadores, isto nos dá esperança”, afirma o dirigente. O equatoriano ainda lembra que o Brasil tem papel central na política sul americana. “Se no Brasil o Lula vence, teremos uma grande avalanche em toda América do Sul, que vocês possam compartilhar com a gente esta bandeira de rebelião, luta e esperança”, finaliza. 

*Editado por Fernanda Alcântara