Reforma Agrária

Comunidades camponesas se unem pelo direito à terra no complexo Zattar, em Pinhão (PR)

Conflito começou há cerca de 70 anos e envolve milhares de famílias de Sem Terra, posseiros, quilombolas, faxinalenses e pequenos agricultores, pressionados pela indústria madeireira Zattar, acusada de grilagem
O palco que recebeu a assembleia foi rodeado por alimentos produzidos pelas famílias camponesas, mais tarde partilhados com moradores urbanos em situação de vulnerabilidade. Foto: Ednubia Ghisi / MST-PR  

Por Ednubia Ghisi, do Setor de Comunicação e Cultura do MST-PR
Da Página do MST 

A Assembleia Popular pela Regularização Fundiária e Reforma Agrária no complexo Zattar, realizada em Pinhão, na manhã desta quinta-feira (11), marcou uma união inédita na história do Paraná: entre as mais de 800 pessoas presentes, estavam camponesas e camponeses Sem Terra, povos faxinalenses, quilombolas, posseiros e pequenos agricultores, todos com a luta comum pelo direito à terra, à produção de alimentos e à vida digna. 

O conflito agrário protagonizado pelas indústrias madeireiras da família Zattar vem desde a década de 1940, e desde então tem gerado a expulsão e a morte de camponeses e caboclos, para a grilagem de terras. O cenário do conflito é de um vasto território de campos e florestas, com muita água, terra fértil e biodiversidade.

“[…] Após décadas de conflito, exploração e expropriação, os povos tradicionais e Sem Terra que ocupam o vasto território unem-se no intuito de encontrar possíveis soluções, as quais perpassam necessariamente pela atuação comprometida e contundente do Poder Público, seja por meio de regularização fundiária ou de implantação de políticas públicas de reforma agrária, conforme o uso e ocupação da terra desenvolvido pelos ocupantes”, diz um trecho da “Carta da Terra”, lida durante a assembleia e entregue às autoridades (confira aqui a carta).

Estavam presentes comunidades camponesas e tradicionais de diversos municípios da região afetados pelo conflito, como Guarapuava, Inácio Martins, Mangueirinha, Candói, Reserva do Iguaçu e General Carneiro, além de Pinhão

Foto: Ednubia Ghisi / MST-PR 

Após ouvir os relatos de moradores das comunidades ameaçadas, Nilton Bezerra Guedes, superintendente do INCRA-PR, garantiu que a entidade estará na linha de frente para a realização da Reforma Agrária e regularização das áreas. “Todas as condições estão dadas pra gente resolver esse conflito nesse momento […]. Aqui é uma área emblemática, está dentro das áreas que temos a prioridade de trabalhar”.

Nilton Bezerra Guedes, superintendente do INCRA-PR, garantiu que a entidade estará na linha de frente para a realização da Reforma Agrária e regularização das áreas. Foto: Ednubia Ghisi / MST-PR 
Fotos: Elio Andrade / Sudis

A reivindicação mais urgente das famílias camponesas é pela suspensão de todos os despejos na região. Para ampliar o diálogo, a Assembleia confirmou a formação de um grupo de trabalho com representantes de entidades do Executivo, Legislativo e Judiciário. A coordenação ficará por conta do superintendente do Incra, Nilton Bezerra. 

O integrante da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e liderança na região, Nelson Preto, enfatizou que “a solução dos conflitos é pela regularização fundiária e pela reforma agrária, não existe outra forma, não existe outro jeito”. 

No mesmo sentido, Roberto Baggio, da direção nacional do MST, frisou a força conjunta das comunidades. “Nós não vamos sair de nenhuma dessas áreas, nem de forma individual, nem de forma coletiva. Mexer com um, vai mexer com todos […]. Essa grande união vai se manter cada vez mais forte pra gente legalizar todas as áreas”. 

João Victor Rozatti Longhi, defensor público do Paraná, garantiu que a Defensoria “tem muito trabalho e muita luta, porque a gente sabe muito bem que a nossa vocação constitucional é defender a dignidade das pessoas, e nada viola mais a dignidade das pessoas do que essa insegurança de não saber que no dia seguinte pode ter um despejo. Se Deus quiser, nós nunca mais vamos ouvir falar disso [ despejo ] porque nós vamos lutar até o fim, porque esse é o papel da Defensoria Pública”.

O Superintendente-Geral de Diálogo e Interação Social do governo do estado, Roland Rutyna, esteve presente e garantiu esforço do órgão para a solução do problema. “Sabemos da dificuldade jurídica, administrativa e até política, pra solucionar todo ele, mas tem caminho”. 

Cada autoridade recebeu um cesto cheio de alimentos produzidos pelas famílias camponesas. Feito à base de tiras de taquara, o cesto é artesanato típico do povo caboclo da região. Foto: Ednubia Ghisi  / MST-PR 

Também estiveram presentes na Assembleia os parlamentares: o deputado federal Tadeu Veneri; os deputados estaduais Professor Lemos, Luciana Rafagnin e Dr. Antenor; além de mensagens enviadas por áudio pelos deputados federais Gleisi Hoffmann e Zeca Dirceu, ambos do PT; vereadores de Pinhão Israel Santos, Edson Francesconi, e Luiz Hamilton, presidente da Câmara Municipal; Wilcar Parabocz, secretário de Meio Ambiente e Obras, presentando a prefeitura de Pinhão; a vereadora professora Terezinha, de Guarapuava; a advogada integrante da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro; Claudinei Chalito da Silva, engenheiro agrônomo do INCRA. 

Cerca de 7 mil famílias camponesas vivem em acampamentos no Paraná, isto é, ainda não têm a segurança do acesso à terra e, muitas vezes, enfrentam ameaça de despejo. 

Nulidades e irregularidades 

Pesquisas acadêmicas confirmam os relatos trazidos pela memória oral dos habitantes da região sobre expulsão de famílias e comunidades pela Indústria Zattar, para a grilagem de terras. 

Desde a primeira visita à região do conflito na região centro-sul, há cerca de um ano, o defensor público João Victor Rozatti Longhi teve acesso aos processos para entender o problema mais a fundo, e identificou “muitas nulidades nos processos, muitas irregularidades”. 

Josiane Grossklaus, integrante do Setor de Direitos Humanos do MST, enfatizou a necessidade de que sejam estudadas cada uma das matrículas das áreas, porque pode haver nulidades que comprovem a grilagem de terras, e tornem os títulos nulos. Entre as possibilidades está a de haver terras devolutas, que são áreas públicas sem destinação pelo Poder Público e muitas vezes apropriadas indevidamente. De acordo com a advogada, a empresa também acumula dívidas com a União. “Só com a fazenda nacional, tem uma dívida superior a 150 milhões de reais”. 

Para além dos relatos de violência que ocorreram no passado, famílias sofrem ameaças até hoje. Como a situação em que casas foram incendiadas em abril, no domingo de Páscoa. “Não dá pra continuar assim. A gente não está falando só de uma questão jurídica em relação à posse e à propriedade, nós estamos falando de cenas de violência que continuam acontecendo […]. São situações que estão afetando o dia a dia das pessoas, não é só o despejo, só a insegurança em relação à terra, mas sim uma insegurança com a própria vida”, afirmou a advogada do MST.  

“1º de dezembro jamais será esquecido”

A assembleia também relembrou o despejo violento e repentino da comunidade Alecrim, no Pinhão, em 01 de dezembro de 2017, que destruiu 23 anos de trabalho concretizado nas terras ocupadas. 

A mística de abertura, organizada pela Brigada Cacique Guairacá, do MST da região, relembrou o histórico de violência cometido pelos Zattar. Foto: Elio Andrade / Sudis

Maria de Souza Pain, nascida e criada no Alecrim, fez um apelo às autoridades: “Hoje venho aqui, encarecidamente, pedir às autoridades uma solução, porque é o que nós precisamos. Porque há 4 anos e cinco meses a gente teve uma surpresa muito desagradável na nossa comunidade, quando houve uma reintegração de posse e foram destruídas igreja, posto de saúde e todas as casas e as benfeitorias. Então o meu pedido é por uma solução. Chega de promessas”. 

A urgência para ter a segurança do acesso à terra também foi o que levou Vanessa Aparecida Fonseca de Lima à assembleia, carregando no colo a filha Gabriele, de 4 meses. A camponesa faz parte do MST e vive com a família no acampamento Nova Aliança, em Pinhão. A renda familiar é garantida a partir da extração de erva-mate e a coleta de pinhão, além do plantio de milho e de uma diversidade de alimentos para consumo próprio, comercialização e partilha. 

Vanessa Aparecida Fonseca de Lima e a filha Gabriele, de 4 meses. Foto: Ednubia Ghisi / MST-PR 

“Aquela terra significa muito trabalho, muito esforço. Está tudo lá, a construção, os sonhos, está tudo em cima dela […] É importante ficar lá pra dar um futuro melhor pros nossos filhos, pra mais tarde eles terem onde morar, terem do que sobreviver”, reforça. Com a regularização da área, o desejo da jovem é ter acesso à energia elétrica, à água encanada e à própria moradia. “Nosso futuro é lá”. 

Ela é uma das camponesas que trouxe alimentos para partilhar com as famílias urbanas de Pinhão, e relembra as outras várias ações de solidariedade em que se somou nos últimos anos. “Nós dependemos da terra, se não fosse a terra pra produzir, a gente não teria o que doar, o que servir aos companheiros da cidade. E é ela que garante o futuro da minha filha, um futuro bom pra ela”. 

Solidariedade entre o campo e a cidade 

A luta das famílias camponesas também se expressa na solidariedade. Após o ato político, mais de 8 toneladas de alimentos foram partilhadas com moradores de ocupações urbanas de Pinhão. Toda a produção das companheiras e dos companheiros – como feijão, arroz, abóbora, laranja e mandioca, abençoadas pelo padre Crispim de Jesus. 

Mais de 8 toneladas de alimentos foram partilhadas pelas famílias camponesas. Foto: Ednubia Ghisi / MST-PR

Desde o início da pandemia, a aliança entre as comunidades camponesas e ocupações urbanas se fortalece, por meio da partilha de alimentos produzidos nas terras repartidas. Feijão, arroz, farinha, pinhão, chuchu, abóbora, laranja, abacate, batata, mandioca e mais uma diversidade de alimentos garantiram a diversidade na sacola de cada morador urbano presente na longa fila que se formou rapidamente. 

Entre as centenas de pessoas que receberam as cerca de 8 toneladas de alimentos doados, estavam moradores do bairro Recanto Verde, da Vila Nova, e do Pinheirinho, onde vive Lucemara dos Santos e mais de 200 famílias. Ela conta que o acesso à energia elétrica e à água encanada é precário. “E ficaria muito feliz se o governo legalizasse as terras deles, é através deles que nós temos o que comer aqui na cidade. É uma luta conjunta, do campo e da cidade. Estamos junto com eles”, disse a moradora do Pinheirinho sobre a mobilização pela regularização fundiária e reforma agrária na região. 

Confira aqui a transmissão da assembleia popular na íntegra

*Editado por Fernanda Alcântara