Soberania Tecnológica

Em visita à ENFF, Aaron Schneider aborda desafios da Era Digital para os movimentos populares

Confira entrevista exclusiva do autor e especialista em tecnologia digital, em visita à Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, SP
Aaron Schneider. Foto: Reprodução

Da Página do MST

Com o crescente impacto da era digital na sociedade, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) entende o quanto é fundamental compreender como os movimentos populares podem enfrentar os desafios impostos por essa transformação tecnológica. Por isso, na última segunda-feira (24), a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), localizada em Guararema, São Paulo, convidou o renomado especialista em tecnologia e soberania popular na era digital, Aaron Schneider, para um debate sobre soberania popular de dados.

Schneider é professor de história e política latino-americana e membro do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Denver, nos Estados Unidos. Ele atua na defesa de valores humanistas, e é autor de mais de 60 artigos e capítulos de livros, dois livros de autoria única e muitas contribuições para a imprensa popular.

Nesta entrevista exclusiva, Schneider fala sobre a construção deste novo livro, que explora os impactos da transformação digital nos países em desenvolvimento e na classe trabalhadora, e traz perspectivas únicas sobre como enfrentar os desafios impostos pela crescente influência das grandes empresas de tecnologia e o avanço preocupante da extrema direita nas plataformas digitais. Ele também destaca a importância de buscar soluções que promovam a soberania popular e garantam que as novas tecnologias sejam utilizadas para o bem público.

Segundo ele, em meio aos desafios impostos pela transformação digital, é fundamental que os movimentos populares estejam preparados para defender a dignidade no trabalho e a democracia, e enfrentar o avanço preocupante da extrema direita nas redes sociais.

Confira a entrevista completa:

Página do MST: Você está em um processo de finalização do seu livro, resultado do curso realizado em parceria com o Instituto Lula e intitulado “Soberania Popular na Era Digital”. Poderia falar um pouco sobre a organização do livro, sua previsão de lançamento e por que esse tema é importante para os movimentos populares no Brasil?

Aaron Schneider: Primeiramente, agradeço por me receber na Escola Nacional Florestan Fernandes, é uma honra conhecer o trabalho realizado aqui. O curso é a sequência de eventos que estão contemplados no livro. Fiquei muito feliz com a oportunidade, que surgiu cerca de 18 meses atrás, quando o Instituto Lula solicitou sugestões de temas para a primeira Cátedra inaugural do presidente Lula, com o tema “Câmbios das Transformações Digitais”. Durante as conversações com eles, percebi que o curso e a Cátedra pretendiam abordar as mudanças na sociedade e no mundo devido à digitalização, abrindo um espaço para discussão e oferecendo um curso gratuito ao público, especialmente aos quadros do PT [Partido dos Trabalhadores] e também a outras pessoas interessadas no assunto.

Assim, a Cátedra incluía esse curso, intitulado “Soberania Popular na Era Digital”, com dez seminários em dez semanas, com a participação de aproximadamente 15 a 25 pessoas em algumas aulas, e até 100 ou mais em outras. Esses seminários foram conduzidos por especialistas do tema, provenientes da Índia, Inglaterra, Europa, Estados Unidos, Brasil, Austrália e outros países, dada a relevância global do desafio do mundo digital, que está impactando todas as nossas sociedades.

O curso abordou dois desafios específicos. O primeiro deles diz respeito às ameaças que as tecnologias digitais representam para os países em desenvolvimento. Essas tecnologias conferem novas capacidades às empresas, geralmente dos países mais desenvolvidos, que acabam monopolizando setores e exercendo influência política e de desenvolvimento em escala global.

Assim, os países em desenvolvimento, ou melhor, todos os países, tem dificuldade de regular essas empresas, o que resulta em uma dependência em relação a essas tecnologias e aos aplicativos controlados por essas companhias. Como resultado, os governos e as sociedades, principalmente desses países em desenvolvimento, acabam reféns dessa dependência, ficando atrás e com menos controle sobre seus próprios dados e tecnologias.

__ Aaron Schneider

O segundo desafio abordado diz respeito aos trabalhadores e consumidores, o “99%” que não possuem controle sobre o uso das tecnologias e o capital controlado pelas grandes companhias. O controle sobre nossas vidas está sendo perdido, com o trabalho se tornando mais precário; nossas vidas sociais sendo capturadas, digitalizadas, vendidas e utilizadas por outros que detêm nossos dados para tomar decisões sobre nossas escolhas de vida, como relacionamentos, refeições, viagens, entre outras coisas.

Então, como é possível organizar o povo, ou seja, as pessoas do “99%”, para que tenham dignidade e controle das tecnologias em seu dia a dia?

O curso e os seminários abordam esse debate por meio de diversas perspectivas, antropológicas, históricas e de diferentes países, pertencentes a diferentes disciplinas. Decidimos que havia material e observações interessantes que poderiam contribuir para a elaboração de um livro.

Assim, o livro aborda essas duas questões principais: o que os países em desenvolvimento podem fazer diante da influência das grandes empresas digitais, e como os trabalhadores e consumidores podem retomar o controle sobre suas vidas e seu trabalho diante dessa digitalização crescente.

O livro terá o mesmo título “Soberania Popular na Era Digital” e será publicado em inglês em parceria com a Universidade de Nova York, em espanhol com a Universidade de Costa Rica e, aqui no Brasil, com o Instituto Lula e a Fundação Perseu Abramo, que me ajudarão a apresentá-lo em português. A data de publicação ainda não foi totalmente definida, mas será nos próximos meses para os idiomas português e espanhol, enquanto a versão em inglês pode levar um pouco mais de tempo. O livro estará disponível online para quem quiser acessar todo o conteúdo e também será distribuído gratuitamente em um número de exemplares para torná-lo acessível a diferentes públicos.

Esses debates representam uma valiosa contribuição das pessoas que colaboraram com seus capítulos no livro, oferecendo uma análise incisiva sobre a crise que enfrentamos e algumas possíveis respostas. Tanto o curso quanto o livro têm essa história e estão prestes a serem disseminados, e estou extremamente feliz por estar aqui na Escola Nacional.

Estamos ansiosos pelo lançamento do livro. E quais são os desafios específicos para a América Latina em relação à soberania popular digital?

Todos os países enfrentam a realidade das empresas acumulando uma quantidade de capital nunca antes vista e detendo tecnologias avançadas que somente elas podem acessar ou controlar. Essa combinação de concentração de riqueza e tecnologia está deixando especialmente os países em desenvolvimento para trás, e a América Latina não é exceção.

Portanto, alguns dos desafios específicos para a região incluem, por exemplo, como acessar as riquezas produzidas pelas novas tecnologias com base nos dados nacionais. Empresas estrangeiras estão aproveitando esses dados como se fossem recursos naturais, como petróleo, café ou terra, que historicamente foram fonte de riqueza no Norte. Agora, a extração e exportação ocorrem através dos dados não sondados de brasileiros, argentinos, mexicanos e outros, capturados em plataformas como Facebook, Amazon e outras. Esses dados tornaram-se um recurso, valioso, que essas empresas controlam, analisam e modificam sem pedir permissão aos usuários, que fornecem esses dados diariamente sem perceber, apenas por viver. O controle desses dados, que deveria pertencer a cada indivíduo e à comunidade, está cada vez mais nas mãos dessas empresas monopolistas.

Um dos desafios é como obter controle nacional, regional e individual sobre nossos próprios dados. Alguns países, europeus por exemplo, estão desenvolvendo regulamentações para que os indivíduos possam controlar seus dados de certa maneira, mas isso depende muito do nível de conscientização e entendimento do usuário. Muitas vezes, essas plataformas se tornaram essenciais para acessar serviços básicos, dificultando o abandono das mesmas”.

__ Aaron Schneider

Precisamos pensar nos dados como um produto comunal, resultado das experiências e relações de uma comunidade. Pensemos assim: a música jazz era um produto cultural, mas acabou privatizada e controlada por empresas, os dados também são um produto comunal que não existiria sem a contribuição de todos. Portanto, é essencial encontrar formas de proteger a soberania da comunidade sobre esses dados, para que não sejam apenas aproveitados por empresas estrangeiras.

Regulações que concedam poder de controle a países ou grupos de países podem ser uma abordagem para enfrentar esse desafio. Países maiores podem ter mais influência, mas países menores também podem se unir em negociações conjuntas para impor regulações e assegurar que os países e indivíduos tenham controle sobre seus próprios dados e a riqueza gerada por esse recurso na nova economia digital.

Outra questão preocupante é como a extrema direita tem se aproveitado das plataformas de comunicação em geral; há um avanço do fascismo nessas grandes empresas e isso tem sido observado há algum tempo. Há algum progresso no combate a esse fenômeno em outros países?

Sim, é de fato preocupante como a extrema direita utiliza habilmente as tecnologias e plataformas para disseminar desinformação e notícias falsas. Existem duas questões a se pensar aqui: Primeiramente, a união do mundo financeiro com o tecnológico após a crise de 2008-2009. O grande capital, em busca de lucros e excedentes, procurou se renovar investindo em tecnologia. Devemos lembrar que a tecnologia é fruto do excedente gerado pelos trabalhadores da última geração, capturado pelo grande capital e reinvestido em tecnologia para o próprio benefício.

Essa combinação do grande capital com o setor financeiro levou a uma ideologia libertária dentro do mundo tecnológico, convencendo-se de que todas as inovações eram deles, ignorando a origem do excedente gerado pelos trabalhadores. Isso resultou na era de inovação digital que vivemos atualmente.

A utilização das plataformas pela extrema direita e o avanço do fascismo são questões complexas e desafiadoras. Embora haja preocupações em relação a esse cenário, é importante também refletir sobre abordagens e soluções interessantes que estão sendo implementadas em outros países para combater esse fenômeno.

E como as notícias falsas contribuem nestes casos?

Os trabalhadores que produziam esse excedente e também as grandes inversões do capital estão expostos a uma agenda da direita que busca disseminar desinformação e obscuridade. A extrema direita se aproveita dos mecanismos tecnológicos para avançar seu projeto, que depende da desinformação. É fundamental preparar as pessoas para utilizar as tecnologias de forma consciente, distinguindo a verdade da mentira. Isso requer esforços tanto dos movimentos sociais quanto dos governos, que devem investir em educação e no uso saudável das tecnologias.

Apesar das vantagens que a extrema direita possui nesse momento, seu projeto é destrutivo, afetando as sociedades, o meio ambiente e a própria economia. Portanto, seguir com esse projeto não é viável.

Quais são exemplos de soberania popular digital no mundo?

Existem experiências interessantes que podem ser escaladas para enfrentar a crise que enfrentamos. Para a classe trabalhadora existe muita resistência, um exemplo é o das cooperativas que desenvolvem seus próprios algoritmos, permitindo que os trabalhadores controlem seus próprios dados e formem cooperativas com algoritmos próprios. Um exemplo seria o Uber, onde os motoristas poderiam se unir e criar sua própria plataforma cooperativa.

O Uber tem a vantagem de possuir dados sobre todas as pessoas que solicitam caronas e todos os motoristas. Eles registram todas as distâncias e locais onde as pessoas pedem caronas. No entanto, cooperativas de motoristas podem decidir controlar seus próprios dados e desenvolver seu próprio algoritmo para fornecer um serviço semelhante ao Uber, mas com o controle nas mãos dos motoristas. Isso permitiria oferecer o mesmo serviço com preço e qualidade semelhantes, mas com maior controle e dignidade no trabalho. Os consumidores, ao serem apresentados a essas opções, poderiam escolher aqueles que valorizam a dignidade no trabalho e o controle sobre seus dados.

É importante reconhecer que há resistência e lutas diárias das pessoas para enfrentar as consequências negativas da aceleração tecnológica e a precarização do trabalho. A busca por soluções democráticas e soberanas é fundamental para enfrentar os desafios impostos pela era digital.

Outro exemplo relevante é o da Coreia do Sul, onde um município coleta todas as informações do Uber e exige que a empresa compartilhe esses dados, permitindo ao município utilizar essas informações para melhorar o transporte público. Eles podem, por exemplo, disponibilizar ônibus públicos em rotas onde o Uber anteriormente dominava o serviço privado, pois agora o município tem acesso e controle sobre os dados.

Esses exemplos demonstram como os trabalhadores e as comunidades podem tomar controle das novas tecnologias em benefício do público e do bem comum. A soberania e controle sobre as informações são fundamentais para garantir que essas tecnologias sejam utilizadas para o benefício de todos, e não apenas para o lucro de empresas privadas.

Então, são dois exemplos onde o trabalhador e os curriculares nacionais são extensões, localidades, municípios e lugares. Bora tomar o controle dessas novas tecnologias para o público, para o bem público.

*Editado por Solange Engelmann