4 anos de assassinato

Seu Luis e o encontro com Carlos Brandão e a EJA no Acampamento Marielle Vive

O acampado Sem Terra foi assassinado no dia 18 de julho de 2019, durante uma manifestação pacífica que exigia da Prefeitura de Valinhos (SP) o abastecimento de água potável
Homenagem da Ciranda do acampamento Marielle Vive, Valinhos, a memória de luta de Seu Luis. Foto: Coletivo Marielle

Por Tassi Barreto e Gerson Oliveira
Da Página do MST

Há quatro anos tivemos uma aula de alfabetização do “Sim, eu posso” mais longa do Acampamento Marielle Vive, em Valinhos/SP. Durante a aula, a educadora escreveu na lousa, sob os olhos atentos dos educandos, “Eu sou guerreiro. Eu vou para a guerra”. Essa frase ficou por muito tempo na sala de aula improvisada porque foi a última aula de Seu Luis Ferreira, acampado Sem Terra que foi assassinado no dia 18 de julho de 2019, durante uma manifestação pacífica que exigia da Prefeitura o abastecimento de água potável.

Nesta longa aula, o acampamento aprendeu muitas coisas sobre a história de vida do Seu Luis, como o sonho e luta dele por terra, água e educação era o sonho por liberdade e que só entre companheiros e companheiras é possível conquistar. Aprendemos sobre o ódio à nossa luta, capaz de formar assassinos nas esquinas e da injustiça padrão que beneficiou Leo Ribeiro, assassino confesso, que responde em liberdade ao crime, mesmo com todas as provas existentes e relatos testemunhais.

Luis Ferreira. Foto: Arquivo pessoal

A lousa ficou intocada durante vários meses até ousarmos alterá-la quando iniciamos uma grande reforma no espaço para, em sua homenagem, inaugurar em novembro de 2019 a Escola Popular Luis Ferreira. No ano seguinte, em 2020, fomos todes profundamente envolvidos na pandemia de covid-19, de tal modo que somente neste ano de 2023, somando mais de três anos de recesso, o setor de educação retomou as aulas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), e como mais uma forma de cicatrizar a grave ferida aberta na comunidade com a perda do Seu Luis, educando mais assíduo e disciplinado nos estudos da sua turma.

A Turma da EJA do Acampamento Marielle Vive vai fazer a sua formatura. Realizaram o estudo na Escola Popular Luis Ferreira, onde o companheiro deixou de estar presente materialmente, mas é inspiração de coragem para enfrentar as inseguranças, medos e o frio das noites de aula, de resistência e de luta.

Sala de aula acampamento Marielle Vive. Foto: Igor Carvalho/BdF

A educação para o Movimento Sem Terra é um eixo fundamental da nossa luta e organização, tanto é que ao longo desses 40 anos que completamos em janeiro do próximo ano, nos orgulhamos (seguindo o exemplo cubano) do legado das inúmeras campanhas de alfabetização que formaram dezenas de milhares de trabalhadores/as rurais, muitos destes hoje inclusive são mestres e doutores.

Nos orgulhamos de construir a pedagogia do Movimento e fazer parte dessa grandiosa escola da luta que é o MST. Tivemos muitos camaradas aliados e aliadas na construção do nosso setor de educação, das ações nos assentamentos, acampamentos, Centros de Formação, a formulação da educação do campo, no enfrentamento à educação bancária e nesse sentido, Carlos Rodrigues Brandão notadamente foi um destes, por isso, tão bela e oportuna homenagem póstuma que a Turma de EJA do Acampamento Marielle Vive decidiu se nomear “Turma Carlos Brandão”.

Alfabetização EJA, acampamento Marielle Vive. Foto: ColetivoMarielle

Brandão, assim como Paulo Freire e Seu Luis, exemplos de seres humanos que extrapolam sua própria existência, pois esta para eles só fazia sentido na medida em que era projeto, engajamento coletivo para mudança, para transformação da vida em algo extraordinário, ouvindo a Terra, seus seres e dialogando com a natureza. A partir deles a palavra militância para nós, ganhou um sentido ainda mais profundo.

[…] eu estou na terra

e estou na Terra

na flor, no bicho

no chão, na lua

no céu, no sol

no arco-íris

na borboleta

e no alecrim!

Eu vivo! Eu sou!

E sendo em tudo

o tempo todo

a toda hora

eu vivo agora!” “Tudo e Eu”. (trecho do livro O jardim de todos, de Carlos Brandão).

Na mão segurando o lápis, no rompimento da privação do acesso à educação como forma de dominação, na resistência do acampamento com risco de despejo, é que o encontro de dois homens, o Sem Terra aprendendo a ler e escrever e o professor universitário, é possível a partir da construção coletiva, da memória do povo Sem Terra e do compromisso de seguirmos em luta para honrar nossos mortos e aqueles que vieram e lutaram antes de nós.

Em todo o Universo, por enquanto a Terra é a nossa única casa. Vivemos nela e só contamos com ela para viver. Por causa do que os homens têm feito com ela, a Terra está em perigo. Devemos aprender a mudar a nossa maneira de lidar com a nossa casa, o Planeta Terra. Devemos aprender cuidar dela com carinho. Devemos fazer assim, em nome da Vida, e em nosso nome também. Devemos aprender a tratar a Terra com o cuidado que ela merece, pois todo o que temos vem dela”.

Carlos Rodrigues Brandão, “O Jogo das Palavras Semente”

*Editado por Solange Engelmann