Luta de Classes

Da Revolta dos Malês à uma Revolução Antirracista

A Revolta dos Malês, em Salvador, que eclodiu entre 24 e 25 de janeiro de 1835 é considerada a mais importante realizada por escravos urbanos nas Américas
Revolta dos Malês. Imagem: Ilustração

Por Raumi Joaquim de Souza*
Da Página do MST

A história do Brasil é marcada pelos antagonismos de raças, classes e interesses sociais diversos. A inter-relação dos três pilares terra, raça e classe estão presentes a todo o momento na formação do seu povo. Assim como em todas as regiões do país, na Bahia, há um histórico de revoltas e conflitos agrários, raciais e sociais desde a sua gênese até os dias atuais.

Ao longo da metade do século XIX, por exemplo, se constituiu no Estado baiano um ambiente favorável à resistência escrava, fundamentalmente “em primeiro lugar com o crescimento vigoroso da população negro-mestiça, em especial a dos africanos” (REIS; SILVA, 1989, p. 33). Foram importados cerca de 8 mil africanos por ano, para atender a demanda da economia açucareira, que desde o fim do século XVIII, “foram atingidos por certos ventos de prosperidade” (REIS; SILVA, 1989, p. 33).

Aqui podemos registrar diversas revoltas constantes que carregam características indígenas, negras e agrárias. “Na escravidão nunca se vivia em paz verdadeira, o cotidiano significava uma espécie de guerra não convencional” (REI; SILVA, 1989, p. 33). Desde o Período Colonial, as lutas dos negros exprimem “as contradições do modo de produção capitalista em sua fase de acumulação mercantilista tendo as rebeliões, fugas e formação de quilombos como explicitação dos conflitos de classe e étnicos” (GEOGRAFAR, 2011, p. 11).

Só em Salvador os africanos, escravos e libertos, representavam 33% de uma população total de proximamente 65.500 habitantes, em 1835 (REIS; SILVA, 1989). “A formidável densidade da população africana na Bahia favoreceu sua representatividade cultural, suas identidades étnicas e sua disposição à luta” (REIS; SILVA, 1989, p. 34). Para os autores, a mera presença de um grande número de africanos na Bahia intimidava setores importantes da classe senhorial.

De acordo com José Reis e Eduardo Silva no livro “Negociações e Conflito”, (1989), havia luta de classes o tempo todo, conflitos, mas existiam também negociações que nada tinham a ver com relações harmoniosas entre escravo e senhor e violência constante. Ou seja, um espaço social perpassado por barganha e conflitos.

Portanto, o escravo foi um agente ativo, autor de várias negociações políticas na luta por autonomia, tentando fazer a vida e a história.

A Revolta dos Malês, na cidade de Salvador, por exemplo, entre 24 e 25 de janeiro de 1835 é considerada a mais importante realizada por escravos urbanos nas Américas, organizada por africanos iorubás (chamados nagôs no Brasil), adeptos do Islã (os malês), mas contou com a participação de escravos, libertos e negros de diversas outras nações.

Portanto, a Revolta dos Malês está prestes a completar 200 anos, realizada na mesma década da abolição da escravidão. E atualmente os negros continham acoitados ao trabalho mal remunerado, sendo negados à dignidade humana. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que no ano de 2020 a população negra brasileira somava a porcentagem de 54% e que o desemprego entre os negros é 71% maior do que entre brancos (dados de agosto de 2020).

De acordo ao IBGE, historicamente a taxa de desemprego da população parda ou preta é maior que a dos brancos, porém no ano de 2020 essa diferença atingiu a um recorde. Em uma séria histórica de análise iniciada em 2012, a situação se agravou logo nos primeiros três meses mais intensos da pandemia do covid-19 (abril, maio e junho).

A revolta aconteceu no período imperial em meio à busca de liberdade religiosa e a libertação dos negros de origem islâmica das etnias nagô e huaçá. Apesar de ser reprimida pelas tropas imperiais, foi um movimento fundamental na luta pela libertação dos negros. Mais de 1.500 escravos se mobilizaram, defendendo suas crenças, cultos e costumes.

Os malês tentavam por meio da revolta, além de libertar os escravos islâmicos, extinguir a religião católica (que era a religião praticada pelos exploradores), implantando o islamismo e almejavam a tomada do poder. Porem, armados apenas com ferramentas de trabalhos não conseguiram vencer as armas de fogo da polícia, que preparou uma emboscada impedindo a continuidade da revolta e provocando diversas mortes, ferimentos e prisões. Diversos líderes foram condenados a pena de morte, fuzilados, açoitados e obrigados a realizar trabalhos forçados.

Contudo, após a revolta, os negros passaram e ser mais temidos pelos fazendeiros que intensificaram diversas medidas de proibições, como a circulação de pessoas negras durante à noite e a prática aos cultos religiosos, exceto os da religião católica.

A rebelião teve uma multiplicidade de sentidos religiosos, étnicos e classistas, que se entrecruzaram num momento de crise da hegemonia senhorial, em uma Bahia politicamente dividida (REIS; SILVA, 1989). Os escravos e libertos, trabalhando juntos no sistema de ganho ou simplesmente vivenciando a maior flexibilidade (inclusive do anonimato) proporcionada pelo ambiente urbano, desenvolveram e aprofundaram solidariedades, construindo um discurso mais crítico à escravidão baiana.

Nem a conquista da abolição, em 13 de maio de 1888, que teoricamente resolveu o problema da escravidão, não solucionou a situação da população negra. A República, instaurada com um golpe em 15 de novembro de 1889, não se tornou realidade para a maioria da população brasileira, em especial para população negra, já que não foram tomadas medidas para a inserção dos negros no mundo dos “brancos”, ou melhor, na sociedade de classes como afirmou Florestan Fernandes. 

Embora os negros que se inseriram nessas revoltas estivessem em diversas tarefas, como, por exemplo, a pescaria e o trabalho na agricultura, o que se sobrepunha era e luta por território e liberdade. Outra vez, a questão agrária, junto à questão racial em defesa de uma classe.

Porém, atualmente a situação da população negra não é diferente, abandonada à própria sorte, diante de um governo retrógrado, racista, que não cria e nem intensifica as medidas para a melhoria da vida e da autoestima do seu povo, a maioria da população brasileira necessita marchar para a organização coletiva de novas revoltas sociais e antirracista.

Em um país desigual como o Brasil, quando a crise se acirra a população marginalizada paga o preço com a própria vida. A pandemia do covid-19 demonstrou ainda mais que o remédio para esses problemas é a promoção da igualdade sócio racial e que o governo não fará, por isso, precisa ser desenhada pelo próprio povo. Já que foram por meio das revoltas como a dos Malês, que se proporcionou a conquista da abolição.

Para os novos tempos necessitamos de uma revolução antirracista em que o povo negro adquira consciência de classe e raça, e ocupe os espaços que historicamente lhe foi negado.

Referências:

FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro – Polêmicas do Nosso Tempo. São Paulo: Cortez Editora, 1989.

GEOGRAFAR. As Metamorfoses da Questão Quilombola na Bahia. In: Movimentos campesinos e indígenas na América Latina Título do Trabalho.  XXVIII CONGRESSO INTERNACIONAL DA ALAS, UFPE, Recife-PE GT27 – 6 a 11 de set. 2011.

REIS, João José. A Conspiração Haussá de 1807 na Bahia. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de (org.). O Negro no Brasil. Maceió-AL: Editora da Universidade Federal de Alagoas-EDUFAL, 2003, p. 75.

REIS, João José. “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”: A Resistência escrava no Brasil Oitocentista. Disponível em: <http://www.erudito.fea.usp.br/PortalFEA/Repositorio/1181/Documentos/leitura_1_1_1.pdf>.

REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociações e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/08/28/desemprego-entre-negros-e-71percent-maior-do-que-entre-brancos-mostra-ibge.ghtml>.

*Raumi Joaquim de Souza é Licenciado em Arte Educação, Mestre em Desenvolvimento Territorial na América latina e Caribe, Artista, Arte-educador e Militante do Coletivo de Cultura do MST.

**Editado por Solange Engelmann