Feminismo

As mulheres e o maio de 1968

Artigo traz como lição do feminismo, que emerge a partir da rebelião de maio de 68 na França, a necessidade de ir além das reivindicações por igualdade de direitos e fazer a crítica radical ao capitalismo
Praça de la Republique, Paris, França, 29 de maio de 1968. Contra todo tipo de autoridade, as mulheres participavam das manifestações dos grupos de esquerda, faziam greve, mas raramente falavam em público. Foto: Reprodução

Por Izabel Loureiro
Da Página do MST

Já se passaram 55 anos da rebelião de maio de 68 na França e o tema continua controverso. Para a direita, aquele acontecimento propagou a permissividade, originou o relativismo moral, o niilismo, a destruição dos valores. Para uma parte da esquerda, foi a época que deu origem ao hedonismo narcisista, ao individualismo, à nova burguesia financeira, à modernização do capitalismo. Para outros, foi um evento liberal-libertário que permitiu uma revolução nos costumes. Os críticos veem apenas o lado menos nobre da rebelião, protagonizada por homens, brancos, estudantes, parisienses, bem nascidos. Arrivistas em seguida, obtiveram sucesso na vida, renegaram as antigas convicções, viraram conselheiros do príncipe, ou redatores-chefes de jornais conhecidos, escritores premiados, professores universitários, publicitários. Não percebem que envelheceram e se tornaram conservadores.

Mas será que foi isso mesmo? Afinal a rebelião não aconteceu só em Paris, mas na França inteira. Foi a maior greve vista até então, com 7 milhões de grevistas durante semanas. Testemunhos de homens e mulheres comuns relatam dias extraordinários, de questionamento profundo das certezas e da rotina, de encontros improváveis, conversas com desconhecidos, experiências inesperadas, tudo isso operando o apagamento das fronteiras sociais. Para esses participantes desconhecidos, maio de 68 erigiu uma parede divisória entre um antes e um depois, de efeitos duradouros*.

Nessa sociedade conservadora, em que as mulheres só obtiveram o direito de voto em 1945, dominada pelo catolicismo, pela guerra da Argélia, pelo gaullismo, pela separação entre moças e rapazes nos alojamentos universitários, pela proibição de usar calça ou minissaia no colégio, pela hierarquia entre professores e alunos – nessa sociedade esclerosada e bem pensante, dominada por uma miríade de coerções idiotas, explode a revolta. Todas e todos queriam mudar a vida.

O relato a seguir dá ideia do clima reinante. Anne Zelenski, cofundadora em 1966 do FMA (Féminin Masculin Avenir [Feminino Masculino Futuro]), precursor do MLF (Mouvement de Libération des Femmes [Movimento de Libertação das Mulheres]), fundado em 1970, amiga de Simone de Beauvoir, conta que, estudante da Sorbonne, percebeu que se falava de tudo naqueles dias, menos da questão feminina. Convocou então uma reunião para o anfiteatro Descartes, a fim de discutir “As mulheres e a revolução”. Fora O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, e A mulher mistificada, de Betty Friedan, a opressão das mulheres não era tema popular. As organizadoras da reunião, temendo pouco público, se surpreenderam com a lotação completa e a animação que dominava o ambiente. Pela primeira vez se falou abertamente de revolução sexual, orgasmo, opressão das mulheres, contracepção, aborto, homossexualismo: “cheias de alegria, assistíamos a esse momento único em que as palavras contidas há tanto tempo, circulavam entre os presentes, livres daquele decoro mortífero que nos condenava ao silêncio sobre essas coisas.”

Contra todo tipo de autoridade – família, Igreja, Estado, partido –, as mulheres rejeitavam “ficar no seu lugar” e se submeter aos papéis pré-estabelecidos de mãe, esposa e dona de casa. Colegiais, universitárias, operárias, empregadas públicas, elas participavam das manifestações dos grupos de esquerda, faziam greve. Mas raramente falavam em público. Enquanto os homens tomavam a palavra nas reuniões, nas assembleias, dirigiam as manifestações, as mulheres ficavam na sombra, datilografando manifestos, rodando mimeógrafos, servindo café nas reuniões.

Angela Davis dá seu testemunho nesse sentido, dizendo que na sua organização da época, o SNCC (Comitê de Coordenação não-violento dos Estudantes), em Los Angeles, os homens sempre apareciam como os porta-vozes do movimento e as mulheres faziam o trabalho doméstico da organização. Ou seja, tudo o que era necessário para manter o grupo de pé e que ficava na sombra. Ela acabou deixando a organização por estar “cansada de homens que mediam sua grandeza sexual a partir da genuflexão intelectual das mulheres.” (A. Davis, Uma autobiografia, Boitempo, 2019, p.186) E diz mais: “Existe uma correlação entre essa invizibilização e o que vivemos hoje. Nós não temos que reproduzir esse tipo de velhos modelos masculinistas de poder, baseados em individualidades, carisma pessoal, o que reproduz justamente aquilo que combatíamos.”

No Brasil as coisas não eram diferentes. Mas é preciso acrescentar que, para além do combate ao patriarcado, se impunha a luta contra a ditadura militar, o que tornava tudo mais difícil.

A lição que nos ficou do feminismo que emergia em 1968, e se consolidou nos anos seguintes, é que um movimento feminista digno do nome deve ir além das reivindicações por igualdade de direitos e se empenhar na crítica radical ao capitalismo. O que implica ser antirracista e ecossocialista.

*Ver Christelle Dormoy-Rajramanan, Boris Gobille, Erik Neveu, Mai 68 par celles et ceux qui l’ont vécu, Paris, Les Editions de l’ Atelier/Mediapart, 2018.

**Editado por Solange Engelmann