Agricultura Familiar
Cooperativas cobram políticas contra a concorrência desleal de produtos do trabalho escravo
Do Brasil de Fato
Se o impacto negativo para empresas flagradas submetendo trabalhadores à escravidão contemporânea afeta sua imagem – como é o caso da Aurora, Salton e Garibaldi, envolvidas no escândalo das vinícolas do Rio Grande Sul – isso não significa que seus produtos deixam de ser hegemônicos nas prateleiras de supermercado.
Por vezes, pessoas que se preocupam em boicotar produtos relacionados com violações de direitos, enfrentam dificuldades para encontrar alternativas, seja pelo preço elevado ou por não as encontrar com tanta facilidade.
Carla Guindani, sócia diretora da Raízes do Campo, empresa que reúne cooperativas de 1.549 famílias espalhadas pelo Brasil, destaca os bloqueios que precisam ser furados para a comercialização de produtos da agricultura familiar no varejo.
“O governo tem que investir na agricultura familiar da mesma forma que subsidia e financia a produção do agronegócio”, defende Guindani. Atualmente, diz ela, a falta de fomento público à agroecologia e a remuneração justa destes trabalhadores tornam desleal a competição com o preço de produtos vinculados à superexploração.
“É difícil chegar ao mercado de varejo. É preciso um traquejo”, acrescenta Carla, ao comentar que a responsabilidade social e a história dos produtos não são levadas em conta pelos grandes varejistas. É o que faz com que o suco da Monte Vêneto, uma das nove cooperativas que integram a Raízes do Campo, batalhe espaço em prateleiras ocupadas pelas garrafas da Aurora.
Ambos os sucos integrais de uva são produzidos na região da serra gaúcha. Um envolvido no caso de 207 trabalhadores da colheita submetidos a choques elétricos e cárcere privado. Outro, produzido de forma agroecológica e não transgênico por 170 famílias agricultoras. Ao Brasil de Fato, Guindani elenca os motivos que levam a uma concorrência desleal e caminhos para rompê-la. Confira:
Brasil de Fato: Por que vocês resolveram articular cooperativas em uma marca só? É uma forma de furar os bloqueios de comercialização?
Carla Guindani: A gente foi percebendo que o trabalho de comercialização das cooperativas neste mercado, no varejo tradicional, é muito exigente. Não dá para você ter 40 marcas. Cada pedacinho da gôndola é super disputado e você tem que fazer um trabalho de comunicação muito forte para se manter e para comercializar.
E como a gente estava num processo de representação, eram muitas marcas, muitas cooperativas. A gente evoluiu para a construção de uma marca que representasse a agricultura familiar.
Como que os custos da produção e, consequentemente, o preço do produto que está à venda, impactam a concorrência entre agricultura familiar e agronegócio?
Sim, as pessoas perguntam: “por que é mais caro?”. Porque é mais caro produzir na agricultura familiar do que produzir no agronegócio. Primeiro, o agronegócio tem um financiamento muito maior e uma tecnologia de produção muito bem estruturada para esse modelo produtivo, né? Na agricultura familiar são pequenas produções. Muitas vezes não tem implementos e maquinários agrícolas adequados, então muito do trabalho é manual.
Ainda assim, 80% do que é consumido hoje em alimentação no país é produzido pela agricultura familiar – nessas condições difíceis. Então não dá para comparar o que o agronegócio produz com o que a agricultura familiar produz. É muito mais complexa e muito mais difícil a produção da agricultura familiar.
A gente busca, então, contar a história daquele produto: quem produz, a cooperativa, a família. É muito difícil chegar ao mercado de varejo. É preciso um traquejo.
Qual o diferencial destes alimentos serem agroecológicos?
A Raízes do Campo hoje é uma empresa que oferece à agricultura familiar esses três pilares: inovação, comunicação da marca e comercialização dos produtos. E o que usamos para comunicar o que trouxemos para o projeto é a agroecologia, que é fundamental para sairmos do nicho de apenas orgânico.
É importantíssimo o selo do orgânico, mas também deve haver um respeito e um cuidado com aquela produção. Orgânico é muito fácil de produzir, porque você pode pegar uma grande extensão de terra, ter uma tecnologia adequada e produzir algo ali, obter a certificação de orgânico e vender como tal. Mas isso não impede que esse cultivo seja feito com desmatamento, por exemplo.
Portanto, trazer a agroecologia para o debate é importante, nós entendemos que essa é a forma de mostrar como a agricultura familiar se diferencia do modelo convencional.
A missão da Raízes do Campo é tornar a alimentação brasileira agroecológica. Queremos que todos comam e consumam produtos provenientes da agricultura familiar, produzidos dentro da concepção da agroecologia.
Quais as dificuldades para entrar no mercado de varejo?
Os grandes varejistas geralmente não se relacionam com histórias. Se relacionam com preço. E aí é muito desleal a concorrência. O grande varejo tem suas margens pré-estabelecidas, não se importam como foi produzido ou por quem foi produzido.
Então, você tem dois desafios para entrar no varejo. O primeiro é fazer com que sua marca seja conhecida e abrir espaço na prateleira. E o segundo desafio é quando o varejo pergunta sobre o preço. Eles querem que você chegue com um preço parecido com o concorrente. Com todas as histórias de trabalho análogo à escravidão que aconteceram – eu não consigo chegar a esse preço. Porque aqui temos um trabalho remunerado de forma justa. Então, não é possível fechar essa equação.
O maior desafio para entrar no varejo tradicional hoje é trazer para o debate a responsabilidade do varejo em olhar para o modelo de produção e valorizar isso, enquanto também olham para suas próprias margens.
A gente não está vendendo suco só. A gente está vendendo um suco que tem uma história. Esse é um dos grandes desafios que a Raízes do Campo tem: chegar no varejo, chegar contando uma história e comercializando alimentos com preço justo.
Como fazer com que a competição entre produtos da agricultura familiar e do agronegócio seja menos desleal?
Tem dois entes do elo que precisam se responsabilizar. O governo tem que investir na agricultura familiar da mesma forma que subsidia e financia a produção do agronegócio. Precisa ter assistência técnica, itinerário técnico eficiente, implementos agrícolas adequados para a produção. Precisamos ter políticas de governo para ter um produto com um custo de produção melhor e que não onere tanto o trabalho do agricultor e da agricultora.
Do outro lado, tem o consumidor, que pode ficar tranquilo do ponto de vista da responsabilidade social daquela produção. A pessoa que está preocupada com a preservação do meio ambiente, a redução dos insumos de agrotóxicos, com as famílias e com as questões sociais que impactarão aquela produção. Temos o desafio de baratear esses produtos que, por não ter investimentos, tem uma produção mais cara.
Edição: Rodrigo Durão Coelho