Soja, milho e pecuária dominam 60% de território do povo Avá-Guarani (PR), revela estudo

Diagnóstico mostra impactos da monocultura de grãos à TI Tekoha Guasu Guavira, como fome, intoxicação por agrotóxicos, ameaças à agrobiodiversidade, esbulho, desmatamento e confinamento
Moradia em Tekoha Tatury ao lado de lavoura de soja. Foto: CGY/2022

Por Comissão Guarani Yvyrupa
Do CIMI

Mais de 60% de uma Terra Indígena no Oeste do Paraná está dominada pelo agronegócio, enquanto o povo Avá-Guarani resiste em 1,3% da área, com roças tradicionais. É o que revela o diagnóstico Impactos da produção de commodities agrícolas às comunidades Avá-Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá/Oeste do Paraná, produzido pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e lançado na manhã de quinta-feira (27/4), durante o Acampamento Terra Livre (ATL).

Os municípios de Guaíra e Terra Roxa, nos quais a TI Tekoha Guasu Guavirá se insere em sua quase totalidade, têm atualmente 80% de suas áreas destinadas ao agronegócio. Nesta Terra Indígena vivem mais de 3000 indígenas do povo Avá-Guarani, cercados por grandes lavouras de soja, milho e eucalipto. As consequências deste cenário vão da fome até a intoxicação por agrotóxicos, passando por ameaças à biodiversidade, aponta o relatório.

“Mais de 60% de uma TI no Oeste do Paraná está dominada pelo agronegócio, enquanto o povo Avá-Guarani resiste em 1,3% da área, com roças tradicionais”

“Há casos de famílias que dependem dos restos de alimentos que pegam no lixão de Guaíra. O confinamento territorial, atravessado pelos efeitos climáticos severos, são mutuamente agravantes do risco da perda da agrobiodiversidade, com consequências também sobre a fome”, explica a geógrafa Teresa Paris, consultora da CGY e uma das autoras do estudo.

O documento também indica a presença dos roçados e quintais das tekoha ou aldeiasde Guasu Guavirá como pequenas ilhas de grande diversidade de plantas alimentícias e medicinais, sendo essa uma forma de driblar a homogeneização de espécies industriais das lavouras do entorno e a escassez alimentar que permeia as aldeias.

“Conseguimos plantar alguma coisa, mas não em quantidade suficiente para manter a nossa sustentabilidade. As dificuldades de manter essas sementes se dão devido à falta de espaço, ao agrotóxico e também às mudanças do clima”, salientou Ilson Soares, coordenador regional da CGY e uma das lideranças da tekoha Y’hovy em entrevista.

“Há casos de famílias que dependem dos restos de alimentos que pegam no lixão de Guaíra”

Desenho feito por criança Avá-Guarani de Tekoha Guasu Guavira, 2016. Foto: CGY

Fome, agrotóxicos e os impactos à biodiversidade

Para enfrentar situações de extrema vulnerabilidade alimentar imposta pelo confinamento territorial, os indígenas Avá-Guarani, confinados a uma parcela de 1,3% do total reivindicado para demarcação, vêm recorrendo às doações de cestas básicas do governo federal, assim como ao consumo da merenda escolar no caso da alimentação das crianças, aponta o estudo.

A pesquisa da CGY aponta que, segundo dados do Censo Agropecuário de 2017, dos 661 estabelecimentos de Guaíra, 509 declararam utilizar agrotóxicos, enquanto 144 declararam não utilizar. Em Terra Roxa, dos 1.209 estabelecimentos, 921 utilizaram agrotóxicos e 281 declararam não utilizar. Diante disso, relatos sobre danos à saúde dos indígenas, com o aparecimento de sintomas como dores de estômago, dores de cabeça e diarreia após a dispersão dessas substâncias são recorrentes.

Frequentemente encontra-se galões de armazenamento de agrotóxicos jogados no rio, onde as crianças se banham e famílias pescam”

“Um ancião morador desta aldeia relatou que frequentemente encontram galões de armazenamento de agrotóxicos jogados no rio, no local onde as crianças se banham e onde algumas famílias pescam, em vez de serem corretamente descartados”, descreve o estudo referindo-se à tekoha Guasu Guavira.

Além disso, são mencionados impactos às plantações e sobre a vida dos animais. “Muitas vezes algumas pessoas chegam a passar mal, os animais morrem, como os franguinhos sempre acabam morrendo. Toda vez que passam agrotóxicos as pessoas da comunidade ficam com dor de cabeça, náuseas, às vezes tem vômito e diarreia. E como a gente não tem saneamento básico de qualidade, a gente fica mais exposto”, apontou Karai Okaju.

O mesmo ocorre na aldeia tekoha Pohã Renda, onde relataram a morte de inúmeras galinhas não apenas como efeito da aspersão dos agrotóxicos, mas também pelo fato de os animais ciscarem sementes de milho envenenadas que são jogadas no plantio de eucalipto, contígua à aldeia, a fim de atingir as saúvas, retrata a pesquisa.

Os Avá-Guarani já testemunharam até mesmo o uso de agrotóxicos como arma química, isto é, sendo pulverizados intencionalmente sobre as aldeias”

Trator pulverizando agrotóxico em cima de uma moradia em Tekoha Guarani, em 2013. Foto: Acervo CTI

Com exceção de três aldeias localizadas na área urbana, todas as tekoha de Guasu Guavirá fazem limite com as lavouras de soja, chegando, em alguns casos, a ter um espaço menor de dois metros de distância entre o plantio e as casas. Dessa forma a exposição à deriva dos agrotóxicos é sistemática.

Os Avá-Guarani já testemunharam até mesmo o uso de agrotóxicos como arma química, isto é, sendo pulverizados intencionalmente sobre as aldeias com o objetivo de atingir casas, roçados e os próprios indígenas. “Eles aproveitam essas ferramentas e usam como se fossem armas químicas. A gente teve esse problema do fazendeiro passar veneno em cima da comunidade e deixar todo mundo doente, já aconteceu em pelo menos duas comunidades, passaram veneno com o trator e uma vez de avião”, diz Karai Okaju.

Nesse cenário, Teresa ressalta a necessidade de proibir o uso de agrotóxicos nas lavouras próximas às Tekoha, assim como a utilização criminosa dessas substâncias sobre as aldeias. “É indispensável proteger as comunidades e o território da contaminação, assim como preservar a agrobiodiversidade e as práticas e saberes associados próprias dos Avá-Guarani, bem como fortalecer o projeto de soberania alimentar das comunidades, garantindo o acesso aos alimentos em quantidade e qualidade necessários a todas as famílias de Guasu Guavirá.”

“É indispensável proteger as comunidades e o território da contaminação, assim como preservar a agrobiodiversidade e as práticas e saberes dos Avá-Guarani”

Estudo sobre “Impactos da produção de commodities agrícolas às comunidades Avá-Guarani (2023)”, produzido pela Comissão Guarani Yvyrupa. Foto: CGY/2023

Empresas lucram às custas da fome

Ainda assim, os faturamentos obtidos pelas principais cooperativas e empresas agropecuárias da região como a C.Vale Cooperativa Agroindustrial (C.Vale), Copagril, Integrada e I.Riedi Grãos e Insumos multiplicam ano a ano batendo recordes, mostra o diagnóstico. “A C.Vale, que atua nos estados do Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, além de regiões do Paraguai, ampliou seu faturamento em 42,21%, fechando o ano de 2021 com receita de R$ 17,44 bilhões.”

Na mesma linha, a Integrada Cooperativa Agropecuária, com atuação no Paraná e em São Paulo, obteve R$ 5,85 bilhões de faturamento em 2021. Já a Copagril, cuja atuação se dá no Paraná e Mato Grosso do Sul, faturou R$ 2,42 bilhões no ano passado.

A C.Vale, que atua no Brasil e no Paraguai, ampliou seu faturamento em 42,21%, fechando o ano de 2021 com receita de R$ 17,44 bilhões”

Diante desta conjuntura, a CGY chama a atenção para a narrativa de que o agronegócio brasileiro supostamente alimenta o mundo, usada inclusive pelo governador do estado, Ratinho Junior (PSD). “No contexto fático do país maior produtor de soja do mundo, ao contrário do que propaga a narrativa ruralista hegemônica de que o agronegócio brasileiro alimenta o mundo, 125,2 milhões de pessoas enfrentavam algum nível de insegurança alimentar e nutricional e 33,1 milhões de pessoas enfrentavam a forma mais grave da fome – não tinham o que comer no final de 2021”, ressalta o estudo.

A pesquisa evidencia também o fato de que a produção de alimentos básicos da dieta da população, como o arroz, a mandioca e o feijão, perdem cada vez mais espaço em Guaíra e Terra Roxa, na medida em que avançam as lavouras para a produção de commodities agrícolas.

A CGY chama a atenção para a narrativa de que o agronegócio brasileiro supostamente alimenta o mundo, usada inclusive pelo governador do estado”

Quintal de moradia em Tekoha Guarani, começando a ser reflorestado em 2016, no limite com lavoura de soja. Foto: Acervo CTI

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inseridos na investigação da CGY demonstram que a área total cultivada com arroz reduziu de 540 hectares (ha) em 1974 para 0 ha em 2020. A situação é semelhante com o feijão, que em 1984 (ano em que se tem a informação mais antiga) tinha apenas 70 ha plantados, caindo para 0 em 2020. No caso da soja o crescimento foi de mais de 200% de ha plantados entre 1974 e 2020, no município de Guaíra.

Já em Terra Roxa plantavam-se 720 ha de arroz em 1974 e 1.650 ha de feijão no mesmo ano, ambas as culturas já não tinham mais nenhum hectare plantado em 2020. Por outro lado, aumentou-se 245% os ha cultivados de soja na região.

“A produção de alimentos básicos da dieta da população, como o arroz, a mandioca e o feijão, perdem cada vez mais espaço em Guaíra e Terra Roxa”

Aliada à produção em larga escala foi promovida uma grande devastação ambiental nos dois municípios, sendo que em 2014 a porcentagem de matas e florestas naturais correspondiam a apenas 9% em cada cidade, revela o Diagnóstico.

A vegetação nativa que sobreviveu à devastação ambiental constitui atualmente apenas 12,4% da área delimitada da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, aos quais os indígenas têm muitas vezes o acesso impedido por proprietários privados. “Isso significa que o acesso às áreas florestadas fundamentais para os Avá-Guarani é extremamente restrito”, diz uma parte do relatório.

A vegetação nativa que sobreviveu à devastação ambiental constitui atualmente apenas 12,4% da área delimitada da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá”

Desenho feito por criança Avá-Guarani de Tekoha Guasu Guavira, 2016. Foto: CGY

Saiba mais

A situação em que se encontra atualmente a TI Tekoha Guasu Guavira se dá sobretudo por um histórico de esbulho territorial do povo Avá-Guarani, marcado por remoções forçadas, mortes, devastação ambiental e alagamento parcial de seu território pelo reservatório da Usina Hidrelétrica (UHE) de Itaipu a partir da década de 1980.

De acordo informações do relatório de identificação produzido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em 2018 incidiam sobre a Tekoha Guasu Guavirá cerca de 165 fazendas, essas posses originaram-se da concessão indevida das terras de ocupação tradicional dos indígenas, cedida pelo Estado, em favor de empresas e proprietários privados individuais.

Além disso, segundo o estudo, “após a Constituição de 1891, que transferiu a competência da titulação de terras aos Estados, várias concessões foram feitas pelo Estado do Paraná, então governado pelas oligarquias associadas à exploração da erva-mate e de madeira.” Nesse contexto foram concedidos títulos incidentes no atual município de Guaíra pelo governo paranaense à Companhia Mate Laranjeira e outras empresas obrageras.

Em 2018 incidiam sobre a Tekoha Guasu Guavirá cerca de 165 fazendas, posses cedidas pelo Estado, em favor de empresas e proprietários privados individuais”

Apesar das inúmeras dificuldades, a partir do final da década de 1990, as famílias então removidas à força ocuparam parte das terras que não ficaram submersas após a operação da UHE Itaipu, reafirmando a necessidade do reconhecimento dos direitos territoriais da Tekoha Guasu Guavirá.

Ainda assim, o processo de demarcação está paralisado na Funai na etapa de identificação e delimitação da Terra Indígena depois de ser suspenso em 2018 por decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) de Porto Alegre, que foi favorável à Federação dos Agricultores do Estado do Paraná. Na sequência o processo ainda foi anulado pela Justiça Federal do Paraná em decisão favorável ao município de Guaíra, levando a uma disputa judicial que segue sem resolução, uma vez que a Funai não quis recorrer da decisão até o momento.

Desde o final da década de 1990, as famílias então removidas à força ocuparam parte das terras que não ficaram submersas após a operação da UHE Itaipu”

Criança com sementes colhidas em Tekoha Y’Hovy, em 2019. Foto: Acervo CTI

Nessa conjuntura soma-se à insegurança territorial, o racismo e consequentemente o desemprego e os efeitos psicológicos graves sobre os indígenas, que são marginalizados pelo setor ruralista das cidades. Karai Okaju narra como se deu o movimento orquestrado para impedir a continuidade da demarcação da TI Tekoha Guasu Guavira. “Fizeram manifestações na BR e manifestações silenciosas com faixas na entrada da cidade, que diziam: ‘Invasão indígena não combina com ordem e progresso’, com adesivos em carros que diziam: ‘Não à demarcação de terras indígenas’”, conta.

A partir daí, as práticas racistas, segundo ele, tornaram-se ainda mais extremas. “A ponto de termos parentes sendo assassinados a tiros, por linchamento, por atropelamento e também outros impactos psicológicos. O suicídio virou uma epidemia com o preconceito na cidade, a falta de emprego e a discriminação nas escolas”.

Acesse, baixe o estudo completo.