Desigualdades no campo

Agricultura familiar camponesa enfrenta falta de investimentos e tecnologia

Confira entrevista de dirigente do MST sobre a desigualdade por parte do Estado e como isso impacta o acesso à tecnologia, a produção de alimentos, e qual a luta do Movimento para mudar isso
Agricultura familiar camponesa é responsável por produzir o alimento que chega a mesa dos brasileiros/as, mas fica com menos recursos do Estado. Foto: MST-PR

Por Solange Engelmann
Da Página do MST

Ainda que o papel da agricultura familiar camponesa no Brasil seja de produzir alimentos para alimentar a população brasileira, combater a fome, gerar renda e emprego no campo, preservando o meio ambiente e garantir alimentos saudáveis para a população, quase sempre isso não se traduz em políticas públicas por parte do Estado brasileiro.

Ao longo dos anos, o que se vê é uma histórica desigualdade praticada pelo Estado, por meio de políticas públicas, e reproduzida pelo mercado, bancos e comércios em relação aos investimentos e incentivos tecnológicos para o agronegócio. Este não produz alimentos, mas commodities para a agroexportação, e fica com a maior fatia de recursos, enquanto a agricultura familiar camponesa recebe míseros recursos públicos, mesmo sendo responsável por produzir o alimento que chega a mesa dos brasileiros/as.

“É um desenvolvimento desigual e isso reflete lá na ponta, seja desde a produtividade, desde garantir uma maior oferta de alimentos à sociedade, num preço acessível também. Enfim, porque tem uma relação direta com as condições reais de reprodução da agricultura por parte dos pequenos”, pontua Débora Nunes, da Coordenação Nacional do MST e do setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do Movimento.

Isso também impacta em uma distribuição desigual de tecnologias para o campo e afeta a produção de alimentos, que fica cada vez mais cara para a população brasileira. Confira na entrevista a proposta do MST para mudar essa realidade, com a Reforma Agrária Popular.

Débora Nunes. Foto: Luiz Fernando

Página do MST: No Brasil historicamente existe uma desigualdade em investimentos públicos e tecnologias entre o agronegócio e a agricultura familiar camponesa. Quais as consequências disso?

Débora Nunes: o Estado, efetivamente, prioriza não só os investimentos, mas as políticas públicas, a legislação que flexibiliza e garante o funcionamento e desenvolvimento do agronegócio. Mas penaliza, por outro lado, a agricultura familiar. Esse Plano Safra [2023/2024], por mais que tenha mostrado ter um volume considerável para a agricultura familiar, oferece ao agronegócio um valor cinco vezes maior do que a agricultura familiar. Além disso, tem também a própria execução deste modelo, sejam as leis, seja as normativas, as portarias, seja a garantia do acesso aos pequenos agricultores, aos camponeses, aos assentados/as da Reforma Agrária.

É um desenvolvimento desigual e isso reflete lá na ponta, na produtividade, ao garantir uma maior oferta de alimentos à sociedade, num preço acessível também. Enfim, porque tem uma relação direta com as condições reais de reprodução da agricultura por parte dos pequenos. A prioridade está muito voltada para o que tem sido o slogan de propaganda, “que o agronegócio contribui com o equilíbrio da balança comercial”. Mas, não é esse o papel da agricultura familiar. O papel da agricultura familiar é desenvolver uma agricultura que primeiro tenha uma relação equilibrada com os bens comuns, com a natureza, entendendo que é uma via de mão dupla. Nós precisamos dessa natureza, não apenas para a produção de alimento saudável, mas para ter garantia de água, garantia da existência humana no planeta Terra.

Além de tudo, a principal tarefa da agricultura familiar é produzir alimento para alimentar o povo brasileiro. Então, o Estado acaba priorizando essa perspectiva do ‘equilíbrio da balança comercial’, aos moldes do que o Brasil foi há 523 anos, um país agroexportador, mas que efetivamente não se preocupa e não tem co-responsabilidade com os problemas estruturais do nosso país, a exemplo da fome. Se propagandeia o país ser um grande produtor agrícola que exporta para o mundo, mas que não tem co-responsabilidade com 33 milhões de brasileiros e brasileiras que passam fome.

Foto: Alex Mirkhan

Que lutas os movimentos populares do campo, como o MST, vêm fazendo no país para mudar essa desigualdade de recursos e tecnologias para agricultura familiar camponesa?

Isso é algo do Estado, está na estrutura do Estado. As próprias políticas públicas existentes, a lógica do crédito. E isso tem sido uma luta histórica também das organizações, dos movimentos populares e sociais, das organizações no campo. No nosso caso do MST, quando nós definimos a Reforma Agrária Popular como projeto de agricultura para o campo brasileiro e para a sociedade brasileira, nesse sentido, a agricultura precisa ser um instrumento que contribua não apenas para o desenvolvimento, mas também para o enfrentamento de problemas estruturais que afetam o conjunto da sociedade.

Temos clareza que essa priorização do agronegócio impactou a sociedade e produziu uma série de problemas, desde o inchaço das cidades, do desemprego, dessa questão do alimento envenenado, dos bens comuns, da destruição do meio ambiente. Então, o primeiro passo das organizações camponesas, da agricultura familiar e Reforma Agrária é dialogar com a sociedade, do papel que a agricultura familiar cumpre, na produção de alimento saudável, como um direito de toda a sociedade, na preservação dos bens comuns da natureza, na própria geração de trabalho no campo.

Esse tem sido o grande desafio que nós temos, porque entendemos que a reforma agrária, ou mesmo o desenvolvimento da agricultura familiar, é algo que se materializa no campo, mas precisa ser conquistada na cidade à medida em que a sociedade urbana compreender que essa é uma luta que pode ser de todo mundo, porque ela ajuda a resolver problemas, ajuda a minimizar os impactos desse desenvolvimento desigual que existe no campo brasileiro. Esse é o primeiro passo.

E o segundo é insistir na construção de políticas públicas, fazer a disputa também desse Estado, que precisa estar a serviço de toda a população. O Estado não pode continuar sequestrado por uma parcela pequena da sociedade, enquanto uma grande maioria sofre as consequências dessa desigualdade. Eu acho que esse é o principal ponto. E seguimos mesmo com as dificuldades, resistindo no campo, produzindo e, a partir dessa resistência, mostrando para a sociedade que é possível. Agora é essencial que o Estado subsidie, a agricultura, ela é subsidiada em todo o mundo, inclusive no Brasil, mas de uma forma muito desigual.

Foto: Divulgação CAR

Nesse novo Governo Lula, quais as perspectivas dos movimentos populares do campo em relação a mudanças nesse sentido?

A expectativa é de que nós possamos ter as condições necessárias para primeiro, enfrentar à fome e garantir que os 33 milhões de brasileiros e brasileiras que não se alimentam todos os dias, possam se alimentar. Isso é a prioridade. Mas a gente tem tantos outros que vivem em segurança alimentar, que não se alimentam bem ou que não têm o direito do alimento saudável garantido. Nesse sentido, a expectativa é que o governo possa retomar uma série de políticas, o fortalecimento de órgãos que foram esvaziados, sucateados, retomar políticas estruturais e estruturantes para a agricultura familiar.

E, além disso, o próprio Plano Safra anunciou que temos um volume considerável, mais de 70 bilhões de reais, para a agricultura familiar, mas isso precisa estar muito casado com uma definição de governo que, de fato, esse recurso não pode sobrar no final do ano. Então aí é desde a legislação, desde a concepção de crédito, levando em consideração a diversidade regional que nós temos, inclusive nos aspectos da própria questão socioambiental de cada região. Pensar que os bancos, que são os financiadores, precisam ter a sensibilidade para dialogar, recepcionar e acolher esse pequeno agricultor que vai em busca dessas políticas.

As expectativas são boas, mas continua sendo um processo desafiador e de luta, porque o agronegócio, a sua existência, ela exige, de certa forma, a não existência da agricultura familiar. Porque quando a gente diz que nós queremos a agricultura familiar e a reforma agrária, isso pressupõe a democratização da terra, a preservação dos bens comuns, o não uso de agrotóxico e uma nova forma de relação com o meio ambiente, a produção do alimento saudável. Então, são projetos que se confrontam, que se contradizem.

Então, o Estado precisa pensar a legislação, mecanismos que garantam a existência dessa agricultura familiar, dentro dos princípios que norteiam uma produção agroecológica, uma produção diversificada e que prioriza a produção de comida para chegar na mesa de quem, de fato, precisa; e o Estado precisa ser o grande agente motivador, impulsionador disso.

*Esta entrevista faz parte de uma série de conteúdos sobre como a desigualdade tecnológica no campo afeta a agricultura familiar camponesa. Confira o primeiro texto do especial aqui.

**Editado por Fernanda Alcântara