Artigo

CPI do MST: contexto e diagnóstico da situação agrária brasileira

José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

Por José Geraldo de Sousa Junior*
Do Expresso 61

Em 30/05/2023, no expediente deliberativo da CPI do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) – CPIMST, foi aprovado o requerimento n. 34/2023 do Deputado Nilto Tatto (PT-SP), também subscrito pelos deputados e deputadas Camila Jara (PT-MS), Gleisi Hoffmann (PT-PR), João Daniel (PT-SE), Marcon (PT-RS), Padre João (PT-MG), Paulão (PT-AL), Valmir Assunção (PT-BA), que solicita realização de reunião para contextualizar e apresentar diagnóstico da situação agrária brasileira, requerendo, para tanto que eu seja convidado como expositor.

Ainda está pendente de deliberação, requerimento do PSOL, subscrito pelas deputadas Sâmia Bomfim (SP) e Talíria Petrone (RJ) que, com base no artigo 58 da Constituição Federal e no artigo 36 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, pedem a realização de reunião na Comissão Parlamentar de Inquérito, com o objetivo de discutir sobre o papel da Constituição Federal de 1988 e a questão agrária, com convite aos seguintes especialistas: além de também a mim indicar, pelas qualificações de Professor Titular da Universidade de Brasília, ex-diretor da Faculdade de Direito da UnB e ex-reitor da mesma instituição; me coloca na melhor companhia, indicando também a minha colega de universidade Ela Wiecko, membro aposentada do  Ministério Público Federal, onde exerceu as funções de Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Vice-Procuradora Geral da República e Vice-Presidente do Conselho Superior do MPF e o jurista Pedro Serrano, Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito.

Já nesse requerimento, o pedido é para que se realize audiência pública, ao fundamento de que a “CPI tome conhecimento de informações, notas técnicas, pesquisas e estudos acadêmicos sobre a questão agrária no país, com o objetivo de proporcionar uma melhor elucidação dos aspectos técnicos e jurídicos das questões que serão tratadas durante os trabalhos” da Comissão.

Para as autoras do requerimento “Os juristas convidados podem contribuir sobre os aspectos e princípios fundamentais da Constituição Federal e a questão agrária no nosso país. É essencial que esta CPI ouça especialistas no campo Constitucional para traçar o melhor panorama para seus trabalhos”.

Agora, no dia 14 de junho, sobre esses pressupostos, se instalou a sessão para o depoimento que prestei a CPI. Devo dizer, de saída, que o convite não só me honra mas dá continuidade a um compromisso de participação no processo legislativo, uma experiência que comecei a vivenciar ao tempo da realização da Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988 quando se estabeleceu pela primeira vez esse diálogo entre a representação parlamentar e a cidadania ativa, no próprio processo. Recordo-me então, ter representado a Comissão Brasileira de Justiça e Paz, da CNBB, como expositor em audiência pública na 12ª reunião da Subcomissão dos Direitos Políticos e Garantias Individuais da Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher, em 30 de abril de 1987, com o tema “A construção social da cidadania: instrumentos de Participação Direta e de Iniciativa Populares como Garantias da Cidadania”.

Para Eneida Vinhaes Bello Dultra e Sabrina Durigon Marques, autoras do ensaio “O Legislativo Convida Professor José Geraldo de Sousa Jr: Tecendo o Fio Democrático da Formação Jurídica Crítica no Espaço da Política”, (in Direito.UnB Revista de Direito da Universidade de Brasília, volume 6, número 2, maio-agosto de 2022: Direito Achado na Rua: Contribuições para a Teoria Crítica do Direito, p. 295-310),

Naquele momento tão importante de consolidação da democracia no Brasil, fez uma defesa enfática pelo direito de conquista da cidadania, não restrito apenas à defesa de determinados direitos, mas que se corporificam como lutas para constituição como sujeito social, que emerge e se emancipa consciente de suas próprias forças.

Na sequência o ensaio percorre uma longa série de participações, na Câmara, no Senado ou em comissões mistas, em que as autoras encontram um vetor que denominam a promoção de “diálogo entre a Academia e [o] Poder Legislativo como forma de afirmar a relevância da democracia tanto para a ação política quanto na formação jurídica defendida como instrumento de liberdade [obtendo-se como resultado] um fio condutor que transporta os valores democráticos por meio da defesa inconteste da cidadania ativa e da sustentação do sujeito coletivo de direitos que emerge e conduz o processo de transformação em busca da justiça social”.

Esse o primeiro balizamento contextual que busco estabelecer. São 35 anos de amadurecimento de um programa constitucional que coloca a democracia e a justiça social em seu centro de realização, sobretudo no processo legislativo, em todas as dimensões desse processo desde os procedimentos preparatórios, nos trabalhos de comissões e no momento deliberativo final. Afastar-se desse processo é trair a Constituição e o Projeto de Sociedade. Por isso se diz (conforme o faz a professora Marilena Chauí) que a democracia não é somente uma forma de governo, é uma forma de sociedade e se realiza na mediações de sujeitos que institucionalizam o fazer político e o jurídico. Democracia e direitos, que não são quantidades de artefatos dispostos em prateleiras normativas, mas relações problemáticas, tensas, conflitivas, legitimadas pelos princípios que animam a política, a constituição e os direitos, enquanto promovam a justiça e a emancipação.

O segundo balizamento contextual é o de que é necessário reconhecer os sujeitos que movem o processo democrático e de realização dos direitos. Num sistema de intensa atuação democrática esses sujeitos são principalmente coletivos e se inscrevem nos movimentos sociais. A minha consideração nesse contexto é a que deriva de meu exercício acadêmico em articulação com o social, por meio da atuação indissociável, como define a Constituição (art. 207) de ensino, pesquisa e extensão.

Num momento de agravamento da violência contra os povos indígenas e seus territórios e sobre os conflitos no campo, mas também quando uma virada democrática acontece no Brasil, com a volta de uma governança de base popular, participativa e radicalmente democrática, mais se faz necessário que as forças vivas democráticas se abram à elaboração de políticas sociais e públicas que podem se valer desses estudos para orientar essas políticas.

Já caminhamos para cinco séculos, mas a obra seminal de Alberto Passos Guimarães “Quatro Séculos de Latifúndio”, publicada em 1963, seguida de “A Crise Agrária” (1978) e “As Classes Perigosas: Banditismo Rural e Urbano” (1982), é ainda fundamental para compreender a tensa realidade do campo brasileiro, a configuração do latifúndio e da concentração de terras no Brasil e a luta e protagonismo do movimento camponês, atualmente com a atuação marcante do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, para se organizar e propor um projeto político e social para o País.

A CPI em curso, não pode se constituir uma das faces desse enfrentamento. Mesmo que se apresente como uma face mais sofisticada porque amenize sua contundência sob a aparência de fiscalização legislativa. Com Renata Carolina Corrêa Vieira, mostramos em artigo no Le Monde Diplomatique, publicado em 18/07/2019 – A função social da propriedade: pedra angular da Constituição Cidadã (https://diplomatique.org.br/a-funcao-social-da-propriedade-pedra-angular-da-constituicao-cidada/), a malícia de propostas legislativas que, apesar de sua inviabilidade, tentam reduzir o alcance da realização do princípio da função social da propriedade, com movimentos deliberativos no Parlamento para favorecer a privatização do que já se colocava fora do comércio. Volta-se, com renovados artifícios, em medidas legislativas, a invocar a tese da propriedade privada como um direito absoluto, num contexto de realidade distópica, em que mentalidades estritamente negociais afirmam a “sacralidade” para retirar do seio da sociedade direitos conquistados historicamente por lutas sociais.

Já basta a face bruta e cruenta na linha do coronelismo que baliza o processo oligárquico, que caracteriza a nossa formação econômica, social e política: a criminalização da reivindicação social (com a pretensão de tipificar as formas de luta no elenco do crime de terrorismo) e a volta legal ao armamentismo que equipa as milícias urbanas e rurais a serviço a propriedade e do latifúndio.

Em artigo que publiquei em coluna que mantive por anos na Revista Sindjus (Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público em Brasília (Edição do ano XVI, nº 50, ano 2008, pág. 5 – Enxadas ou Flores? A tentação de Criminalizar o MST, aludi a essa ação emoliente que o próprio sistema de justiça promove.

Com esse título referia-me ao dilema posto em artigo de Procurador-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul, publicado em Zero Hora, edição impressa do dia dois de julho daquele ano, no qual procura contemporizar a reação veemente a ações civis desencadeadas pelo Ministério Público contra determinados acampamentos do MST (Serraria e Jandir, entre outros), no RS, e que foram vistas como uma estratégia concertada para postular a extinção ou a ilegalidade de um importante movimento social.

O que mais evidente ficou à observação é a dificuldade de reconhecimento do alcance emancipatório das reivindicações sociais. Em vários estados, o Ministério Público Federal, numa aparente violação do princípio do promotor natural, insistiu na proposição de ações civis públicas, pelo fato de o INCRA e universidades federais terem firmado termo de cooperação técnica visando a implementar cursos de graduação em Direito destinados a beneficiários da reforma agrária, nos parâmetros do sistema Pronera (Programa Nacional de Educação do Campo).

Nos termos insólitos da argumentação do MP:

Sabido é que o habitat do profissional do Direito, em qualquer de suas vertentes, é o meio urbano, pois é nesta localidade em que se encontram os demais operadores da ciência jurídica. Ainda que venha ele a patrocinar pretensão titularizada por cidadão que habite a mais distante área rural, endereçará a sua demanda a órgão do Poder Judiciário, não encontradiço em paragens rurícolas.

O fato é que, embora, sob consideração teórica, se reconheça como legítimas as formas de ação coletiva de natureza contestadora, solidária e propositiva dos movimentos sociais, a dialeticidade de suas múltiplas práticas sociais, não necessariamente é vista, no plano da política, como compromisso com a coletividade para a construção de esfera pública democrática, em cujo âmbito se definem projetos emancipatórios, sensíveis à diversidade cultural e à justiça social. Ao contrário, a expressão conflitiva dessa dialeticidade tem levado, muito em geral, a uma reação despolitizada, da qual não são imunes o Ministério Público, o Judiciário e até o Legislativo, abrindo-se à tentação de responder de forma pouco solidária e até criminalizadora a essas práticas.

Nas suas movimentações se insere nas principais agendas que procuram levar a sério o desenvolvimento e o bem-estar dos países e dos povos.

Num recente Dia da Trabalhadora e do Trabalhador Rural (em julho de 2020) o cardeal Michael Czerny, secretário do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano, enviou uma carta em nome do Papa Francisco que saúda as famílias Sem Terra que seguem realizando ações de solidariedade no Brasil. O motivo era o reconhecimento do Papa ao MST por ter distribuído mais de 2,5 mil toneladas de alimentos no combate ao covid-19 e à fome no Brasil, ação vista com “alegria pelo gesto bonito de distribuição de alimentos que as famílias da Reforma Agrária no Brasil estão realizando nestes tempos da Covid-19”.

Volto ao Papa. Sua ação pastoral se apoia numa perspectiva teológica de universalização e não de capitalização dos bens da vida – a Teologia dos três Ts: Terra, Teto e Trabalho, e na confiança de que sem interlocução com os movimentos sociais não há democracia, nem justiça. Diz o Papa (Discurso do Santo Padre Francisco aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, publicado no sítio da Santa Sé, 28-10-2014): 

Os movimentos populares expressam a necessidade urgente de revitalizar nossas democracias, tantas vezes sequestradas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse protagonismo excede os procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas de participação que inclua os movimentos populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum. E isso com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor.

Eu os acompanho de coração nesse caminho. Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, nenhum agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.

Com certeza o MST é conflito, mas também é projeto. E projeto autêntico. Por tudo que temos ouvido e sobre tudo que temos refletido, num acumulado teórico-político, até com a contribuição do Congresso, basta ver que esta é a quinta Comissão Parlamentar instaurada pera ir à raiz desse tema, são muitas as injunções desse projeto que não se reduz a uma ação mobilizadora para a reforma agrária, mas que abre uma agenda complexa de um completo projeto de sociedade.

Com nuances singulares. Amanhã promovo, como um dos organizadores/autores o lançamento de um livro O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: só a luta garante os direitos do povo!, já mencionado. O livro todo trata desse tema instigante, que é a instalação de uma subjetividade ativa inscrita nos movimentos sociais tão bem estudada pelo sociólogo Alain Tourraine, que acaba de falecer e a quem rendo homenagem. No livro, ponho em relevo o ensaio O Dia em que o Sujeito Coletivo de Direito Ocupou a Bolsa de Valores: o Encontro Inusitado entre a CVM e o MST. O autor, jovem acadêmico do programa de pós-graduação em Direito da UnB, Diego Vedovatto, que nasceu num assentamento no Rio Grande do Sul,  com aportes epistemológicos rigorosos, descreve e analisa o “encontro inusitado” entre a Comissão de Valores Mobiliários – CVM e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, durante a emissão do primeiro título de crédito na modalidade de Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA, aberto ao público geral na bolsa de valores brasileira, por cooperativas constituídas por agricultores sem-terra e sediadas em assentamentos de reforma agrária.       

A Academia leva a sério esse tema. Também o Congresso que se constitui pela força instituinte dos movimentos sociais que lhe deram feição e alcance constituinte, pode ser o promotor da valorização de um programa de atuação emancipadora que caracteriza o MST e que lhe angaria reconhecimento quase universal. Claro que o MST é conflito, mas insisto, também é projeto. Conforme disse o Promotor de Justiça Marcelo Goulart em entrevista recente, nesse projeto não é só a reforma agrária que está em causa, por ser é uma das principais formas de emancipação do povo trabalhador, mas também a democratização do acesso à terra e produção econômica e ecologicamente sustentável no campo, e o que é de mais básico para todos: soberania e segurança alimentar

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)