Comida sem veneno

Produzindo sob risco de despejo, acampados levam toneladas de alimentos à Feira do MST

No Brasil, 65 mil famílias do MST esperam a regularização como assentadas: "para seguir produzindo, precisamos da terra"
O Acampamento Herbert de Souza faz parte do Quilombo Campo Grande, no Sul de Minas Gerais. Foto: MST-MG

Por Gabriela Moncau
Do Brasil de Fato | São Paulo (SP)

Começou nesta quinta (11) a Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O evento, que vai até domingo (14), deve reunir centenas de milhares de pessoas no Parque da Água Branca, em São Paulo. Com mais de 500 toneladas de alimentos saudáveis trazidos para a feira, o MST vem reforçando, nas falas de seus integrantes, o mote de que para produzir comida é preciso ter terra.

A 4ª edição da feira é realizada em um momento em que o Congresso Nacional aprovou a instauração de uma CPI para investigar ocupações do MST e que milícias rurais de fazendeiros se organizam no sul da Bahia.  

Segundo o movimento, processos como estes buscam, por meio da criminalização, esvaziar o debate público e esconder o fato de que boa parte da comida saudável produzida no Brasil só chega à mesa da população por ser cultivada em terras que tiveram de ser ocupadas por famílias camponesas organizadas. 

Dados do IBGE indicam que de toda a área de cultivo do país, 78,3% é usada pelo agronegócio para a produção de commodities para exportação. Já a produção de alimentos para consumo interno – como mandioca, feijão e arroz, em grande parte cultivados pela agricultura familiar – ocupa só 7,7% deste território.  

Esses alimentos estão entre aqueles trazidos pelos 1,2 mil feirantes que vieram à capital paulista para o evento do MST. Parte dos agricultores que produzem esses itens vive em acampamentos, ou seja, territórios ocupados que ainda aguardam a regularização estatal como assentamento da Reforma Agrária. Ao mesmo tempo em que cultivam alimentos sem veneno, eles lidam com o fantasma do despejo. 

Café Guaií e produzido pelas famílias Sem Terra do Quilombo Campo Grande, no Sul de Minas Gerais. Foto: Juliana Adriano

Café do quilombo 

É o caso de Sueli Oliveira, moradora do Acampamento Marielle Vive, em Valinhos (SP) e de Jailson Lima, do Acampamento Herbert de Souza, no Campo de Meio (MG). Os dois cresceram na roça. Ela, em Iporã, no Paraná. Ele, em Bom Jesus da Lapa, na Bahia. 

Hoje com 39 anos, Jailson se mudou do Nordeste em 2004 para esta ocupação – uma das 11 que fazem parte do Quilombo Campo Grande. “Saí de um canto que não era meu para vir para um canto que, pelo menos por enquanto, graças a Deus, está sendo nosso”, sorri. “Antes essa área estava abandonada, tinha uns cavalos soltos só”, recorda. No acampamento, vivem 28 das 459 famílias que compõem o quilombo. 


O café orgânico e agroecológico é a principal cadeia produtiva do Quilombo Campo Grande/MST-MG

A área, no entanto, é alvo de disputa. Ali já funcionou uma usina de açúcar e álcool, administrada pela Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), que teve a falência decretada em 2000. Dezesseis anos depois, no entanto, um plano de recuperação judicial da empresa incluiu a reincorporação da área.

A massa falida da Capia inclui, no seu plano, o arrendamento de parte deste território para a Jodil Agropecuária e Participações Ltda, cujo proprietário é o empresário paulista João Faria da Silva, conhecido como o “barão do café”. Uma estrada de terra separa o acampamento Herbert de Souza dos outros latifúndios de Faria.  

“A liminar de despejo está na Vara Agrária de Minas Gerais. E está para ser julgada”, diz Jailson, com preocupação. “O processo continua e a gente espera que agora, com o novo governo, a gente possa resolver isso de uma vez.”

Mesmo com a angústia pendente, as famílias implementam na área uma das experiências mais reconhecidas de transição agroecológica do país. Além da produção do café orgânico agroecológico que é o carro-chefe, também são cultivados hortaliças, frutas e grãos, além de uma produção de mel. Todos estes produtos estão na Feira Nacional da Reforma Agrária.  

O fato de as famílias serem acampadas e não assentadas, no entanto, faz com que não possam acessar políticas públicas de fomento à agricultura familiar, nem mesmo serem representadas formalmente pela Cooperativa Camponesa do MST, que tem a marca Guaií e atua no sul de Minas. 

“Hoje a gente tem uma cadeia de produção grande nas nossas áreas. A gente só não consegue acessar diretamente a cooperativa, então a maioria das famílias precisa fazer entrega dos seus produtos para atravessadores. Tem essa dificuldade ainda”, relata Jailson.  

“A insegurança ronda a consciência da gente”

Situação parecida é vivida por Sueli e as outras 419 famílias que vivem no Marielle Vive, o maior acampamento do MST no estado de São Paulo. Localizado no interior paulista, ele fica bem próximo, por irônica coincidência, da cidade de Campinas, de onde João Faria administra os quase seis mil hectares de terra que possui entre Minas Gerais e São Paulo. 

Sueli chegou em Valinhos (SP) aos 17 anos, depois que sua família perdeu a lavoura em uma geada no Paraná e, sem dinheiro, cedeu à pressão das grandes fazendas que a rodeavam. Venderam o pequeno sítio e foram tentar a vida na cidade. Sueli estudou até a quarta série e depois teve que se dedicar ao trabalho para ajudar no sustento da casa. Viúva aos 27 anos, criou três filhos sozinha.  

Ela tinha 55 anos e estava desempregada quando, em abril de 2018, o MST ocupou uma área ociosa de 130 hectares. “Na primeira semana fiquei curiosa, na segunda eu fui para ver como era. Chegando lá eu falei: esse é meu lugar”. Já com os filhos criados, Sueli voltou a trabalhar na terra, que tanta falta lhe fazia desde a infância.  

“A partir desse dia eu sou uma militante do movimento, me identifico muito, acho que é uma causa necessária e é o caminho que a gente tem para fazer a luta”, salienta.  


O acampamento Marielle Vive surgiu um mês depois do assassinato da vereadora do PSOL. Foto: MST-SP

O acampamento Marielle Vive tem, como principal símbolo de sua produção agroecológica, uma horta coletiva em formato de mandala de mil metros quadrados. Além disso, com um trabalho de reflorestamento ambiental e preservação das nascentes, já foram plantadas cerca de duas mil árvores no território. 

“A gente já produz e produz bastante aqui. É uma terra abençoada, porque tudo o que a gente coloca, a gente tira. Hoje já temos milho, mandioca, batata doce, pitaia. E só não tem mais por conta dessa iminente situação de reintegração. Isso judia muito a gente”, relata Sueli. A área é reivindicada pela Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários.   

Além da ação de despejo que corre na Justiça, a comunidade já foi alvo de corte de abastecimento de água e, no passado, de três ataques a tiros. “É muito difícil saber que você tem sua casa e que amanhã você pode não ter. Então a insegurança ronda a consciência da gente a todo minuto”, descreve a agricultora. 

Por outro lado, diz ela, “o povo está bem animado com a Feira Nacional da Reforma Agrária. Estamos levando hortaliças, banana, mandioca, cúrcuma, colorau. Produtos medicinais: tinturas, pomadas. Artesanatos. Vamos fazer bonito”. 

Saúde, meio ambiente e terra 

“Se a gente pudesse recomendar para toda nossa população brasileira se alimentar de produtos assim, é o que a gente queria fazer, porque além de representar um símbolo de luta, é totalmente saudável”, expõe Jailson.   

“E para que nós continuemos produzindo alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos, a gente precisa da terra. Porque sem a terra, não tem como se produzir. E os grandes monocultores não produzem alimento né? Produzem commodities. Nada que traga alimentação saudável para o povo”, argumenta Sueli.  

Ela e Jailson fazem parte das 65 mil famílias Sem Terra que vivem acampadas no Brasil, cuja demanda por regularização como assentadas está entre as centrais do MST ao governo Lula.  


Manifestação de moradores do acampamento Herbert de Souza contra o despejo. Foto: MST-MG

“A gente precisa resolver a situação dos acampamentos de uma vez por todas. E buscar os mecanismos de pressionar os próprios políticos a resolver isso. É tempo demais que nossas famílias estão sofrendo, sem ajuda nenhuma, resistindo até hoje”, diz Jailson.  

“É um sinal”, afirma o coordenador do MST em MG, “que é um povo de luta né? Um povo trabalhador, que gosta da terra e que contradiz aquele discurso criminalizador de que é terrorista. Estamos falando de movimentos que organizam pessoas, famílias, que querem lutar por um pedacinho de terra”. E o fazem, lembra Sueli, produzindo comida em tempos em que “a fome bate na porta da população”.

Edição: Thalita Pires