Reforma Agrária Popular

Pereira da Viola: “Estamos caminhando rumo à reconstrução do que foi destruído”

Em entrevista concedida durante Festival da Reforma Agrária, Pereira da Viola, referência histórica da cultura popular, fala de Reforma Agrária, governo Lula e a luta contra a extrema direita

Por Janelson Ferreira
Da Página do MST

Cantador, violeiro, compositor, artista, quilombola… Podemos identificar de várias formas Pereira da Viola. Nascido em Teófilo Otoni, cidade mineira no Vale do Mucuri, região que já foi cantada e poetizada por tantos nomes, Pereira, por meio de sua arte, tornou-se uma das principais referências da cultura popular no país. Hoje, é um destes que anunciam o Jequitinhonha para o Brasil.

Presente no Festival da Reforma Agrária, que ocorreu no Galpão do Armazém do Campo, na área central de São Paulo, SP, Pereira da Viola se apresentou na tarde deste domingo (04). Envolvendo a população paulistana que esteve presente no evento, Pereira colocou todo mundo para dançar na roda da cultura popular.

Após a apresentação, ainda exalando o calor da música, Pereira concedeu entrevista ao MST. Na conversa, falou das expectativas do novo governo Lula, do papel da cultura popular no combate à extrema direita e do legado do MST para as artes.

Confira a entrevista na íntegra:

Como você vê esta iniciativa do Festiva da Reforma Agrária?

As Feiras e Festivais do MST inauguram uma nova perspectiva de diálogo com a sociedade. A gente percebe um diálogo entre diversos segmentos da sociedade, desde uma classe média até à periferia. E este é o tipo de sociedade que queremos, queremos furar as bolhas nas quais ela vive. E as Feiras tratam disso, desta diversidade. Desde o exemplo histórico que vem do Nordeste, as Feiras unem culinária, música, arte, política… Inaugurou-se um novo cartão postal do MST para a sociedade como um todo.

Com a eleição de Lula, entramos em um período de transição, superando o governo Bolsonaro. Como este momento atinge as artes?

Uma série de acontecimentos durante o governo do inominável colocaram uma
centralidade na arte. Ai da humanidade se não fossem as artes naquele período. Se
não fossem as artes, talvez a loucura fosse muito pior. Também neste período,
conseguimos ter conquistas importantes, como é o caso das Leis Aldir Blanc I e II e da
Lei Paulo Gustavo. E agora temos, durante a transição de Lula, a possibilidade de
retorno do Ministério da Cultura. Portanto, a perspectiva da transição aponta para nós uma possibilidade de aprofundamento da compreensão daquilo que já foi construído
durante os primeiros governos Lula.

Durante sua campanha, Lula sempre buscou se reunir com artistas dos locais que ele visitava. Assim, há uma perspectiva de inserção da arte dentro do próximo governo que nos faz ter muita esperança. Não uma esperança utópica, mas uma que aponte que estamos caminhando para uma reconstrução do que foi desmontado. Nos governos anteriores, muitas conquistas ficaram soltas, enquanto garantia real. Nós precisamos fazer com que as Leis garantam a permanência de direitos que são necessários para a própria vida humana.

Hoje, a arte, assim como a cultura e a educação, representa a próxima fronteira da humanidade, para nos entendermos enquanto seres da mesma espécie, porque o desenvolvimentismo já chegou no seu limite. Não interessa se você faz política, puxa enxada, toca um instrumento ou trabalha na indústria, você precisa fazer tudo isso com arte.

Diante do avanço da extrema direita no Brasil, qual o papel você acha que cabe à
cultura popular?

Os ideais da extrema direita estão ultrapassados. A sociedade não aceita mais este atraso, este olhar filho da Idade Média. E não adianta impor, através da força, do poder econômico. Este atraso não vai sobrepor os ideais da caminhada do processo civilizatório da humanidade. A extrema direita age desta forma por medo de mudar, medo da mudança, justamente, porque o novo já está batendo. Ela age como um papel de quem está vendo o barco se afundar.

A direita radical está vendo o fim dela e se agarra a qualquer coisa para negar seus privilégios, seu senhorio. Obviamente, eles têm uma força. No Brasil, um país com 215 milhões de habitantes, você terá um número significativo de pessoas que tem esse olhar, mas isso já está em fase terminal. O planeta passa por uma mudança gigantesca de paradigmas, que mexe com todo mundo e muita coisa está em mudança.

Como alguém que acompanha por muito tempo a prática cultural do MST, qual o
principal legado que o Movimento apresenta para as artes?

O MST está baseado nas necessidades de os trabalhadores reivindicarem seu direito de cultivar, de existir. E o direito de existir dos camponeses passa também pelo direito de existir de muita gente, por meio da produção de alimentos. Afinal, se o campo não planta, a cidade não almoça e nem janta. E o Movimento se refaz de acordo com a necessidade. Na música, por exemplo, em um primeiro momento a gente identificava como expressão musical do MST elementos mais ligados à cultura camponesa, mas, com o passar dos anos, ele percebe a necessidade de se dialogar com a cidade. Inclusive, porque os acampados e assentados já não são mais pessoas do meio rural, mas saem das periferias das cidades. E o MST acolhe este processo e traz para uma narrativa interna com o mesmo olhar de quando prepara as pessoas para quebrarem as correntes de uma propriedade para ser ocupada.

Neste momento, a relação da música rural e urbana, a ocupação dos meios de comunicação, a educação, todos estes elementos constroem um caldo de suporte e sustentação do Movimento que é uma força que não tem como você desmontar de uma hora para outra.

Em 2004, fizemos um Encontro de Violeiros em Ribeirão Preto 1 , SP, e ali, tínhamos a pretensão de fazermos uma grande festa em torno da viola. No entanto, ali já se apontava para coisas muito maiores, pois fazíamos uma narrativa do movimento de viola com a Reforma Agrária, e o agronegócio local se assustou com isto. E até hoje o Movimento segue assustando o agronegócio, inclusive quando constrói as Feiras da Reforma Agrária, em contraponto às feiras do agronegócio.

A arte neste momento, no MST, está tomando uma dimensão, a exemplo da nossa Escola de Artes João das Neves 2, muito importante e significativa, porque transforma não só o outro, mas a gente também. A arte é o que, muitas vezes, dá base de sustentação às lutas do Movimento.

1 Encontro organizado pelo MST, em março de 2004, que reuniu 240 militantes e teve a presença de mais de 15 mil pessoas.
2 A história da Escola de Arte do MST começa a partir do Festival Nacional, realizado em 2016, na capital mineira, e da articulação política dos artistas parceiros do MST. Em 2017, no ano seguinte, aconteceu a primeira Escola de Arte, com a participação do João das Neves e de diversos artistas.