Direito à Terra
“A democracia política, econômica e social, não combina com concentração fundiária”
Marcelo Goulart. Foto: acervo
Por Filipe Augusto Peres
Da Página do MST
Marcelo Goulart é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, especializado nas áreas de meio ambiente, educação e infância. Com uma longa carreira, Goulart se formou em Direito na Universidade de São Paulo (USP), em 1980; vivenciou os anos de chumbo, testemunhando a ditadura civil militar imposta pelo golpe de 1964, e o processo de redemocratização brasileira.
Em seu histórico, Marcelo participou da construção do Ministério Público redefinido pela Constituição de 1988. Com a projeção de um Ministério Público voltado para as principais questões sociais, Goulart fez boa parte de sua trajetória no interior de São Paulo, passando pelas comarcas de Jardinópolis, Sertãozinho, Jaboticabal e Ribeirão Preto. Com sua experiência, teve participação decisiva, entre outras causas, na conquista do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) da Barra para fins de Reforma Agrária, que atendeu mais de 500 famílias Sem Terra acampadas em Ribeirão Preto.
Confira entrevista concedida por Marcelo Goulart ao MST em São Paulo:
Existe democracia sem Reforma Agrária?
Democracia substantiva, ou seja, a democracia política, econômica e social, não combina com concentração fundiária. Tanto é assim que a Constituição de 1988, ao projetar esse tipo de democracia para o país, incorporou o direito de acesso à propriedade ao rol dos direitos fundamentais, ou seja, daqueles direitos universalizados, cuja titularidade pertence a todos. No Brasil, todos têm direito de acesso à terra. A indecente concentração fundiária, perenizada em nossa História, é causa das desigualdades sociais, do subdesenvolvimento e da hegemonia política dos reacionários; contrasta, desse modo, com a ideia de construção da sociedade justa, livre e solidária consagrada no projeto constitucional. Só é possível superar esse problema com a implementação da reforma agrária, não por acaso posta na Constituição como política pública estratégica, portanto, obrigatória, vinculante. Em países de larga concentração fundiária, como o nosso, não é possível construir a democracia sem realizar a reforma agrária, pois é também pela reforma agrária que garantiremos o direito fundamental de acesso à terra, a redução das desigualdades sociais, o desenvolvimento ecologicamente equilibrado e, sem dúvida alguma, a oxigenação das práticas políticas.
Entre as suas diversas vivências como promotor de justiça, você participou ativamente da temática socioambiental. Inclusive, no acompanhamento da conquista da Fazenda da Barra no município de Ribeirão Preto-SP, uma das primeiras que teve sua desapropriação por questões ambientais. Neste último período vivenciamos um ataque e desmonte dessas questões. De que forma aquela luta dialoga com o contexto que vivemos atualmente, no que ela difere? Como a Reforma Agrária pode contribuir como outro modelo para o desenvolvimento no campo?
A conquista da Fazenda da Barra é a prova de que a inter-relação da luta social com a luta institucional é o caminho para fazer avançar o processo democrático no Brasil. Naquele latifúndio, não se cumpria a função social. A terra era improdutiva e ali ocorriam, recorrentemente, práticas atentatórias ao meio ambiente. Com o apoio da Igreja Católica, dos movimentos ambientalista e sindical, de lideranças partidárias e de personalidades do campo progressista, o MST articulou a bem-sucedida frente social dessa luta. Na frente institucional, o Ministério Público, utilizando os seus instrumentos procedimentais e processuais, obteve a declaração da improdutividade daquele imóvel rural pelo INCRA; investigou os danos ambientais de grande monta ali ocorridos, contando, para isso, com o apoio das agências ambientais federais, estaduais e municipais; bem como atuou perante o Poder Judiciário, obtendo decisão de improcedência da ação possessória ajuizada pelos titulares do domínio. Essa decisão judicial, acatando os argumentos do Ministério Público, reconheceu o descumprimento da função social do imóvel rural e, consequentemente, a ilegitimidade constitucional da relação de propriedade ali estabelecida.
Mas não é só: Ministério Público, assentados e INCRA firmaram compromisso de ajustamento de conduta com o objetivo de implantar, naquela antiga fazenda, assentamento agroflorestal para a produção de alimentos saudáveis, ou seja, o estabelecimento de novos modos de organizar a posse da terra e de promover a produção agrícola, na perspectiva do desenvolvimento economicamente viável, ambientalmente sustentável e socialmente justo. Estávamos, é certo, na primeira década deste século, em uma conjuntura sociopolítica mais favorável às demandas democráticas. Hoje, essa luta encontraria maiores obstáculos, haja vista os seguintes fatores: o empoderamento dado aos setores mais atrasados do chamado “agronegócio” pelos governos reacionários de Temer e Bolsonaro; pelo estímulo dado por esse último à violência no campo; pela desarticulação do campo progressista da sociedade brasileira. Mas creio que, uma vez mantidas a inteligência e a capacidade de articulação das legítimas lideranças sociais e o compromisso dos agentes públicos com os princípios e valores constitucionais, o sucesso da luta, também em contexto hostil, seria inevitável.
Em recente artigo publicado no Jornal GGN “Reforma Agrária: política estratégica e direito difuso”, os dados utilizados demonstram um aumento significativo tanto do conflito como da concentração fundiária. Fruto de uma ofensiva conservadora, latifundiária, quais fatores influenciaram para que estes dados tenham subido tanto? E o que fazer para reverter este quadro? Para o senhor, como o Ministério Público pode se envolver de modo mais estrutural nessas pautas?
O recente aumento da concentração fundiária e dos conflitos por terra são consequências, sobretudo, do abandono, pelos governos Temer e Bolsonaro, do projeto societário estabelecido pelo povo brasileiro no Pacto de 1988. Mas a bem da verdade, é preciso reconhecer que, desde a consagração do princípio da função social da propriedade pelas Constituições democráticas de 1934, 1946 e 1988, nenhum governo brasileiro, exceto o de João Goulart, tomou a iniciativa de efetivar uma política agrária verdadeiramente comprometida com a garantia do acesso à terra a todos que dela precisam. O Brasil não fez a reforma agrária. Os governos socialmente mais sensíveis apenas promoveram uma política de assentamentos em resposta à ação dos movimentos sociais comprometidos com a reforma agrária. Portanto, ações meramente reflexas, jamais proativas.
Só reverteremos esse quadro de inação se houver, além da pressão social, a vontade política das instituições da República em concretizar a vontade geral estabelecida na Constituição Cidadã. No caso de omissão ou acentuada timidez dos governos em realizar a reforma agrária – que, repito, é política pública estratégica, obrigatória e vinculante –, caberá a efetivação dessa política pelo sistema de Justiça, espaço que a Constituição e as leis democratizantes também reservaram para o controle social das políticas públicas. Nesse sentido, é por demais relevante o papel do Ministério Público. O “caso Fazenda da Barra” é uma pequena mostra do muito que essa Instituição do sistema de Justiça pode realizar nessa área. Dada a complexidade da temática da reforma agrária como direito difuso, o Ministério Público tem várias frentes de autuação. A primeira delas, é a intervenção como fiscal da ordem jurídica nos processos possessórios, zelando pelo cumprimento da função social da terra e pelo direito à reforma agrária. A segunda, é a tomada de iniciativa na defesa do direito difuso à reforma agrária, assim o fazendo em sede de inquérito civil, devendo requisitar ao INCRA e às agências ambientais e trabalhistas a verificação do cumprimento da função social do imóvel rural. Ainda nesse âmbito, buscar administrativamente, pela atividade sociomediadora, ou judicialmente, pela via da ação civil pública, a desapropriação do imóvel rural e sua destinação para programa de reforma agrária. A terceira, é a verificação da regularidade dos Planos de Desenvolvimentos dos Assentamentos, promovendo ajustes de conduta em caso de verificação de irregularidade ou insuficiência das ações que deles decorrem. A complexidade temática também exige ação concertada dos Ministérios Públicos Estaduais, Federal e do Trabalho com base em planos e programas de atuação conjuntos.
Agricultoras Sem Terra do Acampamento Marielle Vive, em Valinhos-SP. Foto-MST SP
Ano passado, o governo do Estado de São Paulo aprovou o PL 277, o PL da grilagem, fazendo com que terras que deveriam ser destinadas à Reforma Agrária fossem disponibilizadas aos ruralistas. No Congresso Nacional instaurou uma CPI do MST sem objeto definido, com a clara intenção de criminalizar a luta pela terra. Estas articulações revelam uma articulação nacional da FPA (Frente Parlamentar Agropecuária) em manter e alastrar seus privilégios. Como avalia o papel das instituições do estado nesse processo? Uma das argumentações dos que defendem a CPI está em torno à legislação em que contestam as interpretações de artigos que tratam da função social da terra, entre outros que você cita em seu artigo. Como avalia essas interpretações e ataques à Constituição?
Estamos passando, nestes últimos dez anos, por momentos de empoderamento das frações reacionárias da sociedade brasileira que apostam no recuo do processo democrático inaugurado em 1985 e em contrarreformas legislativas que visam desconstitucionalizar, deslegalizar e desregulamentar direitos sociais arduamente conquistados pelos subalternos. Evidentemente que a questão da terra é a que mais incomoda esses setores, daí o conjunto de iniciativas que você arrola em sua pergunta, todas elas tendentes a impedir a democratização do acesso à terra e a mobilização dos movimentos sociais comprometidos com a reforma agrária. Na esfera legislativa, são iniciativas inconstitucionais. Na esfera sociopolítica, são iniciativas que pretendem ser intimidativas. Somente com a real retomada do processo democrático, com a rearticulação e protagonismo das forças progressistas e com a ocupação, por elas, das instâncias de poder, poderemos mudar positivamente esse quadro.
Por outro lado, nos últimos anos movimentos do campo, quilombolas, indígenas têm se organizado para resistirem a toda violência impetrada pelo agro-minero-hidro-negócio no país e pelo Estado, dando respostas concretas à sociedade por meio de ações solidárias, plantio de árvores, produção de alimentos saudáveis, sem o uso de agrotóxicos, além da defesa de seus territórios, dialogando com a população urbana. Como o senhor vê a importância e a legitimidade da luta dos movimentos sociais? E qual a importância do diálogo com outros setores da sociedade como um elemento de resistência à extrema direita?
A minha esperança de um mundo melhor – afinal, outro mundo é possível – reside justamente na atuação organizada, dialogal, plural, solidária, não sectária e obstinada dos movimentos sociais, especialmente os do campo. Precisamos, neste momento histórico de hegemonia reacionária, eleger o projeto societário da Constituição de 1988 como programa mínimo de atuação, e, a partir desse patamar, ampliar o arco de alianças das forças progressistas, articulando lutas sociais e institucionais, tudo com o objetivo de consolidar a democracia política, condição necessária para atingirmos a democracia econômica e social, para depois, quem sabe, alçarmos voos mais ousados.
Como o senhor tem visto a CPI do MST? Deixe um recado à militância do MST.
Vejo com profunda tristeza a instalação da CPI do MST pela Câmara dos Deputados. Trata-se de uma iniciativa do ruralismo atrasado, completamente desprovida de razão. No momento em que os congressistas deveriam discutir os reais problemas brasileiros, como a concentração fundiária, a fome, a crise climática, as desigualdades sociais e regionais, arma-se o palco para a mistificação. Por outro lado, tenho a certeza de que os bravos lutadores do MST farão desse limão uma limonada. Aproveitarão a oportunidade para apresentar o resultado de suas conquistas, demonstrando que a realização da reforma agrária popular é uma das principais formas de emancipação do povo trabalhador, pois, além de garantir democratização do acesso à terra e produção econômica e ecologicamente sustentável no campo, assegura o que é de mais básico para todos nós: soberania e segurança alimentar. Essa luta vale a pena. Não há CPI que a impedirá.
*Editado por Lays Furtado