Experiência Sem Terra

A iniciativa do Movimento dos Sem Terra (MST)

Matéria alemã destaca experiência do Paraná
Foto: Ronaldo Cesar Darós

Do site alemão Aktion Agrar

Traduzido por Liria e Antônio Andrioli*

Hoje, iremos viajar mentalmente cerca de 9 mil quilômetros em direção ao Sul do Brasil, ao Sul da região metropolitana de São Paulo, até o Estado do Paraná, uma das maiores regiões de produção de soja do Brasil. Lá, também está localizado um importante porto de exportação de produtos agrícolas, como a soja. Saindo do Paraná, a soja é destinada principalmente à alimentação de animais na China e na Europa. Enquanto no Norte do Estado se encontram extensas áreas de monoculturas pertencentes a grandes proprietários de terras, alguns quilômetros mais ao Sul, a situação já é bem diferente e é possível encontrar pequenos agricultores e cultivo agroecológico.

Antônio Andrioli, da Universidade Federal da Fronteira Sul, se refere a um “território da agricultura familiar e camponesa.” Há pouco tempo atrás, a realidade desse lugar não era muito diferente se comparada ao Norte do Estado. “Há 25 anos, ocorreu uma grande redistribuição de terras por aqui.” Hoje, essa região é considerada um exemplo de referência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil.

Como os sem-terra conseguiram conquistar o acesso à terra em uma região de enormes plantações de soja e de grandes propriedades rurais? E o que é o movimento dos sem-terra?

Conversamos com o professor Antônio Andrioli, que pesquisa os efeitos do cultivo de soja no Brasil e que ajudou a construir o primeiro Campus de uma Universidade Federal em um assentamento da Reforma Agrária. Também iremos conhecer a história do Darci e da Marli Teresa da Silva, que chegaram ao Paraná como agricultores sem-terra e, através do MST, conseguiram conquistar o seu “pedaço de chão”.

Foto: Ronaldo Cesar Darós

Como tudo começou?

Darci e Marli foram para Laranjeiras de Sul há 25 anos, em 1997. “Éramos sete grupos. Cada grupo era composto por dez famílias e cada grupo tinha um “taião” (pequeno pedaço de terra)”, diz Marli. “Todas as famílias começaram a cultivar algo: primeiro o feijão, a mandioca e a batata. Fizemos o mesmo. Naquela época, cultivávamos pequenas lavouras.” Assim como o Darci e a Marli, todos os integrantes do MST viviam inicialmente nos assim chamados acampamentos. O movimento dos sem-terra precisava pressionar o governo. A legislação brasileira prevê que a terra deve ser usada de forma socialmente responsável, caso contrário, ela pode ser desapropriada para a Reforma Agrária, com a finalidade de favorecer pessoas que dela podem fazem melhor uso. É um processo árduo e, muitas vezes, não se obtêm sucesso; entretanto, Darci e Marli Teresa tiveram êxito. Em 2000, eles puderam acessar a terra e começaram a produzir.

Ocupar terras, isso é mesmo necessário?

Como as ocupações de terra são consideradas ilegais, elas são frequentemente criticadas. Mas, segundo Andrioli: “Não há um único hectare de terra que tenha sido desapropriado para fins de Reforma Agrária que não tenha sido antes ocupado. O que mais poderia ser feito senão ocupar o latifúndio? Mesmo nos governos mais progressistas, como os de Lula, a Reforma Agrária só foi realizada após as ocupações de terras, ou seja, sob muita pressão dos agricultores sem-terra.”

O que aconteceu depois?

As terras cultivadas por Darci e Marli pertenciam anteriormente a um lote maior de cultivo de soja de 1.200 hectares, que resultou no Assentamento 8 de Junho. Os grandes produtores, que cultivam soja na região, costumam usar soja transgênica associada ao uso de perigosos agrotóxicos. O Paraná também é o segundo maior consumidor de agrotóxicos do Brasil. O começo não foi fácil para Darci e Marli: “Eles usavam produtos químicos que causavam deficiências de longo prazo no solo”, diz Darci. “Antes de começarmos a cultivar hortaliças, havíamos produzido leite. Isso já desintoxicou o solo até certo ponto.” Eles levaram 7 anos para conseguir cultivar vegetais. Para Darci e Marli, a produção de leite por si só não era a melhor alternativa. Eles queriam produzir de forma mais diversificada e se alimentar de sua própria produção, a fim de estarem melhor preparados para o futuro. Dessa forma, iniciaram com o cultivo agroecológico de hortaliças.

“Ainda estávamos endividados, mas em algum momento não tivemos mais que comprar ração e adubos porque reduzimos a produção. Essa transformação não foi fácil, sofremos muito, mas agora também recebemos algo de volta.” Darci e Marli agora consomem os vegetais que eles mesmos cultivam e também comercializam em mercados locais. Passaram a criar suínos, ovelhas, galinhas e patos no seu lote de terra. Isso representa carne para a família e para venda. Darci está feliz com a produção diversificada: “No final do ano, quando temos a ceia de Natal, temos de três a quatro tipos diferentes de carne. Tudo daqui, da casa. E nossos convidados sempre querem pagar por isso e dizemos: “não, temos tudo aqui!” Não é barato, mas temos aqui, temos acesso a isso tudo.”

Os animais estão no lote de terra “aqui e ali e em todos os lugares correndo livremente por aí”, ri Darci. Eles são alimentados com alimentos de seu próprio cultivo. Para serem autossuficientes, Darci e Marli só precisam comprar um pouco de trigo e arroz, não muito mais, de acordo com eles.

Foto: Thomas Hager

Terra produtiva!

Como Darci e Marli, pelo menos 450 mil famílias conseguiram o acesso à sua própria terra no Brasil através da luta do MST, e outras 90 mil famílias continuam ocupando a terra. “Ao contrário dos grandes proprietários, os sem-terra costumam usar a terra de forma muito produtiva”, explica Andrioli. Com um sistema de cooperativas criado pelo próprio MST, o movimento se tornou o maior produtor de arroz orgânico do Brasil. “Além disso, os assentamentos permitem que as famílias produzam sua própria comida e até se alimentem melhor do que a média dos pequenos agricultores no Brasil”, diz Andrioli. “Porque eles veem a agroecologia como um compromisso, depois de já terem perdido suas terras”, diz Andrioli.

E muito mais!

O MST não só ajuda os agricultores individuais a visualizarem perspectivas na agricultura, mas também contribui para a melhoria da qualidade de vida nas comunidades rurais: porque são os anteriormente sem-terra que agora produzem em uma região antes dominada por grandes propriedades que não beneficiaram a população local. Os agricultores assentados também são os maiores contribuintes em impostos na região, segundo Andrioli. Escolas e novos mercados estão surgindo, cidades estão se desenvolvendo. “E até uma universidade foi criada”, Andrioli sorri. Ele se refere à Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), que ele ajudou a construir. Darci e Marli também estiveram presentes nas primeiras discussões sobre a criação da universidade. “Queríamos que a universidade viesse e ajudasse a combater a fome que existia aqui na região. E eu acho que foi o que aconteceu.”

O Campus de uma Universidade Federal, dentro de um assentamento dos sem-terra, contribui para que as famílias de camponeses, de sem-terras, indígenas, e, especialmente, cada vez mais, as mulheres agricultoras, agora tenham acesso direto à educação. A maioria dos estudantes da universidade é formada por filhas e filhos de agricultores e é a que mais possui estudantes indígenas no Sul do Brasil. “Isso também é algo especial no Brasil, pois os agricultores ajudaram a decidir os cursos que a universidade oferece”, diz Andrioli. Darci e Marli também são convidados para comercializar seus produtos agroecológicos na universidade. Enquanto isso, eles também trabalham muito junto com a instituição: os estudantes aprendem práticas agroecológicas em seu lote, por exemplo, sobre irrigação de frutas e legumes, os cuidados com cascos de ovelhas, ou o trabalho em seus vinhedos, e eles também apoiam os estudantes que querem realizar pesquisas com eles. “Eles aprendem conosco e nós aprendemos com eles”, diz Darci.

Foto: Ronaldo Cesar Darós

O que nós podemos fazer na Europa?

Através do nosso consumo exacerbado de carne e sua demanda associada à soja como ração animal, contribuímos para uma maior produção de soja em larga escala e em forma de monocultura, aumentando a concentração de terras no Brasil. Outro grande problema, de acordo com Andrioli, é que os consumidores na Europa, por exemplo, não sabem se a carne, o leite ou os ovos que compram vêm de animais que foram alimentados com soja transgênica. Assim, eles não conseguem ficar livre desses produtos. “Assim como a Rússia é sancionada, a Europa poderia se abster de importar soja que esteja relacionada a violações dos direitos humanos e à destruição ambiental. Com isso, eu quero dizer, por exemplo, se ela estiver associada a trabalho escravo e infantil, ao desmatamento e ao uso de agrotóxicos, porque isso existe na produção de soja.” Andrioli está empenhado na construção de um Observatório Social e Ambiental da Soja, que poderia contribuir na criação de um rótulo para uma soja sustentável e livre de violações trabalhistas. “Para isso, teremos que pesquisar e verificar se regras nesse sentido poderiam ser implementadas e cumpridas.”

Outro aspecto importante, segundo Andrioli, é a investigação dos efeitos dos agrotóxicos utilizados na soja para a saúde humana. “A Bayer tem 12 pesticidas em uso no Brasil que não estão aprovados na Europa, a BASF tem 13. Governos, incluindo os europeus, devem financiar pesquisas científicas que demonstrem os efeitos da soja na saúde da população local.” Ao comprovar danos à saúde, todos nós poderíamos pressionar os governos. Na página 151 do acordo de coalizão do atual governo alemão, está previsto que a exportação de agrotóxicos considerados prejudiciais à saúde na Europa deve ser proibida.

Quando perguntado sobre o que espera de pessoas comprometidas na Alemanha e na Europa, Darci responde: “Quero que unamos forças e nos fortaleçamos uns aos outros. Muitas vezes só pensamos em nossas organizações. Mas quando percebemos que também temos camaradas no exterior, também na Alemanha, isso nos deixa, meu Deus, muito felizes. É bom saber que eles estão no mesmo caminho que nós.” Marli acrescenta: “E é bom saber que eles estão lutando cada vez mais. Porque hoje sabemos que são os pequenos agricultores que produzem os nossos alimentos, não os grandes proprietários de terras.”

Agradecemos a Antônio Andrioli, a Darci e Marli Teresa da Silva e a Liria Andrioli pelas conversas interessantes e insights!

Aqui, você pode assistir à entrevista com Darci e Marli que Liria gentilmente conduziu para nós: Entrevista Marli e Darci – Assentamento 8 de junho – YouTube

Poderá acessar também uma reportagem fotográfica realizada pela Coordenação Agrária de Hamburgo sobre agricultores do Paraná, que também inclui como entrevistados Darci, Marli e Antônio Andrioli: Land ist unser Leben (pageflow.io)