Luta pela Terra

Justiça dá 72 horas para famílias do MST desocuparem área de usina abandonada em PE

Acampamento Josias e Samuel, em Jaboatão dos Guararapes, é uma das oito ocupações do "Abril Vermelho" do MST no estado
Famílias do MST estão acampadas desde o dia 15 de abril em Jaboatão dos Guararapes (PE). Foto: Pedro Stropasolas

Por Pedro Stropasolas e Rodolfo Rodrigo
Do Brasil de Fato | Recife (PE)

A justiça deu 72 horas para as cerca de 430 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que ocupam um terreno improdutivo da antiga Usina Bulhões, em Jaboatão dos Guararapes (PE), desocupem a área.  

O acampamento Josias e Samuel é uma das oito ocupações realizadas pelo MST em Pernambuco durante o “abril vermelho”, mês de luta camponesa em homenagem às 21 vítimas do massacre de  Eldorado do Carajás, que ocorreu no Pará, em 1996. 

“A gente tinha que tirar alguma diretriz da situação das usinas falidas e das massas falidas. Essa usina é uma delas, que hoje não paga o direito trabalhista dos trabalhadores. A área está completamente improdutiva”, pontua José Severino da Silva Filho, da direção Regional do MST e uma das lideranças do acampamento.

A decisão da 5ª Vara Cível da Comarca de Jaboatão em conceder a liminar de reintegração de posse acatou um pedido da Viana e Moura Construções, que adquiriu parte da área da usina de cana de açúcar falida para construir o bairro planejado Parque da Usina.


Barracos de lona dos acampados convivem com cenário devastado de usina falida. Foto: Pedro Stropasolas

A área total da usina é de 853 hectares, o equivalente a 790 campos de futebol. A construtora que reivindica a posse adquiriu 230 hectares de todo o terreno.

“Ela [a construtora] já estava negociando com a própria usina, já tinha negociado uma parte dessa região aqui, inclusive a gente encontrou as áreas cavadas, fazendo terraplanagem para fazer os prédios. Então havia algumas especulações dizendo que ela já tinha pagado uma parte da área e possivelmente ia colocar a equipe de segurança aqui dentro pra ninguém entrar. Então essa especulação imobiliária está acontecendo nessa massa falida que é muito próxima das cidades”, pontua o dirigente do MST. 

“Esse empreendimento vai gerar uma renda de R$ 1 bilhão para a construtora, segundo o projeto, mas não vai atender nenhuma demanda social do povo de Jaboatão. As pessoas vão ter que comprar as casas, enquanto muitas outras vão viver na rua”, completa.

Atingidos pelas enchentes

Desde a falência da Usina Bulhões, em 2009, as áreas entre as cidades de Jaboatão dos Guararapes e Moreno já vêm sendo alvo da especulação imobiliária. Residenciais de luxo como o Alphaville e Três Lagoas já foram instalados na região, onde a falta de água e os engarrafamentos e a degradação ambiental já são uma realidade. 

As famílias do MST estão no local desde o dia 15 de abril e vieram de diferentes localidades da Região Metropolitana do Recife, incluindo do bairro vizinho, o loteamento 92. 

“A gente fez trabalho de base nas comunidades vizinhas, que é chamar a comunidade, o presidente da associação, falar a importância da Reforma Agrária e a importância de ter um território desse desapropriado para os trabalhadores dessa região, sabendo que o Brasil tem hoje um monte de gente desempregada, um monte de gente passando fome e o melhor caminho é a Reforma Agrária para acabar com a fome desse Brasil”, pontua Severino.


Famílias se alimentam diariamente em cozinha coletiva dentro do acampamento. Foto: Pedro Stropasolas

Denise Santana é uma das vítimas das enchentes que atingiram Jaboatão dos Guararapes (PE) em maio de 2022. No acampamento, ela encontrou oportunidade para começar de novo.

“Eu estava morando na Moenda de Bronze, alugada, e quando foi no mês retrasado eu perdi o auxílio. Eles cancelaram meu auxílio. Ai eu pensei: ‘oxe, vou procurar alguma coisa para me enfiar dentro’, porque a pessoa do aluguel quer receber e a gente não tendo é melhor ocupar algum canto. E eu achei melhor esse pra ocupar. Melhor espaço com meu povo. Meu povo não ia ficar na rua. Esse rapaz aqui mesmo cata reciclagem, tem hora que não tinha nem o que comer, aí eu saí trazendo todo meu povinho que queria vir comigo, eu saí arrastando tudinho”, conta a ex-merendeira.

“A gente não está pegando nada de ninguém. A gente está pegando o que é da gente mesmo. Porque a gente está pagando imposto. Então a gente não está invadindo nada está pegando o que é da gente”, completa.

A organização do acampamento é dividida por setores: produção; frente de massas; comunicação; cultura; gênero e direitos humanos. Há também os coletivos de saúde, da juventude e da população LGBTQIA +.

Todas as famílias que chegam no local passam por um cadastramento. Além das formações, o acolhimento é uma característica importante para quem se torna acampado e que ainda não conhece o que é o MST.

“Aqui na redondeza já tem mais de 90% que estão aqui dentro. Estão felizes, sabe? Tem uma senhora que a gente ficou impressionado. O primeiro sábado que passamos aqui, a glicose dela, a diabetes, estava em quatrocentos e pouco. No domingo, tava cento e pouco, porque ela tava mexendo com a terra, isso foi demais pra gente, né?”, conta Maria Silva dos Santos, que organiza os cadastros.

“Hoje, eles podem também estar junto com a gente, plantando milho com a gente, criando seus gados. Já tem gente aqui tirando as goiabas para fazer polpa, aproveitando o rio, aproveitando as cachoeiras que antes não poderiam aproveitar”, complementa Severino sobre as famílias das periferias do entorno.

Produção agroecológica

A perspectiva do MST é que se estabeleça no local um sistema agroflorestal com quintais produtivos para que cada núcleo familiar possa produzir alimentos. Um primeiro roçado coletivo já vem sendo implementado, e a ideia é que ele sirva de referência para o plantio nos lotes individuais.

“Eu planto milho, feijão, já estou plantando coentro. Eu e minhas companheiras, a gente está devagarzinho porque a gente chegou agora”,  explica Valter Lopes da Paz, um dos acampados;

Segundo o MST, a Usina Bulhões, tem dívidas não só com o estado, mas com os trabalhadores e trabalhadoras vinculados à elas, alguns que sequer tiveram a demissão formalizada até hoje. Esse é o caso de Valter, que também trabalhou na construção de um dos condomínios na região. “Dezoito anos de piso e nunca me pagaram. A Usina faliu e nem a minha carteira eles me deram”, lamenta.


A implementação de um sistema agroflorestal foi uma das primeiras tarefas dos acampamentos desde o início da ocupação. Foto: Pedro Stropasolas

Severino Filho considera que a agroecologia é o melhor caminho para recuperar o estado de “terra arrasada”, em que se encontra o território da usina.

“O usineiro vem aqui e destrói tudo. Com seus venenos, seus agrotóxicos, desmata, acaba com as matas para plantar cana. Para garantir que a terra volte a sua origem natural, a gente precisa produzir agroecologicamente; Produzir as nossas próprias sementes, produzir as nossas próprias muda e produzir também comida saudável que a gente possa comer e também vender na cidade que é pra tirar o sustento dos filhos e filhos Sem Terra aqui dentro”, pontua o agricultor.

Conflito secular

Em 1593, Bento Luiz Figueira, um dos proprietários do Engenho São João Batista, onde hoje se encontra a Usina Bulhões, fundou o povoado de Jaboatão dos Guararapes (PE). Século mais tarde, a falência da mesma fazenda é quem consolida os conflitos por terras no município. 

“Com a decretação de falência, ela deixa de pagar os trabalhadores, os tributos desses trabalhadores como o INSS, seguro-desemprego e outras coisas. Mas ela consegue abrir empresa em outros lugares com nomes diferentes. Então por isso que a gente chama massa falida. Então ela faliu, o estado vem aqui, trava tudo que é bem dela. Terra, trator, caminhões. Inclusive a Usina Bulhões é uma das maiores devedoras do estado de Pernambuco na questão da dívida. A gente tinha discutido a possibilidade de trabalhar no processo de adjudicação, que seria a troca da dívida pelos imóveis que ela tem. Isso ajudaria a pagar a dívida com os trabalhadores e ajudaria a fazer a Reforma Agrária acontecer também”, explica José Severino da Silva Filho.

“O Brasil hoje tem muita massa falida de usina a fazendas que conseguem pegar empréstimos aos bancos públicos, ficar hipotecados, e continuar na mão desses usineiros e continuar na mão dos fazendeiros ainda”, completa.


Setor de produção do acampamento já cultiva feijão, milho, coentro e outras culturas. Foto: Pedro Stropasolas

Mártires homenageados

Josias de Barros Ferreira e Samuel Matias Barbosa, que dão nome ao acampamento, foram dois militantes do MST covardemente assassinados no acampamento Alto da Balança, às margens da BR-232, no município de Moreno (PE), em agosto de 2006. Os assassinos dos jovens de 28 e 33 anos foram condenados em júri popular por duplo homicídio qualificado e cumprem penas de 40 anos de prisão.

“O que fica é a lembrança. Então, a gente eterniza os nossos lutadores com o nome do acampamento para que todo muito entenda quem foram Josias e Samuel, hoje referências da nossa luta”, finaliza Severino.

Outro lado

Brasil de Fato tentou contato por diversas vezes com a Viana e Moura Construções, mas não obteve retorno. A reportagem será atualizada assim que a empresa responder os questionamentos.

Edição: Rodrigo Durão Coelho