Solidariedade

Um ano da Cozinha Solidária São Marcos

A iniciativa já entregou 60 mil refeições gratuitas para pessoas em situação de vulnerabilidade social em Campinas
Foto: Márcia Molina

Por Luciana Alvarez*
Para Página do MST

No último dia 14 de junho, completou um ano a iniciativa de entrega de refeições gratuitas no almoço para pessoas em situação de vulnerabilidade social que é levada adiante pela Cozinha Solidária São Marcos, em Campinas. Funcionando no espaço da Paróquia de São Marcos, o Evangelista, que se localiza no bairro periférico do Jardim São Marcos, a cozinha solidária já distribuiu 60 mil refeições nesse um ano de vida.

A situação do Brasil, que voltou ao Mapa da Fome em 2018, só vem se intensificando desde então. E com a chegada da pandemia da covid-19, a insegurança alimentar passou a atingir metade da população brasileira. Assim, a ação de cozinhas solidárias no país é uma manifestação de solidariedade e organização popular na luta contra a fome que assola grande parte das brasileiras e brasileiros.

Foi, então, no contexto do auge da pandemia e do aumento brutal da fome no país, que a Cozinha Solidária São Marcos surgiu. A região, segundo o Padre Antonio Rodrigues Alves, é muito estigmatizada e viu a pobreza se aprofundar nos últimos anos.

Foto: Márcia Molina

Desde o início dessa atividade de solidariedade, companheiras do acampamento Marielle Vive, de Valinhos, têm participado ativamente do trabalho na cozinha, se voluntariando para produzir as refeições. Assim, numa ação conjunta, o acampamento do MST Marielle Vive, em Valinho, o Padre Rodrigues Alves, da Paróquia, e os integrantes do Núcleo de Economia de Francisco e Clara, da Arquidiocese de Campinas, se organizaram para oferecer alimentação de qualidade, solidariedade e dignidade às pessoas que têm fome na região.

Ao afirmar que a religião se ocupa de cuidar do espírito, o Padre se questiona como fazer isso quando o corpo está padecendo. O trabalho grandioso de oferecer refeições à pessoas em vulnerabilidade social mostra que, se o esforço da cozinha solidária é decuidar do corpo, essa iniciativa também ampara o espírito das pessoas atendidas.

Diariamente, cinco moradoras do acampamento Marielle Vive percorrem um trajeto longo, de Valinhos ao Jardim São Marcos, para preparar entre 400 e 600 refeições que são distribuídas no almoço às pessoas que se cadastrarem para receber a alimentação. As pessoas devem levar seus próprios recipientes, pratos, talheres e copos, já que na cozinha não são utilizadas embalagens ou marmitas descartáveis. Dessa forma, a Cozinha Solidária evita a geração desnecessária de lixo e promove uma conscientização sobre o cuidado com o meio ambiente.

É a Paróquia São Marcos, o Evangelista, que se responsabiliza pela arrecadação de alim

Mais do que alimentar pessoas em vulnerabilidade social, a cozinha solidária também se mostrou um projeto que alimenta a alma. Para Raymunda, moradora do acampamento Marielle Vive e coordenadora da Cozinha Solidária São Marcos, o projeto provocou reflexões sobre a vida e lhe ensinou muita coisa.

Segundo ela, a experiência de trabalho durante um ano na cozinha foi como uma faculdade da vida, porque a fez entrar em contato com diferentes pessoas, trabalhos e atitudes. Além de fazê-la pensar sobre a importância da solidariedade. O trabalho voluntário na cozinha também a fez ter mais vontade de estudar, terminar os estudos e ir pra faculdade.

Foto: Márcia Molina

A Cozinha Solidária São Marcos chamou a atenção até do Papa Francisco, que gravou um vídeo só para elogiar o trabalho realizado por lá. O vídeo pode ser conferido no perfil do Instagram do acampamento Marielle Vive (@acampamentomariellevivesp), no qual que ele diz: “…à Paroquia de São Marcos, São Paulo, envio uma saudação cordial e a minha benção. Sigam adiante, sigam trabalhando. Cuidando sobretudo dos mais desprotegidos, os que são mais deixados de lado. Eu rezo por vocês. E vocês, por favor, rezem por mim. Que Deus os abençoe e que a Virgem cuide de vocês.”

As pessoas que vão à cozinha solidária devem ir sozinhas, mas podem pegar a quantidade de refeições necessárias para alimentar todos os integrantes de suas famílias. É o caso de Rodrigo Fernando, 43, que mora no Jd. São Marcos desde que nasceu e está desempregado há 2 anos. Na sua casa vivem em 9 pessoas: ele, sua irmã e 7 sobrinhos pequenos. Vivendo apenas com a posentadoria de um salário mínimo, da irmã de Rodrigo, muitas vezes não conseguem comprar gás e assim a família tem tido dificuldade com a alimentação. Todos os dias, então, Rodrigo vai à cozinha solidária pegar as refeições para ele, sua irmã e seus sobrinhos, o que tem sido essencial para manter a família melhor alimentada.

Já Joana, 50, também está desempregada e tem dois filhos pequenos. Para arrecadar algum dinheiro, Joana cata papelão, mas precisa ir todos os dias à cozinha para poder alimentar seus filhos e a si própria. Tanto Rodrigo quanto Joana expressaram a importância que as refeições fornecidas têm tido para manter a eles e suas famílias. Sem esse intenso trabalho e a solidariedade dos voluntários, essas e tantas outras famílias estariam ainda mais vulneráveis à fome, que não deixa de persegui-los.

No seu diário “Quarto de Despejo”, Carolina Maria de Jesus escreveu que “a pior coisa do mundo é a fome” (Jesus, 2014, p.191). Há 64 anos, em 1958, num não tão distante 14 de junho, Carolina enfrentava mais um dia de luta contra a miséria e ganhava ossos no frigorífico, cena que vemos se repetir em todo o Brasil nos dias de hoje. Diante da fome, do desamparo e do desânimo, Carolina relatava em seu diário as agruras da pobreza e da fome, mas também demonstrava a sua força e a do povo trabalhador: “Então eu resolvi trabalhar porque eu não quero desistir da vida” (Jesus, 2014, p.61). Um pouco antes, no dia 10 de maio daquele ano, Carolina fez um diagnóstico que segue atual: “…O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.” (Jesus, 2014, p.29)

Foto: Márcia Molina

Em tempos de intensificação das desigualdades e vulnerabilidades sociais, quando a fome se alastra e assombra metade da população brasileira, a união e a solidariedade fazem a força daqueles que são desprotegidos e abandonados pelo Estado. A Cozinha Solidária São Marcos é um exemplo de que a organização popular pode enfrentar a fome, o sofrimento e as injustiças sociais. Também ensina que a luta coletiva pode ensinar o verdadeiro sentido da solidariedade e do trabalho.

É possível doar para a cozinha através de depósito na conta ou PIX:
Antonio Rodrigues Alves
CPF: 019.540.665-62
Banco Bradesco
Agência: 1969-0
Conta Poupança: 10029139
Chave PIX: Celular – (19) 99135-8282

*Cientista social (Campinas/SP).

**Editado por Maiara Rauber