Rádios Camponesas

Rádios camponesas do MST ocupam “latifúndio da comunicação”

Prisão de comunicadores e apreensão de equipamentos foram rotineiras na história das rádios comunitárias dos sem-terra; prestação de serviço, música regional e futebol ajudaram a integrar os assentamentos às comunidades locais
As Rádios Camponesas têm sido uma ferramenta de luta dentro dos territórios Sem Terra. Foto: Divulgação

Por Nanci Pittelkow
Do De Olho nos Ruralistas

Fazer rádio comunitária não é fácil. As condições não são estáveis, a infraestrutura muitas vezes é adaptada e a participação tem altos e baixos. Mas, para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), manter rádios comunitárias camponesas é, e sempre foi, essencial para a comunicação interna, a ampliação do relacionamento com as comunidades e o fortalecimento da luta.

“As rádios do movimento também são uma ocupação, mas uma ocupação do latifúndio do ar”, afirma Camila Bonassa, da comunicação do MST e responsável pela Rádio Camponesa de Itaberá (SP), disponível na estação FM 96,7. “As rádios ampliam o alcance da nossa voz por outros meios, para um público interno e externo”, diz Camila.

Ocupar as rádios é importante, pois elas chegam onde outros meios de comunicação não chegam. Foto: Divulgação.

Segundo levantamento recente, o MST conta com 17 rádios e cinco programas em veículos locais, distribuídos por todo o Brasil. Doze delas possuem transmissão via internet.

A ideia de se comunicar pelo rádio vem desde o início do movimento. “O Brasil é um país de uma oralidade muito forte”, aponta Camila. “O rádio é bastante presente entre as populações do campo, pois chega aonde TV e jornais não chegam”. O Jornal Sem Terra, por exemplo, já existia como voz do movimento, mas não tinha um alcance nacional.

Primeira iniciativa de Rádio Camponesa completa 35 anos

A primeira experiência do MST em radiodifusão se deu em 1987, apenas três anos após a fundação do movimento, com um programa semanal gravado em fita K7 e transmitido em uma emissora ligada à TV Aparecida, de São Paulo. O programa durou um ano. Nas diversas regiões onde o movimento se consolidava, outros programas em rádios comunitárias, comerciais ou ligadas a instituições, como igrejas, começaram a surgir.

Com a ascensão das rádios comunitárias na década de 1990, os sem-terra começaram a instalar canais nos assentamentos. Ao longo do processo, as rádios foram se constituindo de acordo com cultura local, as necessidades de comunicação, o relacionamento com o entorno e o perfil e disponibilidade dos responsáveis. A Rádio Terra Livre, em Hulha Negra (RS), é apresentada e operada pela juventude sem terra. Já a Rádio Camponesa de Crateús (CE) reúne pessoas da terceira idade e aposentados.

A Rádio Camponesa de Itaberá (SP) surgiu em 1998, depois de um laboratório de 10 dias com os interessados. O que faz a dinâmica é a cotidiano, com vários momentos de formação, oficinas, seminários e o ‘fazer junto’”, conta Camila Bonassa. “O programa Domingo Alegre, que toca muita música ao vivo, existe desde o início e serve como ponto de encontro e confraternização para a comunidade”. O programa é um exemplo de como a prática e o aprendizado se mantêm mesmo com a troca de apresentadores e operadores.

Rádio Terra Livre sofreu com prisões e apreensões de equipamento

Uma das primeiras rádios do movimento foi a Terra Livre, instalada em Hulha Negra (RS) em outubro de 1996. Um mês depois do início das transmissões, agentes da Polícia Federal e do extinto Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel) tentaram fechá-la.

“Quando eu vi os policiais chegando com armas, eu corri para o estúdio e abri o microfone”, relembra Argeni Argeu de Quadros, que atuou na transmissão por 18 anos. “Não tive alternativa, pensei que fossem me matar. Comecei a chamar as pessoas pelo rádio. Os assentados chegaram, o pessoal da cooperativa próxima, os alunos da escola, o povo todo veio”. Nesse momento, os agentes desistiram de apreender os equipamentos e levar os responsáveis. Depois, a rádio foi fechada por alguns meses e voltou a funcionar no ano seguinte.

Nestes 35 anos, as Rádios organizam sua programação de acordo com a cultura local. Foto: Divulgação.

Na época, a rádio era o principal meio de comunicação entre oito assentamentos em uma região de difícil acesso e sem nenhuma rádio comercial atuando no município. Mesmo assim a repressão se repetiu. “Eu cheguei a ser preso umas 3 ou 4 vezes”, conta Argeu. “Além da comunicação, o rádio para mim é o maior veículo de formação para as massas”, reflete.

A Terra Livre de Hulha Negra surgiu para romper com a hegemonia das rádios locais de outros municípios, que se posicionavam contra o movimento, criminalizando-o. Hoje, a situação mudou.

“Fizemos um levantamento recente e estimamos que 10 mil pessoas escutam a rádio diariamente”, informa Ivan Sotilli, atual coordenador da transmissão. “Hoje treinamos os jovens para apresentar, operar os equipamentos, selecionar músicas, e eles já estão nessas funções”, completa.

Futebol aproximou assentados e comunidades em Crateús

O assentamento Palmares, o primeiro do MST no sertão de Crateús (CE), sofreu com ataques desde o início. O primeiro passo para lidar com a situação foi a distribuição de um jornal. O segundo, ocupar o latifúndio do ar.

“A comunicação é fundamental no processo de luta pela terra”, fala Pedro Neto, assentado, dirigente do MST e responsável pela Rádio Camponesa FM Palmares. “A rádio é uma resposta objetiva à necessidade de comunicação interna e integração com a sociedade da região em defesa da reforma agrária”.

As Rádios são apresentadas e gerenciadas pelo própria comunidade. Foto: Divulgação.

Pedro Neto conta que já gostava de rádio. Ele e o colega radialista Antônio de Maria se formaram em comunicação social com habilitação em jornalismo na primeira turma do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), em 2011. A rádio foi fundada em 1º de abril daquele ano e, para ter pessoas habilitadas para operar a emissora, foram realizadas oficinas com toda a comunidade, constituindo-se um coletivo de 20 assentados.

Desses encontros surgiu a ideia de ampliar a comunicação para além do assentamento, atingindo as comunidades do entorno. E a resposta para essa demanda foi o futebol. Hoje a Rádio Camponesa conta com uma equipe esportiva cobrindo todo o futebol de várzea e jogos oficiais locais. A equipe possui uma cabine própria no estádio de Crateús. “Um coordenador chegou a ser convidado para narrar jogos em rádios comerciais, mas não aceitou”, conta Neto. “Na Rádio Camponesa ele consegue conciliar a função de narrador com o cuidado de seus animais e do seu roçado”.

Uma peculiaridade da transmissora é contar com comunicadores de mais idade, alguns já aposentados. “Com o trabalho na rádio, ganharam novo ânimo e mais autoestima”, conta Neto.” O Raimundo Bombom se arruma todo para apresentar os programas”.

As atividades nas Rádios envolvem pessoas de diversas gerações: crianças, jovens e idosos. Foto: Divulgação.

Campanha em Alagoas incentivou jovens a tirar o título de eleitor 

Quando ainda não é possível manter toda a estrutura de uma rádio, a saída é ocupar espaço em rádios locais. Para transmitir para a sociedade o papel do MST na região e prestar contas sobre o que acontece nos cinco assentamentos do município de Piranhas (AL), o movimento mantém o programa “A hora do MST” em duas rádios: uma na comunidade de Piau, no próprio município, e outra no vizinho Olho D’Água do Casado.

“Começamos seguindo o exemplo da experiência da Rádio Camponesa de Crateús”, conta José Neto, da juventude do movimento em Alagoas. “Já conseguimos acompanhar a repercussão dos programas no boca-a-boca, nas feiras, eventos. E na rua os ouvintes nos reconhecem”.

O foco das Rádios Camponesas é produzir conteúdos da base e para a base. Foto: Divulgação.

Toda semana a equipe escolhe um tema levantado junto aos assentamentos e comunidade. A partir de uma introdução e de um áudio de um ouvinte, inicia o debate. Há dois anos no ar, e com duas horas de duração, os programas prestam serviço, trazendo o cronograma da saúde e informações úteis.

Em maio deste ano, a rádio realizou uma campanha para ajudar os jovens a tirar o título de eleitor pela internet, com oferta de suporte técnico presencial. José Neto conta que esperavam poucas pessoas, mas apareceram mais de 200 jovens. “Conseguimos atender 100, no último dia”, conta. “Foi um trabalho de emancipação do voto de cabresto, pois os políticos locais costumam levar os eleitores para tirar o título e depois cobram o voto”.

A relação com as comunidades avançou, com convite para quilombolas participarem da festa da rádio realizando a mística. A participação do MST no conselho de desenvolvimento rural do município partiu da pressão das comunidades que estreitaram contato pelos programas de rádio.

“Chamamos amigos e parceiros da universidade para declamar poemas ou tratar de seus temas de atuação em áudios de 5 minutos”, explica José Neto. “Um professor, por exemplo, fala sobre agrotóxicos. Tem áudios sobre infância, mulheres, entre outros”.

Camila Bonassa conta que as rádios ainda são espaços que geralmente atraem mais os homens, o que não é o caso de Alagoas. “As mulheres vêm tocando quase todos os espaços, na organização da produção, nas lutas e na rádio”, conta José Neto. “Quem tinha timidez era eu, elas são desenroladas”.

De Olhos nos Ruralistas dedica cobertura exclusiva ao tema

A resistência dos movimentos do campo é um dos temas centrais da cobertura do De Olho nos Ruralistas. E um dos aspectos centrais desta resistência se dá justamente no campo da comunicação popular.

Desde fevereiro, o observatório vem publicando experiências significativas de camponeses, indígenas e quilombolas, que usam estas plataformas para registrar saberes tradicionais e denunciar violações de direitos.

A comunicação popular no campo também foi tema de edição especial do De Olho na Resistência, programa semanal apresentado por Luma Prado. Confira aqui o vídeo:

*Editado por Diógenes Rabello