Entrevista

Acampamento Ana Primavesi: Entrevista traz desafios da região

Comissão Pastoral da Terra faz entrevista com direção do MST no Distrito Federal
Foto: Acervo do MST no DF

Da CPT Goiás

Em entrevista à CPT Goiás, a Direção Estadual do Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra do Distrito Federal e Entorno (MST-DF) conta um pouco sobre a situação do Acampamento Ana Primavesi e sobre as denúncias e reivindicações que estão sendo feitas pelo movimento em relação à situação das terras públicas do núcleo rural do Rio Preto (Planaltina-DF). Confira:

Quando a ocupação Ana Primavesi teve início e como foi o processo de entrada na área onde ocorreu o despejo?  Qual é a situação legal da área ocupada e qual foi o objetivo da ação? 

O Acampamento Ana Primavesi existe há dois anos. Esteve inicialmente em uma área provisória, na região da Fazenda Sálvia, entre Planaltina (DF) e Sobradinho (DF), uma área pública da Secretaria de Patrimônio da União. As famílias não tinham mais como permanecer lá, porque há um tensionamento na luta ali, uma peleja já histórica com a SPU. 

São 250 famílias que ali se encontravam e, sem condição prosseguir na área, o MST organizou essa ocupação na região do Núcleo Rural do Rio Preto, que é em Planaltina, já quase divisa com Goiás, uma região muito grande de expansão do agronegócio, com predominância do milho e soja, uma região rica em água, rica em biodiversidade, porém comandada pelos setores do agronegócio tradicional em sua esmagadora maioria. 

Essa ocupação no Rio Preto durou 7 dias. Sofremos despejo por ação judicial no dia 6 de maio, nós ocupamos do dia 29 para o dia 30 de abril, dentro do Abril Vermelho, na Jornada de Luta pela Terra, em defesa da Reforma agrária popular, que tem como lema, esse ano: Por Terra, Teto e Pão

Nós ocupamos ali porque essa região tem mais de 1.300 contratos de uso de terras públicas da Terracap, que é a agência de terras do DF, dados concretos mostram que a maior parte deles são contratos ilegais, vencidos! Não há vistoria, há muito arrendamento e sublocação das terras pelos cessionários originais para terceiros, o que configura grilagem, e a terra segue sem cumprir sua função social, ambiental e produtiva. Os cessionários estão vivendo de renda de terras que são públicas, do “rentismo”, como a gente chama. 

Então ocupamos para denunciar as várias áreas ali que estão nessa condição. Nossa cobrança é que a Terracap e o governo do Distrito Federal identifiquem todas essas áreas, façam uma revisão profunda dos contratos e que os contratos que estiverem legais prossigam e que as terras que estiverem com contratos legais, que são muitas (o governo sabe), sejam colocadas à disposição do Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais do DF, o PRAT, para que as famílias sem-terra, as famílias camponesas possam ser assentadas a curto e médio prazos. 

Então a ocupação visou essa denúncia. Tivemos duas vitórias na justiça, uma negação de reintegração de posse e uma solicitação, a partir de uma liminar, de desobstrução da chegada de alimentos, e sofremos a reintegração de posse no dia 6. 

Por quais conflitos/ameaças/violências essas famílias passaram e/ou estão passando?

Nessa semana, essas famílias passaram pelos mais escabrosos problemas. Esses fazendeiros que acham que podem tudo, que são donos exclusivos de um território que é área pública. [Nesses dias de acampamento] eles fecharam as entradas, impediram que a comida e a água chegassem a companheiros e companheiras acampadas, deixaram as crianças e os idosos passar fome. Segundo a Defensoria Pública da União, eles tentaram matar nossas famílias para garantir o que eles consideram que é o seu direito e propriedade, e que na verdade é um espaço público. 

Eles jogaram bomba dentro do acampamento, uma companheira de 17 anos ficou com problema sério nos ouvidos e está em choque até hoje. Vamos cobrar judicialmente pela pressão que eles colocaram, ateando fogo nos arredores, pela forma violenta como eles agiram contra os companheiros que estavam lá acampados. Nossas famílias sempre prezando pela paz, pelo não conflito, e eles tensionando.

Foi uma semana de muita fome, de negação do estado. Ao mesmo tempo, ficou nítido que a polícia, o estado, estavam ao lado deles [dos fazendeiros], então foi muito complicado, muito difícil mesmo. Não tem nada pior do que você, num espaço público, ser negado a receber comida, a poder sair e voltar de um espaço público, né, e tudo isso com a conivência do estado e do governo federal que mostrou de que lado eles estão, o que é que eles colocam como condução e desenvolvimento da sociedade, algo muito triste, muito problemático.

A Defensoria Pública da União, a Defensoria Pública do Distrito Federal e outros órgãos foram solidários e trabalharam nessa linha de ajudar a distensionar e criar espaço pra que a gente de fato pudesse resolver esse problema.

Essas famílias foram despejadas e continuam na insalubridade. Elas já estão juntas acampadas desde 2020 e essa área para onde retornaram agora é uma área muito difícil de se viver, não tem água, já houve uma reintegração de posse anterior, e agora elas dependem que a gente possa, enquanto organização, encontrar outra área para onde ir, porque não adianta ficar pulando de um lado para outro sem ter a perspectiva de assentamento ou de seu reconhecimento como famílias acampadas. Elas têm uma identidade de coletivo, de comunidade, e querem encontrar uma área onde elas tenham horizonte, perspectiva de construir algo. 

Qual é a situação ambiental/produtiva da área ocupada?

Essa ocupação colocou a público a bagunça que é a questão fundiária no Distrito Federal hoje. Há notoriamente uma relação promíscua entre esses produtores do agronegócio e o governo do DF, que passa panos quentes em cima da questão, enquanto o programa de reforma agrária não disponibiliza terra suficiente pra quantidade de famílias sem-terra que tem aqui. O que é terra fértil, o que é terra agricultável, eles colocam na mão de grandes agricultores e reservam apenas o que é terra mais arrasada, com menor potencial produtivo, para os pequenos produtores.

A situação ambiental é calamitosa, porque são áreas ambientalmente muito boas, porque é uma área de recarga aquífera, de manancial, de reserva ambiental, que são exploradas na lógica que o agronegócio opera, com pulverização aérea de agrotóxicos e utilização de adubação química, monocultivo de produção, sem diversidade. Você pode pesquisar sobre a COARP, Cooperativa dos Produtores do Rio Preto (DF). Eles dizem qual é a linha: não é a de produzir comida para o povo, é a de produzir commodities, com a finalidade de gerar lucro e renda. Então não cumpre sua função social, nem sua função ambiental e nem sua função produtiva para o DF. 

A nossa tarefa foi mesmo ocupar para retomar o debate, denunciar e pedir a revisão dessas terras e incluir as terras ilegais no programa de reforma agrária, o que é legal. Existe até um decreto aqui no DF que cria, desde 1997, revisado ano passado, o Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais do DF. Então a gente pressiona para que as terras que são cedidas publicamente e não cumprem sua função sejam destinadas a famílias e ao programa de reforma agrária do DF. 

O que a comunidade acampada espera do poder público e da sociedade neste momento?

Do poder público espera-se muito pouco, então fazemos luta, pressão popular. Eles conseguiram Reintegração de Posse por meio de um desembargador, mas eles não têm documento da terra. Há uma incompatibilidade, não há como eles comprovarem que são donos dessa terra porque o dono dessa terra é o Estado.

Vamos cobrar o governo do Distrito Federal em todas as pautas que foram colocadas na mesa e não foram cumpridas, desde a revisão de todos os contratos de concessão pública da região e até a revisão do planejamento de utilização dessa região. 

A gente espera que a sociedade se mobilize, sobretudo as organizações da sociedade civil, que manifestem sua solidariedade e mostrem que o lado certo da história está do lado dos trabalhadores rurais que clamam há anos para que uma política de reforma agrária básica seja executada aqui no DF e assim se possam construir os cinturões verdes, os assentamentos sustentáveis, se possa debater a agroecologia, a produção de alimentos saudáveis, o cuidado com o meio ambiente.

É isso que o MST já faz aqui nas áreas de assentamento, e a diferença é essa: a gente produz alimento saudável com agroecologia de um lado, com cooperação, com organização produtiva, e a gente vê do outro lado a individualidade e o agronegócio destruidor, que opera ocupando terras públicas irregularmente, comandando esses territórios com força, violência, veneno, produzindo desmatamento, insustentabilidade ambiental, produzindo uma, duas, três culturas e achando que move o mundo. Produzindo dinheiro e poder para eles mesmos, para criar uma elite política que domina um território e não está preocupada com a questão social, com a questão produtiva de alimentos. 

Eles estão preocupados apenas com os bolsos deles. E o MST vai seguir fazendo luta pela terra com justiça, com coerência, e reivindicar que o que está irregular seja revisto. Vamos lutar para que parte das terras públicas do DF seja destinada para o povo camponês, agricultor familiar, trabalhador. A gente vai vencer.