Combate à fome

A construção da Soberania Alimentar e o retorno das políticas públicas agrárias

"Sufocado pelo orçamento, governo busca caminhos para políticas de apoio à produção camponesa"
A soberania alimentar deve ser tratada como pauta estruturante da política agrária brasileira. Foto: Carolina Colorio/Amigas da Terra Brasil

Por Coluna Amigos da Terra Brasil
Do Brasil de Fato

Nos quatro últimos anos, chegamos a 33 milhões de brasileiros e brasileiras passando fome. Esses números revelam uma situação mais grave do que a encontrada pelo presidente Lula em 2001. E apontam para a urgência de estruturação de políticas públicas que tenham na soberania alimentar seu centro. Um país que não é capaz de produzir alimentos saudáveis e acessíveis à sua população não consegue avançar para qualquer projeto de nação digna. 

A principal bandeira de ação de Lula sempre foi o combate à fome. Já em sua posse, o governo lançou a retomada do Programa Bolsa Família e o retorno do Ministério do Desenvolvimento Social. Em fevereiro, Lula reinaugurou o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), fechado em 2019 por Bolsonaro. O Conselho é um importante espaço de participação popular na construção do direito à alimentação adequada. Dentre suas atividades, destacam-se o controle de estoques de alimentos; programas de cisternas para agricultura familiar, com articulação entre campo e cidade; rotulagem de alimentos; monitoramento de ações e políticas públicas. Vale recordar que o direito à alimentação faz parte dos direitos sociais previstos no art. 6 da Constituição.

Embora sejam fundamentais as medidas emergenciais do combate à fome e o estabelecimento de programas de renda básica, enquanto a soberania alimentar não for tratada como pauta estruturante da política agrária brasileira, seguiremos recaindo em ciclos de retorno ao mapa da fome. A soberania alimentar envolve um olhar mais sistêmico ao modelo de produção no campo, que prioriza a produção da agricultura familiar de base ecológica. No Brasil, os alimentos que são disponibilizados em nossa mesa provêm da agricultura familiar camponesa que, no entanto, recebe menos incentivos e ocupa menores proporções de terras. As monoculturas do agronegócio não produzem a diversidade de alimentos nutricionais de que precisamos.

Nesse caminho, o governo Lula dá passos lentos. Sufocado pelo orçamento apertado, tenta encontrar caminhos para a retomada de políticas públicas em apoio à produção camponesa. Durante o Governo Bolsonaro, a Reforma Agrária foi paralisada, e sofreu duros golpes. Um deles foi a edição da normativa que autoriza a titulação individual dos lotes aos assentados da Reforma Agrária. Antes, o assentado possuía o direito de uso, sendo as terras de propriedade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que implicava que o Estado mantinha sua responsabilidade com a função social da terra, tendo o dever de assegurar políticas públicas. Agora, estimula-se a mercantilização das terras, tornando possível que áreas destinadas à Reforma Agrária sejam incorporadas ao mercado e se destinem à especulação financeira ou ao agronegócio. 

Outro efeito é a explosão de acampados que esperam acesso à terra. Segundo o Movimento Sem Terra (MST), são por volta de 100 mil pessoas que aguardam, em mais de 360 projetos de assentamentos congelados. Muito embora o orçamento de R$ 2,4 milhões seja irrisório para a compra de terras, outros mecanismos precisam ser explorados como a regularização e destinação das terras públicas, o cumprimento real da função social da propriedade e o questionamento da produtividade da monocultura, seja na geração de trabalho como de alimento. Todo esse desafio recairá no presidente do INCRA, nomeado apenas em março. 

No último mês, o governo anunciou a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O PAA realiza a compra direta de alimentos da agricultura familiar camponesa, e em sua nova modalidade, incluirá comunidades indígenas e quilombolas. No anúncio realizado no dia 23 de março, o presidente da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), Edegar Preto, comunicou: “Vamos comprar, a preço de mercado, os alimentos dos agricultores familiares de todo o Brasil e ajudar a colocá-los na mesa dos brasileiros, garantindo renda a quem produz e uma alimentação de qualidade aos consumidores”. Outra prioridade no programa é a compra de alimentos das mulheres: está prevista a cota de que ao menos 50% das compras sejam das produtoras. Também foi reinstalado o Comitê de Assessoramento do programa, assegurando a participação popular na gestão da política. 

Outro passo importante foi o retorno da titulação dos territórios quilombolas. Em março, o governo assinou a titulação de três territórios: Brejo dos Crioulos (MG), com 630 famílias; Serra da Guia (SE), com 198 famílias; e Lagoa dos Campinhos (SE), com 108 famílias. Já tendo titulado tanto quanto o Governo Bolsonaro em quatro anos. A medida faz parte do Programa Aquilombar Brasil, lançado pelo Ministério da Igualdade Racial. O governo ainda comunicou a destinação de 513 milhões de reais para demarcação de territórios indígenas. 


Barra do Turvo/SP: intercâmbio de comunidades quilombolas e mulheres da agroecologia. Foto: Vanessa Silva/Amigas da Terra Brasil

O acesso à terra e ao território são condições primeiras para que indígenas, quilombolas, agricultura familiar e camponesa possam produzir alimentos saudáveis para o Brasil, garantindo também preservação e justiça ambiental. Mas as necessidades não se limitam a isso, é preciso fortalecer as redes de troca e comercialização de sementes, reconhecer os saberes e as práticas diversas dos povos do Brasil, incluir grupos informais de produção e cultura agroecológica ancestral que, ainda mais durante a pandemia, realizaram e encurtaram circuitos solidários entre campo e cidade no combate à fome e à violência. Com soluções que também respondem à crise climática, mas principalmente à garantia de renda e autonomia para as mulheres, redes como a Rede de Agroecologia de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo (RAMA), em São Paulo, em articulação com movimentos sociais e organizações da sociedade civil, como a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) e a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e com grupos de consumos na cidade de São Paulo, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira realizaram, em março, um intercâmbio com coletivos de mulheres do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, promovendo uma integração por meio do diálogo campo e cidade, construído na prática pela organização. 

Para Lúcia Ortiz, das Amigas da Terra Brasil, “a potência dos saberes e fazeres das mulheres, solidárias no cuidado umas com as outras e generosas no trabalho em mutirão, fortalecem seus conhecimentos ancestrais e sua luta por direitos, fazendo chegar à cidade não apenas alimentos saudáveis, mas também valores de dignidade e de organização popular”. 


Frutos das trocas de sementes e saberes quilombolas sobre a sociobiodiversidade e o feminismo popular. Foto: Clarissa Silveira, Sítio Libélula/Grupo Sal da Terra, em Rolante (RS)

A soberania alimentar e as políticas públicas envolvem, ainda, os desafios e atravessamentos da biotecnologia. Recentemente, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO) liberou a produção de trigo transgênico no país. O trigo liberado envolve a modificação genética em 62 genes de DNA, uma quantidade muito superior à soja de 4-5 mil, sendo que uma das modificações é realizada para resistir ao agrotóxico glufosinato de amônio, o qual pode causar danos ao sistema nervoso. Sem a devida segurança ambiental e à saúde humana, o trigo transgênico poderá chegar à mesa dos brasileiros rapidamente. Na Europa, a espécie não foi autorizada diante da falta de comprovação. Segundo Naiara Bittencourt, coordenadora do Programa Iguaçu na organização Terra de Direitos, “o processo de liberação da farinha e, agora, do cultivo de trigo transgênico no Brasil apresenta inúmeros vícios e ilegalidades que implicam a sua nulidade. Propagandeado como resistente à seca, o trigo também é modificado para resistir ao glufosinato de amônio, agrotóxico mais perigoso que o glifosato e é considerado potencial cancerígeno pela OMS [Organização Mundial da Saúde]”. 

No mês do “Abril Vermelho”, recordamos os 27 anos do Massacre de Eldorado do Carajás, no Pará; saudamos a memória de todos os filhos e de todas as filhas desta nação que lutam pelo acesso à terra e permanência no território; que plantam e semeiam a comida de nossas mesas; esses trabalhadores e essas trabalhadoras que sonham que um dia haja um governo que governe para eles e elas.

Esperamos ansiosos e ansiosas pelos dias de ousadia, quando a erradicação da fome, a Reforma Agrária, a biodiversidade, a igualdade racial, a dignidade dos povos deste país sejam o centro, e que no projeto político de nação seja priorizada a soberania alimentar, porque é por meio dela e com ela que ergueremos a soberania popular. 

Edição: Thalita Pires