Opinião

ARTIGO | Rastros de Ódio

As rebeliões dos despossuídos são raros espasmos contra a baderna eterna dos dominantes

Em Campos Altos (MG), 34 pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão.
Foto: Auditoria Fiscal do Trabalho/Divulgação

Por Luiz Gonzaga Belluzzo*
Da Carta Capital**

Acompanho com intensa curiosidade e muito interesse as preparações da CPI do MST. Ainda na semana passada, ouvi uma entrevista do presidente da Comissão, Coronel Zucco. Também segui as manifestações do relator, deputado Ricardo Salles, a Excelência que se especializou em instigar a passagem de boiadas. Na segunda-feira 29, na primeira agenda externa da CPI, os deputados cumpriram diligências na zona rural do Pontal do Paranapanema, no extremo oeste do estado de São Paulo.

A propósito de diligências, ocorreu-me relembrar a sucessão dos recentes casos de escravidão em áreas rurais de vários estados de Pindorama. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou 918 trabalhadores em condições semelhantes à de escravidão entre janeiro e 20 de março de 2023, alta de 124% em relação ao volume dos primeiros três meses de 2022.

Ao ler as declarações dos responsáveis por esses empreendimentos escravagistas, fui abalroado por uma desagradável sensação: os senhores escravocratas não tinham clareza a respeito de suas ações. Na verdade, as praticavam com a naturalidade que confirma a permanência do espírito escravagista nas camadas proprietárias da sociedade brasileira.

Não hesitei em recuperar o que havia escrito há tempos a respeito do menosprezo dedicado aos não proprietários pelos senhores da propriedade. Não se trata de repetir, mas, sim, de reafirmar.

O Brasil passou de uma sociedade colonial escravista para uma economia mercantil escravista, evoluindo depois para uma sociedade urbano-industrial, sem ter conseguido promover a democratização da propriedade. Não falo apenas da propriedade agrária, mas da propriedade em geral.

Jean-Jacques Rousseau, no Discurso sobre as Origens da Desigualdade, compreendeu que a propriedade privada era também uma forma de tornar alguns homens mais iguais que os outros. Muitos anos mais tarde, o sociólogo americano Barrington Moore escreveu um livro muito importante – evocativo da obra de Rousseau – As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia. Moore mostra como as formas de propriedade agrária e sua evolução afetam as possibilidades de surgimento de sociedades mais inclinadas à democracia e ao autoritarismo.

A colonização da Nova Inglaterra foi realizada por puritanos, pequenos proprietários que fugiam dos conflitos religiosos e sociais na Europa. Essa gente está na origem do sonho americano da democracia dos pequenos proprietários. Em 1862, o governo dos Estados Unidos editou o Homestead Act, com o propósito de regular a expansão da fronteira, impedindo a expansão da grande propriedade do Sul. Não vamos alimentar ilusões: isto custou a expropriação dos índios de forma violenta, a especulação dos donos de ferrovias com as terras. Mas a presença do Estado vendendo lotes a 1,25 dólar o acre garantiu a reprodução da propriedade familiar, assegurando assim as bases que sustentavam a sua democracia e a defesa dos direitos individuais.

No Brasil, a posse da terra esteve fundada originariamente no privilégio concedido pela Metrópole e depois numa Lei de Terras que estimulava a posse pela violência, a pretexto de criar um mercado livre. De maneira geral, a grande propriedade no Brasil hoje é fruto da ocupação violenta, da grilagem, da obtenção ilegal de titularidade. Tudo isso com a conivência e até o estímulo dos senhores que se ocupavam e ainda se ocupam da direção do Estado.

Mas não é só isso. O restrito acesso à propriedade e os métodos normalmente adotados para se chegar a ela tornam escassos (em relação à população) os novos proprietários. Uma vez investidos dessa condição, passam a defensores obstinados da exclusão dos demais, preferencialmente mediante o uso da violência legal exercida pelo Estado.

De tempos em tempos, a sociedade sofre os efeitos dessa esdrúxula tentativa de combinar formas arcaicas de propriedade, capitalismo e democracia. Os sem-terra, os sem-teto, os sem-renda e os sem-direitos resolvem se manifestar. Logo ressurgem os protestos oficiais e oficiosos, estes com a oratória dos sabujos, contra as rebeliões espasmódicas dos despossuídos, meros soluços de protesto contra a baderna secularmente promovida pelos dominantes.

*Belluzzo é economista, professor e consultor editorial da Carta Capital.
**Publicado na edição impressa da Carta Capital n° 1262, em 07 de junho de 2023.