Cultura

Azimai: mulheres que dançam como águias

"Nem todas sociedades usam do padrão normativo que compreendemos"
“As mulheres dançam com a mesma destreza que as águias com seu alarido cortam o céu da Savana Africana”. Foto: Iris Pacheco

Por Iris Pacheco
Do Brasil de Fato

Azimai na língua bantu Nyanja, uma das mais faladas aqui na Zâmbia, significa “mulheres”. Ao mesmo passo, a águia pesqueira africana, que habita praticamente todos os lagos e reservatórios da África, também é um símbolo de esperança e liberdade por aqui. Inclusive, integra a bandeira nacional do país e foi desenhada por uma mulher.

As mulheres dançam com a mesma destreza que as águias com seu alarido cortam o céu da Savana Africana.

Imponente, corajosa e de espírito vitorioso a águia rainha dos céus não vive só, ela constrói parcerias de vida. Assim como nós, mulheres, também fazemos tudo em comunidade: desde o amanhecer no preparar da nshima para alimentar a família, ao sair para as encruzilhadas do mercado e ganhar seu sustento, ao garantir o afeto na construção da relação familiar comunitária, até os labirintos para garantir o sustento dos filhos, a militância e a vida política em geral, sempre em conjunto com outras mulheres.

Esse aspecto tem movimentado minhas águas internamente para um processo que venho trilhando faz algum tempo, que é o me despertar para a necessidade de pensar uma reorientação dos meus sentidos e percepções de mundo. Minha racionalidade, por várias vezes tentou conter esse movimento, e eu precisei atravessar o atlântico para entender a materialidade interna disso.

Viver aqui tem sido me despir cotidianamente da percepção ocidental, que não é universal para a condição humana, e por isso ela não cabe no legado ancestral africano sobre as distintas formas de se organizar, de ver e sentir o mundo, uma comunidade, um povo.

Foto: Iris Pacheco

Para entender e contribuir com um povo é preciso internalizar em nós que nem todas as sociedades estão inseridas em um padrão normativo no qual compreendemos o mundo. Esse aspecto não significa que as mesmas não sejam profundamente impactadas pelas mazelas do sistema capitalista patriarcal, uma vez que, na África, o mesmo foi instituído consolidando diversas formas de violência e opressão.

Porém, temos a oportunidade de refletir sobre outras formas de organização, e a partir disso compreender o papel social exercido pelos diversos sujeitos sociais que a compõem, principalmente as azimai.

No caso da África, uma sociedade organizada, sobretudo, pela senioridade, onde as relações sociais são fluidas como as águas de Ndandalunda e marcadas por contextos culturais e locais específicos, enfrentar as opressões consolidadas por um modo sistêmico ocidental que impacta e se interliga com formas milenares de organização social, requer compreender que as resistências também se darão de formas muitas vezes diferentes das que estamos acostumadas a construir do lado de lá do Atlântico.

Foto: Iris Pacheco

Ao mesmo tempo que reconheço as diferenças, também reconheço os traços de similaridades. Muitas vezes, nossa realidade tão fragmentada e rompida pelo racismo não nos permite essa assimilação: de que a realidade é uma variedade de sentidos. E no caso das azimai, elas carregam um fluxo de conhecimentos que nos permite empoderar não somente outras azimai, mas principalmente empoderar uma comunidade inteira.

As parcerias de vida são amplas e alimentadas sempre em comunidade. O movimento fluído das águas caminha com a dança dos voos potentes das azimai que traçam sua luta em um tempo da história.

Iris Pacheco é jornalista, especialista em Teologia das Religiões Afro-brasileiras e especialista em Estudos Latino-americanos. É comunicadora popular, militante do MST e internacionalista na Zâmbia.

Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.


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Edição: Elis Almeida