Desenvolvimento no campo
Reforma Agrária Popular propõe tecnologia adequada e investimentos para produção de alimentos
Por Solange Engelmann
Da Página do MST
A visão ultrapassada de uma parte da sociedade brasileirade que a agricultura familiar camponesa e a agroecologia são sinônimos de “atraso” e “trabalho braçal” já ficou no passado. Mas ainda faltam políticas públicas criadas pelo Estado para garantir o acesso à democratização da terra, a créditos agrícolas e tecnologias adequadas à realidade de cada região do país, para avançar na produção de alimentos saudáveis e na melhoria de renda dos/das trabalhadores/as rurais no campo.
Pensando nisso, há quase 40 anos o MST luta pela implantação da Reforma Agrária Popular no campo brasileiro, com propostas voltadas para resolver o problema da concentração da terra no país, do acesso mais justo a investimentos públicos, com tecnologias adequadas para potencializar a agricultura familiar camponesa e a agreocologia, aliado à preservação do meio ambiente, à luta pela educação popular, valorização da cultura camponesa, lazer, relações de gênero igualitárias e emancipadas, além do direito a uma vida dignada às famílias assentadas.
“Nós temos discutido a Reforma Agrária Popular nessa perspectiva: imagine garantir a terra, a moradia. E garantir a capacitação para a atividade agrícola, crédito, políticas públicas, tecnologia, máquinas que garantem produzir hortifrutigranjeiros, que é aquilo que as pessoas precisam todos os dias na sua mesa. Nós resolveríamos problemas estruturais da sociedade”, pontua Débora Nunes, da Coordenação Nacional do MST e do setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do Movimento.
Confira, na segunda parte da entrevista exclusiva, a proposta da Reforma Agrária Popular do MST para levar tecnologia, desenvolvimento e avançar na produção de alimentos saudáveis nas áreas de reforma agrária, possibilitando um alimento livre de agrotóxicos e mais barato para a população brasileira.
Página do MST: Pode explicar qual a proposta do MST para o desenvolvimento do campo no Brasil e, de forma mais específica, como acabar com a desigualdade tecnológica entre o agronegócio e a agricultura familiar camponesa?
Débora Nunes: É importante ter mudanças de concepção no acesso, porque mesmo historicamente, para os pequenos, o recurso disponível era sempre para seguir a lógica do grande empreendimento. É preciso mudar essa lógica, no que se refere hoje à questão das máquinas, a questão dos implementos agrícolas e a gente poder pensar que desenvolver a agricultura familiar, que tem como norte o desenvolvimento da agroecologia, pressupõe a existência de máquinas agrícolas que sejam apropriadas a essas necessidades, adaptadas a cada contexto socioambiental, de forma que isso possibilite a minimização do trabalho penoso, o aumento da produtividade, aumento da renda, mas em equilíbrio com a natureza.
As grandes máquinas nem sempre são adaptáveis aos terrenos, a topografia que nós temos, às realidades e demandas, são máquinas caras. Então, que também não conseguimos acessar. Primeiro dizer que a mecanização, o acesso às tecnologias, máquinas é essencial para o desenvolvimento da agricultura familiar, da reforma agrária, da agricultura camponesa. Não há esse sentimento de incompatibilidade, muito pelo contrário, porque muitas vezes o agronegócio que se diz “moderno”, quer tratar dessa forma.
O MST defende que as máquinas agrícolas precisam ser adaptadas às realidades da agricultura familiar camponesa em cada região, principalmente em relação à agroecologia. Como é possível viabilizar isso?
Na grande maioria, nós estamos em terrenos onde a topografia não é plana. Então, pensar máquinas de pequeno e médio porte e que sejam acessíveis, que o financiamento seja possível para a agricultura familiar. Ao invés das grandes máquinas que impactam a terra, compactam o solo, vão na contramão daquilo que a gente quer construir enquanto a agroecologia, mas máquinas que possam efetivamente contribuir com esse modelo de agricultura, um modelo tecnológico e produtivo que tenha preocupação com o meio ambiente.
Nesse sentido, vamos pegar a Embrapii [Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial], que é uma empresa brasileira, que tem essa tarefa de pensar máquinas. Quais são os tipos de máquinas que são possíveis de serem acessadas pela agricultura familiar? Que são acessíveis ao tamanho e ao volume de recurso que tem disponível? Que são adaptáveis à realidade de comunidades que nem sempre têm lá 10 mil hectares? Então, a ciência, a tecnologia, as universidades, o conhecimento precisam estar a serviço disso, pensar máquinas que sejam adaptáveis às diversas realidades. E como nós pensamos a produção no Sul do país, mas também na região amazônica, que tem uma realidade de agrofloresta? Então, como é que a gente viabiliza o projeto de agricultura familiar e Reforma Agrária Popular, nessa perspectiva de que a tecnologia esteja a serviço disso? E nós temos exemplos no mundo.
Você pode citar algum exemplo disso?
Temos o exemplo da China, são pequenas propriedades altamente tecnificadas, mas com técnicas que são adequadas e adaptáveis à realidade daquelas famílias, cooperativas, comunidades. Então, acho que pensar isso passa também por uma decisão de governo, passa por colocar o Estado a serviço dessa perspectiva para que a gente possa avançar. Nós da agricultura familiar não queremos, nem podemos passar o resto da vida na enxada.
Há uma ideia ultrapassada em parte da sociedade, que acha que “agroecologia é atraso”, de que agricultura familiar camponesa é sinônimo de trabalho duro, na enxada. Mas, não é bem assim, certo?
A agroecologia não é atraso, com ela é possível alimentar o mundo de forma saudável. Nós não podemos colocar como peso aos pobres se alimentar com comida envenenada, porque é caro produzir. Muito pelo contrário, o Estado precisa está ali, sendo o agente que coloca os recursos públicos disponível para pensar e disponibilizar o conhecimento que a humanidade construiu a serviço dessa propositura.
Da mesma forma que se pensam as grandes máquinas a serviço de um modelo, é preciso ter claro que existe um outro modelo de agricultura. Esse é o custo benefício, porque tem algo que é muito sério, que a humanidade está debatendo e toda a sociedade precisa encarar como um problema seu, que é a forma como os bens da natureza estão sendo apropriado e utilizados. Então, eu não posso achar que é normal hoje ter uma máquina do tamanho do mundo, que muitas vezes nem cabe na realidade que eu estou, mas que vai ter impactos no médio e longo prazo para a natureza e, consequentemente, para a vida humana na Terra.
Nós não queremos ter a enxada como a única forma de trabalho, mas é preciso que o Estado esteja disposto a compreender que não são as grandes máquinas que vão resolver os problemas. E precisa priorizar isso.”
Considerando uma possível mudança do olhar estatal, em relação aos investimentos públicos e acesso a maquinários agrícolas para agricultura familiar camponesa. Qual o impacto disso na produção de alimentos saudáveis e no combate à fome no Brasil?
A medida que a gente consegue possibilitar o acesso às tecnologias, máquinas adequadas à realidade da agricultura familiar, automaticamente isso aumenta a produtividade. Então, na grande maioria, a mão de obra familiar vai ser potencializada. Isso, consequentemente, possibilita o aumento da produção de alimentos saudáveis no país, que é hoje o grande desafio.
Eu não tenho dúvida que uma série de políticas de transferência de renda, tudo isso é importante e necessário para o enfrentamento da fome. Mas não consigo conceber o enfrentamento à fome sem passar por uma política estrutural que é a realização da reforma agrária, o fortalecimento da agricultura familiar, justamente para produzir o alimento. E a capilaridade que a reforma agrária tem e a agricultura familiar tem próximo às cidades no interior do país, com maiores condições de fazer o enfrentamento à fome, disponibilizando o alimento para as pessoas poderem acessar; além de dinamizar a agricultura familiar na geração de renda para as famílias agricultoras, isso ajuda a dinamizar a economia dos municípios. Isso possibilita o enfrentamento à fome, mas também a melhoria na própria geração de trabalho.
O que a Reforma Agrária Popular do MST propõe nesse sentido?
Nós temos discutido a Reforma Agrária Popular nessa perspectiva: imagine o que é você ter projetos de assentamento no entorno das grandes cidades. Aí eu falo do chão que eu piso, pega Maceió [AL], 51% do território da capital é zona rural e está coberta de cana de açúcar, enquanto a cidade, os outros 49 é um amontoado de pessoas nas periferias, nas grotas, nas favelas. Imaginem o que é um amplo programa de reforma agrária no entorno da cidade, que garanta terra para as famílias, a moradia. Você tira as pessoas da situação de vulnerabilidade, de calamidade, muitas vezes nas grotas, nas periferias, sujeitas aos deslizamentos. E garante capacitação para a atividade agrícola, crédito, políticas públicas, tecnologia, máquinas que garantem a essas pessoas produzir hortifrutigranjeiros, que é aquilo que as pessoas precisam todos os dias na sua mesa. Imagine o que é um amplo programa de reforma agrária assim. Nós resolveríamos problemas estruturais da sociedade.
E como tornar isso realidade, cobrando o papel do Estado nesse processo?
É preciso, efetivamente, que o Estado compreenda, que isso não é resolver o problema dos Sem Terra, é resolver os problemas da sociedade. Temos um amontoado de gente sem emprego, sem trabalho. É essencial compreendermos que esse debate não pode ficar restrito aos agricultores e agricultoras familiares, aos Sem Terra ou aos movimentos sociais no país. É algo que precisa envolver o conjunto da sociedade, porque o conjunto da sociedade é afetada.
Mas, isso precisa ser alavancado pelo Estado, por políticas públicas. Não tenho dúvidas de que a agricultura familiar, a reforma agrária, podem ser um grande vetor de desenvolvimento do nosso país e de enfrentamento aos problemas crônicos e estruturais da nossa sociedade, mas precisa ser algo construído e, de fato, ter uma decisão política de fazer esse enfrentamento. Na perspectiva de construirmos uma sociedade com menos desigualdades, menos exclusão e com o povo comendo.
*Esta entrevista faz parte de uma série de conteúdos sobre como a desigualdade tecnológica no campo afeta a agricultura familiar camponesa. Confira a primeira parte da entrevista especial AQUI.
**Editado por Fernanda Alcântara