Golpe de 1964

O apoio dos EUA ao golpe militar no Brasil: teoria da conspiração?

Artigo analisa participação dos Estados Unidos da América (EUA) no golpe de 1964 e na política brasileira até hoje
Arte: @crisvector

Por Rodrigo Lentz e Ana Penido – Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Da Página do MST

“De repente me lembro do verde, a cor mais verde que existe.
A cor mais alegre, a cor mais triste. O verde que vestes, o verde que vestiste. 
De repente vendi meus filhos pra uma família americana.
Eles têm carro, eles têm grana, eles têm casa, e a grama é bacana.
Só assim eles podem voltar e pegar um sol em Copacabana”.

Caetano Veloso e Leminski

58 anos atrás, um golpe militar derrubou o governo constitucional de João Goulart e deu início a uma longa ditadura. Na época, muito se especulou sobre a participação dos Estados Unidos da América (EUA) no episódio, especialmente em virtude do acirramento dos conflitos da Guerra Fria na América Latina desde a Revolução Cubana, em 1959. Seria a participação dos EUA real ou uma teoria da conspiração inventada pela esquerda anti-imperialista?

Desde 2014, o então vice-presidente de Barack Obama e atual presidente estadunidense – Joe Biden, compartilhou com o Brasil um conjunto de documentos anteriormente secretos da chamada “Operação Brother Sam”. A pedido dos golpistas brasileiros, os EUA se preparam para amplo apoio operacional deslocando sigilosamente uma frota da Marinha dos EUA para o Atlântico Sul (com destino final ao porto de Santos). Além disso, foi autorizado o envio de cem toneladas de armas leves e munições; navios petroleiros; uma esquadrilha de aviões de caça; um navio de transporte de helicópteros com 50 unidades a bordo, tripulação e armamento completo; um porta-aviões; seis destroieres; um encouraçado; um navio de transporte de tropas e 25 aviões para transporte de material bélico. Esse amplo arsenal deixa claro que os militares golpistas brasileiros utilizaram o apoio estadunidense como força de dissuasão de qualquer resistência, fosse ela entre civis ou militares; e que se organizaram para uma hipótese de guerra civil. Empresários paulistas também se prepararam e encomendaram à CIA três navios-tanques cheios de petróleo, capazes de manter a produção caso oleodutos fossem destruídos pela guerra civil.

Como é sabido, a resistência foi diminuta, acompanhando a decisão de João Goulart de não confrontar a deposição. Nesse contexto, boa parte desse material bélico nem chegou a ser enviada ao Brasil. E o que chegou, não foi utilizado. Foi suficiente para o sucesso do golpe o engajamento da diplomacia dos EUA. Jango foi comunicado pelo embaixador que o país reconheceria quem assumisse o poder em seu lugar, mesmo que através de golpe.

Voltemos alguns anos para identificar de onde vinha toda essa intimidade. Embora já existisse o anticomunismo entre os militares brasileiros, é a partir da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria que ele se entranhou nas forças armadas e na burguesia local. O investimento dos EUA foi especialmente na conquista dos corações e mentes dos militares brasileiros, utilizando-se para isso da educação e inteligência militares. As promessas de equipamentos modernos seguiram sendo apenas isto, promessas. 

Na educação, o engajamento brasileiro na 2ª Guerra Mundial subordinado aos EUA gerou admiração nos militares anticomunistas que, ao menos desde 1943, passaram a estagiar na Escola de Comando e Estado-Maior de Fort Leavenworth (EUA). Além disso, uma missão estadunidense chegou ao Brasil em 1948 e ficou até 1960, com o objetivo de auxiliar os oficiais militares alinhados a construírem sua hegemonia dentro da organização militar e junto da elite civil conservadora em torno do binômio desenvolvimento capitalista e segurança nacional. É nesse bojo que foi construída a Escola Superior de Guerra (ESG), unindo numa mesma instituição o que nos EUA se fazia em separado – segurança na War College e desenvolvimento na Industrial College. O complexo IPES (Instituto de Pesquisa Social) e IBAD (instituto Brasileiro de Ação Democrática) realizou atividades de inteligência, agitação e propaganda, produzindo informações conspiratórias e conteúdos anticomunistas para disputar a opinião pública. Somente para livros a serem distribuídos entre oficiais, os EUA destinaram US$60 mil dólares em 1963. Além disso, só em 1963, cerca de 1.700 exibições de filmes “progressistas” foram organizadas em quartéis, escolas, bases e navios.

Na área de inteligência a influência dos EUA também já estava consolidada muito antes do golpe. Durante o governo Kubitschek (1956), o Serviço Federal de Informação e Contra-informação foi reestruturado pelo coronel Humberto de Souza Mello que, juntamente com outros militares, estagiaram nos EUA – visitando o Departamento de Estado, a CIA e o Departamento Federal de Investigações – e lendo seus autores como Ransom, cuja obra “Central Intelligence and National Security” publicada em 1958, cunhou o conceito de “comunidade de informações”. Em 1959, durante o Curso de Informações na ESG, Mello propôs uma adaptação do modelo dos EUA para criar o “Sistema Nacional de Informações” brasileiro, voltado para a segurança interna e destinado a produzir conhecimento sobre vulnerabilidades nacionais, avaliações estratégicas da conjuntura, assim como a execução e o planejamento de políticas governamentais. 

Essas duas áreas centrais à batalha das ideias foram fundamentais para a campanha de desestabilização de Jango, mas a ajuda se estendeu ao bolso. A “Aliança para o Progresso”, criada por Kennedy em 1961 para evitar novas Cubas, destinou cerca de US$ 10 bilhões à América Latina, junto a investimentos privados de até US$ 20 bilhões. Para se ter uma ideia, o Plano Marshall, projeto destinado à reconstrução da Europa depois da guerra, destinou US$ 13 bilhões. Nas eleições brasileiras de 1962, a oposição de direita recebeu cerca de US$ 5 milhões através de empresas dos EUA. 

Portanto, embora a influência dos EUA tenha sido relevante para o golpe em abril de 1964, ela somente foi possível por uma ação de médio prazo em áreas estratégicas da organização do Estado e da sociedade nacional durante o período democrático. Em 1964, o passado se fez presente. Em 2022, o passado segue se fazendo presente e usando praticamente das mesmas armas. 

Desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, se ampliaram os exercícios conjuntos do Exército e da Polícia Federal brasileiros com agências dos EUA. Em 2017, os EUA participaram de um exercício militar na Amazônia a convite do Brasil, com fundamentação humanitária. Voltaram em 2020, agora tendo como hipótese um conflito com a Venezuela na área de fronteira; e novamente em 2021, para um exercício no Sudeste pensado para conflitos em áreas urbanas. Os cursos em território estadunidense também veem num crescente. Apenas na Whinsec (nome atual da Escola das Américas da época da ditadura militar), 41 militares brasileiros fizeram o curso nos últimos três anos de governo Bolsonaro, diante de 41 enviados nos dezoito anos anteriores. Assim como no pré 1964, a cooperação se estende à área de segurança, se materializando em cursos e exercícios conjuntos com a polícia federal brasileira.  Por fim, está em pauta também a entrada do Brasil em programa de cooperação com a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e mantemos um subcomandante brasileiro no Comando Militar do Sul, organismo estadunidense. 

Salienta-se que, nas relações militares entre o Brasil e os EUA, o passado segue presente. Entretanto, diante da atual transição hegemônica em curso e do conflito entre os EUA e a China que ganhou contornos dramáticos na Ucrânia, o alinhamento subordinado ao Brother San coloca cada vez mais em cheque o nosso futuro. 

*Editado por Fernanda Alcântara