Lutadora

Conheça Maria Quitéria, uma mulher que “subverteu a ordem” do seu tempo

Grande referência na luta pela “Independência do Brasil na Bahia”, Quitéria tornou-se um símbolo
Estátua da Maria Quitéria, mulher baiana que é referência nas lutas independentistas na Bahia. Foto: Nathan Gomes

Por Wesley Lima
Da Página do MST

“Muitas mulheres ficaram anônimas. Muitos personagens, principalmente dos setores populares, ficaram anônimos, mas é importante a gente destacar figuras como Maria Quitéria, Maria Felipa, para dar conta da diversidade e da participação popular no processo de independência do Brasil na Bahia”, afirma Raquel Pinto, especialista em História da Bahia e gerente da Biblioteca Virtual Consuelo Pondé, da Fundação Pedro Calmon, vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

A história de Maria Quitéria, mulher baiana que é referência nas lutas independentistas na Bahia, ocupa certa mitologia no que diz respeito à incorporação das mulheres nas Forças Armadas. Ela é utilizada como símbolo. Hoje sua trajetória é reconhecida, festejada e enaltecida pela população baiana, principalmente quando se aproxima o 2 de Julho e ainda mais no ano em que se comemora o bicentenário desse processo que, de fato, nos trouxe a Independência.

Nascida no interior da Bahia e filha de um lavrador português e de uma brasileira, a imagem real de Quitéria ainda causa dúvidas. Segundo Raquel, alguns biógrafos defendem a tese de que ela tinha traços indígenas e negroides. “Se pegamos as fotografias pintadas, antes da década de 50 ela é retratada com um semblante bastante caucasiano, inclusive bem masculinizado, com o queixo quadrado e tudo mais. A partir desta data, ela já é retratada a partir da lógica da miscigenação, com traços femininos mais fortes e seios fartos.”

Raquel Pinto é especialista em História da Bahia. Foto: Arquivo Pessoal

“Eu não sei se esse debate racial lá na década de 50 e de 40 já estava na ordem do dia ou se foi uma escolha de representatividade de quem estava pintando ela. Alguns biógrafos defendem que ela era uma mulher branca, já outros biógrafos defendem que ela foi uma mulher miscigenada. O que comunica ainda mais a trajetória dessa mulher para a população brasileira. Miscigenada a partir da violência, mas com todos esses signos juntos”, explica.

Montaria e baioneta

Desde muito pequena, Quitéria demonstrava interesse com a montaria e grande talento com a baioneta, que é uma arma em forma de faca, punhal, espada ou pontiaguda construída para caber em um fuzil, mosquetão ou arma de fogo semelhante. Sobre os trabalhos de cuidado, relacionados ao âmbito doméstico, ela não tinha proximidade e, por isso, era muito criticada. Raquel conta que “ela era uma mulher que subvertia a ordem no século XIX”.

Alistamento de Maria Quitéria

O movimento separatista começa de fato a tomar fôlego na Bahia, e nesse momento é necessário reunir homens para que esse movimento, também, tenha corpo. Maria Quitéria toma conhecimento da guerra iminente e da procura por pessoas dispostas a participar da luta armada pela Independência.

Neste contexto, ela pede ao pai para se alistar no exército, que  de pronto nega. Relatos documentados apontam que com a negativa do pai, ela corre para casa da irmã e pega as roupas do cunhado.

Quitéria se alista no exército como soldado Medeiros. Alguns biógrafos afirmam que ela se apresentou com o nome do cunhado, outros dizem que ela se apresentou com um nome fictício e disse que era filho do cunhado. “Na ocasião ela cortou o cabelo, se vestiu como homem e foi admitida no exército, até porque naquele momento, não existia um exército organizado para lutar pela independência. Não existia essa ideia de Brasil ainda. Existia um exército pacificador com a presença de portugueses e brasileiros. Não existia essa separação de dois blocos. Existia toda sorte de gente e de povos nesse lugar.”

Ou seja, o exército não era organizado ainda. “Os destacamentos saiam de cidade em cidade, procurando homens na idade que poderiam ir para frente de combate. Não existia treinamento. Muita gente ainda não tinha pego armas. A partir do momento que uma pessoa se alista e já tinha intimidade com arma, intimidade com a baioneta, automaticamente ele era bem-vinda ao exército. Foi isso que aconteceu com o soldado Medeiros, que pouco tempo depois iriam descobrir ser Maria Quitéria.”

O pai, ao descobrir o feito de Maria Quitéria, se dirige ao major e diz que ela era uma mulher, só que como ela já tinha participado de algumas poucas batalhas, impressionou inclusive todo o exército, por conta de seu poder de liderança e bravura. O major deixou, então,  a decisão nas mãos de Quitéria. E ela decidiu ficar. “Por isso, o pai não voltou a falar com ela. Ele não a perdoou por continuar no exército.”

Pouco tempo depois ela tornou-se uma oficial no exército. Na prática, Quitéria ficou pouco tempo como soldado “Medeiros” no Exército Brasileiro.

Como a primeira mulher a integrar as Forças Armadas e por ter se destacado nas lutas independentistas, de 19 de fevereiro de 1822 e com desfecho em 2 de julho de 1823, Maria Quitéria foi condecorada por D. Pedro com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, exaltada pelo Exército a partir da década de 1950 e rosto emblemático na luta de organizações femininas pela anistia durante a Ditadura Militar brasileira (1964-1985).

Os relatos biográficos apontam que Maria Quitéria morreu sozinha, em sua cidade natal e em difíceis condições financeiras. Ela se casou e teve uma filha, cujo paradeiro é desconhecido. Seu pai nunca a perdoou por ter participado da guerra, apesar de ter sido tratada como heroína após o triunfo do exército brasileiro em 1923.

Disputas de narrativas

Para Raquel, Maria Quitéria foi uma personagem traduzida não apenas no âmbito militar. Ela conta que no processo de ditadura existiam grupos de esquerda com o nome dela. “Seu nome fugiu dessa lógica do exército, do militarismo, do conservadorismo e tornou-se símbolo de luta, resistência e organização coletiva”, destaca.

“Para mim, o seu maior legado é justamente as disputadas de narrativas em torno da sua memória. Porque não ficou algo a ser rememorado apenas no âmbito do militarismo e foi apropriado por mulheres, que inclusive estavam lutando e se organizando para melhoria de vida, para o bem viver. O principal legado dela é a luta. Estou falando de luta e organização de mulheres”, conclui.

*Editado por Martha Raquel