Aromas de Março
Divisão justa das tarefas domésticas e o bem-estar familiar
Por Conceição Amorim*
Para Página do MST
A cultura do sistema patriarcal, que define o lugar de homens e mulheres nas sociedades, se edificou ao longo dos séculos no seio das famílias e se estendeu aos espaços públicos de forma exponencial, determinando comportamentos das mais variadas situações do nosso dia a dia.
A partir de ideias estereotipadas, as mulheres foram obrigadas a ocupar o espaço doméstico e familiar como um legado natural, sob o pretexto de serem presumivelmente hábeis para o cuidado com o conjunto dos membros da família, e na ausência dessa instituição seriam as únicas capazes de fazê-lo para o Estado ou órgãos beneficentes ligados às instituições religiosas. Basta observar as profissionais ligadas ao cuidado, professoras e educadoras no geral, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogas e tantas outras.
Essa cultura impôs às mulheres sobrecargas pesadas, são elas – envolto ao discurso do amor incondicional – as primeiras a acordarem e se levantarem para a labuta doméstica e as últimas a se deitarem e dormirem.
O discurso do amor incondicional vai além, ele justifica a superexploração das mulheres para com o cuidado familiar e as coroam como rainhas do lar, para que no cansaço dos infinitos afazeres domésticos possam se embrulhar no manto aveludado da solidão estafante, se sentindo culpadas por não terem superpoderes e se cansarem de cuidar de todos.
É dito nessa cultura que uma boa mãe, uma boa esposa, uma boa irmã, uma boa mulher não abre mão do seu espaço de poder, e o centro desse poder está entre a cozinha e a área de serviço, mesmo que todos os membros masculinos da família estejam desocupados, as tarefas domésticas cabem exclusivamente às mulheres, e deve ser aceita como natural e prazerosa.
Essa cultura está tão arraigada, que mesmo as mulheres atuando como profissionais no mercado de trabalho em dois, três turnos (profissionais da educação e da saúde por exemplo), a maioria não consegue despertar entre seus membros a divisão ativa das atividades domésticas, sendo muitas vezes obrigadas a investir parte do seu salário na contratação de outra mulher para fazer tais tarefas e garantir o bem-estar da família.
A mudança dessa realidade tem se dado de forma lenta e precisa avançar para garantir a felicidade familiar, com justiça e igualdade nas relações de gênero. São atitudes diárias, pautadas em princípios básicos de convivência saudável e respeitosa que devem ser naturalizadas entre os membros da família.
O principal motivo para tais mudanças de comportamento é a busca pela felicidade. Com o fim da exploração da mão de obra das mulheres, o conjunto da família poderá usufruir de bons momentos domésticos, pelo bem viver coletivo, pelo respeito e pela qualidade de vida das mulheres.
O cuidado com crianças, idosos, pessoas com deficiência e enfermos deve ser responsabilidade de todos os membros da família, oportunizando o exercício do amor fraternal e fortalecendo vínculos afetivos.
O café da manhã, almoço e jantar podem ser transformados em prolongados momentos de confraternização, quando as tarefas são realizadas por e para todos. Cada pessoa desenvolve habilidades distintamente, mas todas independente do sexo aprendem os afazeres domésticos se esses forem realizados sob a lupa da fraternidade e do real valor que essas tarefas têm para a produção e reprodução humana.
Sim, os meninos tem capacidade para pegar, usar e estender a toalha depois do banho, deixar a pia do banheiro organizada, usar corretamente o vaso sanitário, fechar um frasco de shampoo depois de usá-lo, assim como enxugar o chão de um banheiro e colocar a roupa usada no cesto. Atividades simples que perfazem um caminho seguro para outras mais complexas, como lavar, passar, organizar gavetas de roupas, realizar as diversas tarefas praticadas na cozinha e no quintal. Essas atividades são tão necessárias para nossa existência e bem-estar quanto as atividades laborais que geram nossas rendas.
É possível enxergar um mundo onde famílias se comportem como sujeitos coletivos, com atitudes individuais cuidadosas e responsáveis, pois o bem-estar coletivo deriva da responsabilidade e cuidado individual, e deve ser praticado desde a tenra idade.
Famílias que dividem as tarefas domésticas desde cedo contribuem para a construção de sujeitos autônomos, habilidosos, solidários, responsáveis, com maior senso de justiça e de valorização da maior tarefa dos seres humanos, que é a de promover sua existência.
Nessas famílias as mulheres desfrutam da dignidade, do direito humano ao descanso, ao lazer, à cultura, ao estudo e a prática de uma profissão no mercado de trabalho sem culpa, sem sobrecarga e sem adoecimento. Portanto, a família que divide tarefas domésticas valoriza e respeita os direitos humanos das mulheres e meninas, exercitam a democracia, a justiça e o amor.
Nessa perspectiva, entraremos nos próximos dias no período das festas de final de ano, excelente momento para iniciar a desconstrução dos ideais patriarcais no seio da família. Para tanto, é importante dar a devida atenção à divisão das tarefas domésticas necessárias para o sucesso da ceia natalina ou de final de ano, garantindo que as mulheres possam desfrutar das festas com o mesmo prazer e alegrias que os demais membros.
* Feminista, Defensora dos Direitos Humanos, Assistente Social, Especialista em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça, Coordenadora do Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos e do Fórum de Mulheres de Imperatriz e Conselheira Estadual da Mulher.
**Editado por Solange Engelmann