Violência no Campo

Relatório aponta que violência contra indígenas está mais intensa

Documento “Violência contra os povos indígenas do Brasil – dados de 2021”, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI, foi lançado esta semana, em Brasília
Foto: Tiago Miotto/ Cimi

Por Janelson Ferreira
Da Página do MST

Na tarde desta quarta-feira (17), foi lançado em Brasília, DF, o relatório “Violência contra os povos indígenas do Brasil – dados de 2021”, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Divulgado anualmente, os números desta edição apontam para um crescimento significativo dos diversos tipos de violência contra os povos indígenas em todo país. 

Das 19 categorias de violências analisadas pelo estudo, 15 delas registraram crescimento no último ano. Entre os aumentos registrados, o mais grave diz respeito aos casos de violência contra a pessoa indígena. Ao todo, foram 355 registros em 2021, sendo que, no ano anterior, contabilizou-se 204 casos do tipo. O número de 2021 representa o maior índice desde 2013. 

Para Dom Joel Portella Amado, secretário-geral da CNBB, o relatório cumpre um papel importante ao tornar pública a realidade vivenciada pelas centenas de povos indígenas do Brasil. “Um país é julgado pela capacidade de proteger seus filhos. Em um país onde ocorrem todas estas violências e mortes, esta condição de proteção fica contestada”, afirmou Dom Joel.

“Ao denunciar os projetos de morte, não nos deixemos abater. Estes povos são testemunhas do bem viver e da terra sem males”, destacou Dom Roque Paloschi, Presidente do CIMI. Para o religioso, a publicação dos dados contidos no relatório serve também para fazer um chamamento em defesa dos direitos dos povos indígenas. 

Daqueles 355 casos de violência contra a pessoa indígena, registraram-se 176 assassinatos, além de 148 suicídios, maior número já identificado. Ainda nesta categoria de violência, o relatório apontou a ocorrência de 19 ameaças de morte, 21 lesões corporais dolosas, 21 casos de racismo e discriminação étnico cultural e 14 registros de violência sexual. Chama atenção no último ano os assassinatos de Raíssa Cabreira, Guarani Kaiowá, de 11 anos, e Daiane Griá Sales, do povo Kaingang, de 14 anos, que foram estupradas e mortas. 

Para Lúcia Helena Rangel, antropóloga e uma das organizadoras do relatório, o que tem chamado a atenção dos casos relatados é que a violência está cada vez maior, em um grau crescente. “Para estes criminosos, não basta matar, tem que ir além. É uma máquina de destruição”, ressalta Rangel. 

“Que bandeira verde e amarela é esta que erguem? Não há mais o verde das florestas, mas o vermelho do sangue de nosso povo indígena, dos nossos anciãos, das nossas crianças”, denunciou Alenir Aquines Ximendes, liderança do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, ao referir-se à cor verde da bandeira nacional. “Nas nossas retomadas, crianças são vítimas não só de bala de borracha, mas de munição letal, que só os brancos têm acesso”, alertou a liderança Kaiowá. 

Enterro de Kaiowá assassinado. Foto: Povo Guarani e Kaiowá

No último dia 23 de junho, os Guarani e Kaiowá realizaram a retomada de parte do território tradicional Guapoy, em Amambai (MS). Na manhã seguinte, policiais militares e fazendeiros invadiram a área para expulsar os indígenas, mesmo sem ordem judicial. Com a ação, na qual foi usada balas de borracha e armas de fogo, dezenas de Kaiowás ficaram feridos, entre eles, crianças e anciãos. No ataque também foi assassinado o indígena Vitor Fernandes, de 42 anos. 

Mato Grosso do Sul é um dos estados que mais registraram casos de violência contra indígenas em 2021, 35 ao todo. Amazonas tem o maior número de ocorrências, 38. Desde 2020, estes dois estados são aqueles com maior número de violências contra pessoas indígenas. 

“Como seria para sociedade brasileira ter que conviver com a arma de foto apontada para seus familiares”, questionou Neusa Kunha Takua, do povo Guarani Nhandeva, ao relatar o dramático cotidiano de diversos povos indígenas. A indígena também apontou o fato de a violência contra os povos indígenas afetar diretamente a defesa do meio ambiente. “Por que querem beber água potável e respirar ar puro se estão matando os guardiões desta terra?”, ponderou. 

Outro tipo de violência que teve significativo aumento em 2021 foi daquelas que ocorreram contra o patrimônio dos povos indígenas. Ano passado, foram registrados 1294 casos deste tipo. Entre estes, pode-se destacar os registros de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio. Ao todo, ocorreram 205 vezes, atingindo, pelo menos, 226 Terras Indígenas (TIs) em 22 estados. Em comparação, no ano de 2020, foram 263 invasões sobre 201 Tis em 19 estados. O crescimento é ainda mais perceptível quando se compara com dados de 2018, antes do governo Bolsonaro, quando o número de invasões foi de 109.

Entre os relatos deste tipo de violência, há situações em que criminosos queimaram casas de reza das comunidades. Tais espaços guardam profunda relevância para o modo de vida de diversos povos indígenas. No Mato Grosso do Sul foram registrados quatro crimes deste tipo, em territórios Guarani e Kaiowá, e um no Rio Grande do Sul, envolvendo o povo Guarani Mbya. 

Foto: Janelson Ferreira/MST

“Não estamos brigando por uma propriedade alheia. Queremos somente o que nos pertence tradicionalmente”, explica Alenir Aquines Ximendes. A indígena Kaiowá também convocou apoiadoras e apoiadores dos povos indígenas a se levantarem. “A violência vai continuar, mas estaremos em luta, resistindo, rezando e cantando”, finaliza. 

No caso das invasões possessórias e exploração ilegal de recursos a violência se deu, principalmente, por ação ilegal de garimpeiros, madeireiros, caçadores, pescadores e grileiros de terra. O crescimento deste tipo de prática pode ser verificado com mais ênfase em alguns territórios, como é o caso da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. 

TI Yanomami tem quase a mesma quantidade de indígenas e garimpeiros

Efeitos da mineração. Foto: Reprodução

Com 10 milhões de hectares localizados nos estados do Amazonas e Roraima, a Terra Indígena Yanomami é considera a maior reserva indígena do Brasil. Ela abriga 28 mil indígenas, sendo que muitos destes vivem em uma das 371 comunidades de difícil acesso. Para Luís Ventura, secretário adjunto do CIMI, aquele deveria ser um espaço no qual os povos estivessem em paz, decidindo seu futuro. “No entanto, a TI se tornou palco de ações violentas contra a vida dos povos indígenas, de modo que, o que ocorre lá é retrato do que o relatório apresenta”, aponta Ventura. 

A Hutukara Associação Yanomami (HAY), organização representativa dos povos daquele território, estima que cerca de 20 mil garimpeiros ilegais estão instalados na TI. Segundo o relatório “Yanomami sobre ataque”, publicado pela HAY em abril deste ano, o garimpo foi responsável pela degradação de 3.712 hectares, em 2021, o que representa um crescimento de 46% em relação ao ano de 2020. De acordo com o documento, 273 comunidades são afetadas pelo garimpo ilegal, o que atinge 16 mil indígenas. 

Entre as consequências ambientais da ação criminosa, pode-se destacar o desmatamento e poluição de rios, principalmente por mercúrio, que é extremamente prejudicial para a saúde e o meio ambiente. Como exemplo, a bacia do rio Mucajaí já tem mais de 180 quilômetros de seu leito destruídos. 

“Em 2021, fomos testemunhas de situações extremamente violentas, com aumento das ameaças e assassinatos. Crianças, que deveriam ter suas vidas garantidas, estão morrendo na TI”, denuncia Luís Ventura. Segundo o indigenista, a maioria dos casos de violência está ligada a ação do garimpo ilegal. 

Ainda que existam relatos de conflitos com não-indígenas desde a década de 1970, segundo os próprios Yanomamis, nos últimos anos o cenário de acirrou. A partir de 2020, a omissão do Governo Federal, responsável pela proteção da TI, e a alta internacional do preço do ouro provocou uma busca desenfreada pelo minério naquele território. 

Desde então, os relatos de ataques a comunidades, ameaças, torturas, assassinatos, violência sexual cresceram exponencialmente. O relatório “Yanomami sob ataque” denuncia que há relatos de garimpeiros que exigem sexo com meninas e mulheres em troca de comida. 

De acordo com Ventura, o Governo Federal tem responsabilidade direta no crescimento das violências sobre a TI Yanomami. “O Estado é omisso sistematicamente e esta inação sustenta a presença dos garimpeiros”, afirma o secretário adjunto do CIMI. “O que acontece naquela TI escancara o que significa um governo que tem como plano a devastação e a morte”.

Para indígenas, Bolsonaro é responsável pelo crescimento da violência

Foto: Povo Guarani e Kaiowá

Em fevereiro deste ano, durante conversa com apoiadores, Bolsonaro afirmou que em seu governo nenhuma terra indígena tinha sido demarcada. O tom de comemoração adotado pelo Presidente da República à época evidenciou a intenção do Governo Federal com a política indigenista do país. 

De fato, desde que assumiu, em 2019, Jair Bolsonaro paralisou todo processo de demarcação de terras. Além disso, de acordo com o CIMI, das 1392 Terras Indígenas no Brasil, 62% delas ainda não estão plenamente regularizadas e 598 não contam com nenhuma providência do Estado para dar início ao processo de demarcação.

Conforme afirma Lúcia Helena Rangel, a atuação do Governo Federal vai para além da paralização da demarcação. “Este governo não só não demarcou como também fez com que a lei mudasse, anulando processos de demarcação já consolidados”, explica a antropóloga. “Este governo está desfazendo tudo aquilo que os povos indígenas lutaram e conquistaram”, aponta. De acordo com Rangel, há casos de comunidades que estão há mais de 30 anos aguardando a demarcação de suas terras.

A partir de 2019, o Governo Federal adotou uma série de medidas que ameaça os povos indígenas. Em 2020, a FUNAI publicou a Instrução Normativa (IN) nº 9, que liberou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas. Outra medida foi a IN Conjunta da FUNAI e IBAMA, que passou a permitir a exploração econômica de terras indígenas por não indígenas. 

No Congresso Federal, o governo de Jair Bolsonaro se articula com parlamentares conservadores, principalmente aqueles que compõem as bancadas da bíblia e ruralista, para fazer avançar projetos de lei contrários aos direitos dos povos indígenas. 

É o caso do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que implementa o Marco Temporal. O PL altera a demarcação de Terras Indígenas e permite, entre outras coisas, a reintegração de posse de “reservas indígenas” pelo Governo Federal  baseada em critérios subjetivos, colocando em risco, pelo menos, 66 territórios habitados por mais de 70 mil indígenas. Além disso, estabelece que a demarcação pode ser contestada em qualquer estágio do processo administrativo. 

“Este Marco Temporal é, na verdade, o marco da morte”, afirma Neusa Kunha Takua. Segundo a indígena, sua luta e de seu povo é somente por aquilo que é de seu de direito. “Lutamos contra um governo de morte, que mata”, aponta Takua. 

Já o PL 191/2020, de autoria do próprio Governo, quer liberar a mineração em Terras Indígenas. Ele funciona como um liberal geral a grandes empreendimentos e a garimpo em TI, aumentando os riscos de vida, ambientais, sanitários e violência contra os povos indígenas.

“Jair Bolsonaro é o maior assassino deste país e por que não está preso? O Presidente da FUNAI é um assassino e porque não está preso?”, questionou Neusa Kunha Takua.

Relatório produzido pelo CIMI representa esforço histórico

Foto: Fiona Watson/Survival

O relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil foi publicado pelo Conselho Indigenista Missionário pela primeira vez em 1996. A partir de 2003 ele assumiu a frequência anual, sempre analisando os dados sobre violência referente ao ano anterior da publicação. 

O documento utiliza diversas fontes para construir seu banco de dados. Entre as fontes, pode-se destacar, boletins de ocorrência, informações oficiais fornecidas por órgãos públicos, dados da Lei de Acesso à Informação, do Ministério Público Federal e da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). 

Apesar da diversidade de fontes, os dados apresentados sempre podem estar incompletos e parciais, dada a dimensão complexa da realidade vivida pelos povos indígenas e a dificuldade de registros aos contextos de violência. No entanto, aponta Lúcia Helena Rangel, “o volume de informações que apresentamos nos permite fazer um balanço a respeito desse lado sombrio que abarca o cotidiano e as grandes lutas dos povos indígenas no Brasil”. 

Acesse o relatório na íntegra aqui.

*Editado por Fernanda Alcântara