Marxismo

Mariátegui e o MST

Em 14 de junho, completa-se 228 anos do nascimento de José Carlos Mariátegui. O jornalista e intelectual marxista, pensou a cultura como um ato político
Foto: Reprodução

Por Olivia Carolino*
Para Página do MST

Em 14 de junho deste ano, completa-se 228 anos do nascimento de José Carlos Mariátegui, em Moquegua, Sul do Peru, em 1894. É o ano que no Brasil também celebra 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. Nos marcos dessas comemorações, em maio desse ano, o MST ocupou o Theatro Municipal de São Paulo estreando na ópera “Café”, de Felipe Senna, criada a partir do libreto de Mário de Andrade, publicado em 1942. A obra que recebeu uma adaptação contemporânea dirigida pelo dramaturgo Sérgio de Carvalho, contou ainda com a participação de Juçara Marçal, Negro Leo, Carlos Francisco, entre outros artistas, que foram aplaudidos(as) de pé pelo público.

A  cultura como um ato político é uma forma de reivindicar e homenagear Mariategui. A contribuição desse auto se relaciona exatamente a uma cultura latino-americana de resistência às formas de colonização e a possibilidade de criação de uma cultura de libertação que é imprescindível na América Latina. O autorreconhecimento da América Latina passa pelo reconhecimento da necessidade de autonomia de “pensar com cabeça própria”, que precisa ser valorizada e atualizada como um elemento fundamental para criação de uma cultura de libertação.

Mariátegui viveu num tempo que faz seu legado ainda mais valioso para nós. Os breves anos vividos pelo peruano José Carlos Mariátegui (1894 – 1930) foram marcados por e acontecimentos históricos cruciais, dos quais destacamos: a Revolução Mexicana (1910 – 1920); a primeira Guerra Mundial (1914-1918); a Crise de 1929; a Revolução Russa (1905 / 1917); a fundação da III Interacional Comunista; a Reforma Universitária iniciada na Universidade de Córdoba na Argentina (1918). E a insurreição Salvadorenha de 1932. Podemos dizer que esse período significou a aceleração do tempo histórico diante da ruptura da imagem de uma Europa “civilizada” causada pela guerra e da perspectiva de expansão da Revolução proletária.

Nesse contexto de iminência de Revolução mundial em alguns países da América Latina ocorreram fissuras na hegemonia liberal oligárquica, que caracterizava as sociedades latino-americanas até então. É o caso que entra em cena na ópera Café, ao narrar os contornos da crise de 1929 no Brasil que afetou o país colocando limites históricos à dinâmica agroexportadora da cultura do café. A dramaturgia perpassa um crítico momento da história, onde as famílias camponesas expulsas do campo protagonizam uma revolução popular. 

Já no Peru, as intensas mobilizações que marcaram o ano de 1919, greves operárias, mobilizações das classes médias e levantes camponeses, levaram à ditadura do dissidente Augusto Leguía, vigente de 1919 até 1930, que corresponde ao período chamado “La Patria Nueva”. O governo de Leguía, a princípio atendeu reivindicações do movimento social e sinalizou uma política de intervenção estatal na economia no sentido da industrialização do país. Mas, no entanto, essas medidas não foram suficientes para responder às aspirações da onda de manifestações da sociedade peruana. Diante das limitações da proposta de Leguía para transformação do Peru, esse governo assume uma postura de perseguir os movimentos sociais, operários, camponeses e estudantes da época. 

Mariátegui é uma figura que concentra uma personalidade militante e intelectual no período revolucionário de 1920 e 1930.  Proveniente da classe trabalhadora do Peru, desde muito cedo começou a trabalhar no Jornal “La Prensa” (1909), ofício que tornou o jovem comprometido com o trabalho uma referência envolvida com cultura e questões sociais. De modo que, em 1919 quando funda o Jornal oposicionista “La Razón”, sofre perseguições do governo de Leguía a ponto de ter que deixar o país. No tempo que passou na Europa entre outubro de 1919 a março de 1923, teve contato com o marxismo e, nas palavras do próprio, saiu “da idade da pedra”.

Assim como o texto de Mario de Andrade – que serviu de inspiração para a ópera Café, Mariategui reconhece que a matriz liberal, em que fermenta o cultivo da nacionalidade burguesa, constitui um cunho político – ideológico inescapável.

Nas palavras do autor,

frequentemente se ouvem vozes de alerta contra a assimilação de ideias estrangeiras. Essas vozes denunciam o perigo de que se funda no país uma ideologia inadequada à realidade nacional. E não é uma manifestação de superstição ou de preconceito. Em muitos casos essas vozes partem do estrato intelectual. Poderia ser acusado de mera tendência protecionista, dirigida a defender os produtos e a inteligência nacional da concorrência estrangeira. Mas os adversários da ideologia exótica só recusam a importação de ideias contrárias ao interesse conservador. As importações úteis a esse interesse nunca lhes parecem mal, qualquer que sejam sua procedência. Se trata, pois de uma simples atitude reacionária, disfarçada de nacionalismo”. Mariátegui vai dizer que “o socialismo contemporâneo (…) é a antítese do liberalismo, nasce de suas entranhas e se nutre de sua experiência”.

Assim como foi ousado o MST rompendo as cercas do latifúndio da cultura e da arte, Mariátegui cometeu a ousadia no marxismo de refletir sobre a tradição comunitária do modo de produção indígena. Constatou que essa não pode resolver a inserção setorial do índio na sociedade burguesa, pois a tradição Inca constitui ela mesma um projeto nacional (e não meramente setorial) que foi derrotado pela “nação criolla”, que se cria a sombra da dominação colonial e se legitima por meio das formas do discurso ilustrado da ideologia do progresso.

MST “ocupa” Theatro Municipal de São Paulo com participação na ópera “Café”, de Felipe Senna. Foto: Maria Silva/Acervo MST

“A peruanidade, profusamente insinuada, é um mito, é uma ficção”. Essa poderia ser tranquilamente uma frase de Semana de arte moderna de 1922 sobre a “brasilidade”.

Na prática, o fracasso do indigenismo oficial de Leguía e de projetos de integração e educativos para incorporar setorialmente a população indígena dentro dos projetos dominantes, liberou “um objeto democrático-nacional” que já não pode seguir fluidamente dentro do discurso burguês.

Nas palavras de Matiátegui,

o Peru ainda é uma nacionalidade em formação. Que esta sendo construída sobre os inertes estratos indígenas e o aluvião da civilização ocidental. A conquista espanhola aniquilou a cultura incaica. Destruiu o Peru autóctone. Frustrou a única peruanidade que existiu. (…) A independência foi realizada pela população criolla. A ideia de liberdade não brotou espontaneamente do nosso solo. Seu germe nos veio de fora. Um acontecimento europeu, a revolução francesa, engendrou a independência americana. (… ) Um artifício histórico classifica Tupac Amaru como precursor da independência peruana. A revolução de Tupac Amaru foi feita pelos indígenas. A revolução da independência foi feita pelos criollos. Entre ambos acontecimento não houve consanguinidade espiritual nem ideológica”.

Nesse sentido, Mariátegui contribuiu para construir a noção de um “sujeito revolucionário nacional”. Dito de outra maneira, implicava em afirmar as estratégias interpretativas dos grandes relatos marxistas e entender que o marxismo não se limita a interpretar a sociedade burguesa, mas que é sobretudo uma crítica à interpretação burguesa da sociedade. Significava reinventar o status da interpretação como instância que constrói o pensamento simbólico e não somente o traduz. Significava, por fim, promover o surgimento de um sujeito que interprete sua realidade, pré-requisito para um marxismo propriamente latino-americano.

Grande parte do trabalho de Mariátegui no espaço crítico aberto na Revista Amauta se dedica à heterodoxia, sem a qual não poderia desenvolver no âmbito da teoria marxista a ideia de “peruanicemos al Peru”. Esse tipo de formulação herege leva Mariátegui a advertir que, para o caso peruano, o prioritário é a questão de como incorporar a “massa popular marginalizada da nacionalidade”, como vincular sua tradição e seu potencial revolucionário ao projeto socialista em um país não homogeneizado nem étnica, nem econômica, nem politicamente.

A presença da heterogeneidade que guia um projeto de construção nacional é percebida por Mariátegui como princípio pragmático e mobilizador, portador da dialética que levará sua própria superação na instância socialista. É um princípio que concebe as “massas populares” heterogêneas como portadoras da nação. Nesse sentido, a recuperação do índio como sujeito histórico e político faz com que a questão nacional assuma em Mariátegui um real e viável internacionalismo de potencial revolucionário, à medida que concebe a história e o futuro da América Latina a partir da perspectiva dos que estão à margem da nação moderna.

Talvez possamos afirmar que, assim como a Semana de Arte Moderna em 1922, Matiátegui,  buscou desmontar o núcleo ideológico do imaginário liberal de como a modernidade concebe nação é uma contribuição de Mariátegui para questão nacional que coloca desafios à práxis e a imaginação latino-americana. Mariátegui se atreveu a impugnar a certeza histórica do conceito de nação ao reconstruir um discurso histórico que atenta para necessidade das massas populares “entrarem na história” da construção da nacionalidade e nesse movimento se alçarem à sujeito nacional revolucionário.

A relação do nacionalismo com o socialismo relaciona-se ao entendimento de que os problemas nacionais não poderiam ter uma solução burguesa liberal na América Latina. A burguesia retardatária e formada pela associação de imperialismo e latifúndio são incapazes de levar a cabo as tarefas da emancipação nacional, reforma agrária, integração social e política das massas populares, sem as quais não se pode haver uma nação.

Mariátegui constata que diante da ausência de uma burguesia verdadeiramente nacional na América do Sul, a luta anti-imperialista deveria repousar nas camadas populares, pois acreditava que, nesses países, o fator classista era mais decisivo que o fator nacional. Propugnava que somente o socialismo, enquanto sistema econômico antagônico ao capitalismo, poderia significar uma barreira intransponível ao avanço do imperialismo: “somos anti-imperialistas porque somos marxistas; porque somos revolucionários; porque opomos ao capitalismo o socialismo como sistema, chamado antagônico.” 

Mariategui faz parte da heresia do Pensamento Crítico Latino Americano de buscar o enraizamento latino-americano do marxismo. Essa semeadura não encontrou condições para frutificar naquele momento, mas com certeza essa heresia, estreou no Teatro Municipal junto ao MST e a cultura!

Bibliografia

MARIATEGUI, J.C. (1929) Ponto de vista anti-mperialista. In: Mao Jr. J. R. Revolução Cubana e a Revolução Nacional. São Paulo, Ed do Autor, 2007.

“MST ocupa o Theatro Municipal de São Paulo junto a Ópera Café”. https://mst.org.br/2022/05/04/mst-ocupa-o-theatro-municipal-de-sao-paulo-junto-a-opera-cafe/ 

HEREDIA, F.M. “Vigencia de Mariátegui em la hora actual de nuestra América”. Cuadernos Casa de las Americas, 1994.

ESCORSIM, Leila. “Mariátegui, vida e Obra.” Ed. Expressão Popular, 2006. 

MORAÑA, Mabel, “Mariátegui y la “cuestion nacional”: un ensay de interpretació”, Cuadernos Casa de las Americas, 1994.

*Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

**Editado por Solange Engelmann