Aromas de Março

Humanidade-Mãe

Coluna Aromas de Março discute sobre as determinações sociais que perpassam a maternidade e a importância da Mãe Sem Terra e militante social, em romper com a naturalização e sobrecarga de ser mãe
Foto: MST
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Por Lizandra Guedes*
Da Página do MST

Quando meu filho nasceu, uma ideia não podia mais sair da minha cabeça – dizem que a mulher só se sente completa depois de ser mãe, mas eu passei a achar que era bom, bom mesmo, que a gente se sentisse bem completa antes de ter um filho, porque alguns pedaços ficam pelo caminho depois que eles nascem.

Certamente a experiência da maternidade é pessoal, cada uma de nós terá sentimentos diversos em relação a isso, mas não podemos ignorar que ela seja atravessada por determinações sociais, o que implica dizer que estão mediadas por questões de classe, raça/etnia e gênero. Ou seja, esta experiência é marcada por nossas condições materiais, nossa cor e pelo que se impõe, ou se espera, do papel das mulheres na sociedade.

No entanto, o que nos contam… no que nos fazem acreditar é bem diferente. Primeiro a maternidade aparece como algo NATURAL – biológica, inata, como se ser mãe fizesse parte de nós mulheres, desde o nosso nascimento e que isso indicaria que temos em nós, instintivamente, tudo aquilo de que precisamos para exercermos esta função.

Desta concepção se desdobra um caráter. A maternidade aparece como COMPULSÓRIA – uma obrigação de toda mulher, muitas vezes atravessada pela religião. E, por fim, UNIVERSAL – fornecendo uma única narrativa desta experiência, sempre boa, bela e verdadeira, segundo a concepção burguesa de vida.

Ser mãe, então, torna-se uma experiência totalizadora, onde não há lugar para os sentimentos contraditórios que esta provoca, podendo causar grande sofrimento psíquico e culpa. Recordo aqui das propagandas de produtos para bebês, onde as mercadorias desfilam cobertas pela luz dourada da alegria pueril dos pequenos. Nelas não há lugar para o esgotamento físico e emocional das noites sem dormir, para a vontade de se ter só para si, fazendo com que aquele bebê desaparecesse por um tempo para que se possa comer, tomar um belo banho, organizar as ideias. Parece não haver lugar também para o recorrente abandono paterno e o medo de como vamos dar conta de tudo isso, diante de um futuro tão incerto, que aguarda também nossos filhos e filhas.

Ali, na telinha, estes sentimentos são silenciados, assim como são evitados pelas mulheres por medo do que podem pensar delas. Afinal, que tipo de mãe seriam se não aceitassem padecer no paraíso da maternidade?

A maternidade pode nos trazer experiências incríveis e humanizadoras, mas também pode ser sentida como violência, causar sofrimentos difíceis de superar, ainda mais se estes forem silenciados. Por isso, é preciso assumir como tarefa urgente a complexificação do que se compreende por maternidade, poder lê-la no movimento das contradições sociais que nos formam como sujeitos. Um campo de compreensão onde caibam uma mãe negra da periferia, uma mãe Krikatí de uma aldeia do Maranhão, uma mãe camponesa da caatinga pernambucana, uma mãe em depressão, que rejeita seu filho, uma menina que teve a infância violentada pela maternidade, uma mãe militante do MST.

A MÃE

A mãe trocou de roupa.
A saia virou calça;
os sapatos, botas;
a pasta, mochila.
Já não canta cantigas de ninar,
canta canções de protesto.
Vai despenteada e chorando
um amor que a envolve e assombra.
Já não ama somente seus filhos,
nem se dá somente a seus filhos.
Leva suspensas nos peitos
milhares de bocas famintas.
É mãe de meninos maltrapilhos
de molequinhos que rodam pião em calçadas empoeiradas.
Pariu a si mesma
sentindo-se — às vezes —
incapaz de suportar tanto amor sobre os ombros,
pensando no fruto de sua carne
— distante e sozinho —
chamando por ela na noite sem resposta,
enquanto ela responde a outros gritos,
a muitos gritos,
mas sempre pensando no grito solitário de sua carne
que é um grito a mais nessa gritaria de povo
que a chama e lhe arranca até os próprios filhos
de seus braços.
(Gioconda Belli, Nicarágua, poeta que também foi guerrilheira)

Ser uma mãe Sem Terra, uma mãe militante social, nos impulsiona a pensar sobre todas estas contradições, pois não são poucas as vezes que nosso cotidiano de luta e tarefas políticas nos impõe dilemas, escolhas difíceis atravessadas por grande pressão social. Como conciliar as tarefas, as viagens com o cuidado com as crianças? Ainda mais quando entram em idade escolar.

Como mãe militante, poderia trazer presente muitas histórias vividas em nosso Movimento, das alegrias de ter um filho criado compartilhado com a companheirada, da comunhão com as mulheres na partilha de experiência, das tantas cirandas em que ele ficava feliz, enquanto eu participava tranquila das atividades, dos dias de caos absoluto numa atividade sem a ciranda… Mas me vem a vontade de partilhar com vocês um momento de libertação, sendo mãe.

Mês passado fui convocada para uma tarefa que implicava passar cerca de 10 dias fora de casa, o que impõe desafios tendo filho em idade escolar, o pai da criança morando em outro país, uma companheira que passa parte da semana militando na escola do assentamento, somando-se ao fato que parte da nossa rede de apoio camarada também estava em viagem. Em outras circunstâncias teria que recusar a tarefa, mas o filhote está crescendo, do alto dos seus quase 13 anos, dá conta das responsabilidades da escola, se vira minimamente na cozinha, acho que não vai pôr fogo na casa, nem matar a gata de fome – só precisa que algum dos compas venha à noite para dormir com ele nos dias em que estaria sozinho em casa. Assim, arrumei a boroca e parti pra tarefa, feliz de poder contar com minha companheira (que certamente ficou mais sobrecarregada durante minha ausência), com os camaradas pelas noites de companhia ao meu filho, com o pai dele que estudou junto para as provas pelo zoom, com meu filho por sua independência e leve, muito leve com minha maternidade militante.

Mas voltando ao tema da compulsoriedade e ao início desta breve divagação, ser mãe deve ser ato de vontade, porque, sim, é uma tarefa para sempre e muda muito quem passa por ela, entre ganhos e perdas. Temos que poder tomar a decisão consciente de sermos mãe, decisão que passa longe da biologia – já diriam as mães que adotaram seus rebentos. Então, é necessário também romper com o tabu em relação ao direito ao aborto, que deve ser uma escolha feita exclusivamente pelas mulheres, com segurança e livre de julgamentos morais ou legais.

No mais, dizem que todas as mulheres, de uma forma ou de outra, são mães, tendo ou não filhos seus. Bem, talvez nesta sociedade patriarcal em que vivemos, em que as mulheres são responsáveis por quase todas as tarefas de cuidado, todas sejamos mães. Ou se basearmos a ideia de ser mãe como aquela que ama incondicionalmente, zela, acolhe, forja esperança no novo, também poderíamos dizer que somos todas mães. Mas será que estes são atributos das mulheres, ou não seriam atributos que projetamos para toda a humanidade? Será que lutamos por um mundo onde possa haver uma humanidade-mãe?

Mátria livre! Feliz dia das mães às lutadoras do povo!

*Integra a coordenação nacional do setor de Gênero do MST.

**Editado por Solange Engelmann