Coluna Aromas de Março

Paternidade e o lugar do ato de cuidar na vida dos homens

Coluna Aromas de Março propõe uma reflexão sobre o lugar que o ato de cuidar ocupa na vida dos homens, na construção da nova sociedade emancipada
Ser pai não é ajudar, é fazer parte da criação, assumindo qualquer tarefa que seja necessária (…) Ser pai é estar junto, (…) por consciência e responsabilidade.” Foto: José Eduardo Bernardes

Por Juliana de Almeida Costa/Josenildo Chagas de Arruda MST/RHC e Sandra Nunes Rorigues COOTAP/RHC
Da Página do MST

Nos territórios e espaços coletivos do Movimento Sem Terra nos desafiamos a exercitar os valores e princípios humanistas, de solidariedade, cooperação, igualdade e justiça, livres da opressão de classe e construindo relações humanas emancipadas.

Vivemos numa sociedade ordenada por uma antiga e bem enraizada forma de poder, o patriarcado, forjado na construção das desigualdades e hierarquização entre os sexos da espécie humana que, convencionalmente, denominamos de feminino e masculino.

E, companheiros e companheiras, como não vivemos em uma bolha, na vivência cotidiana, se não cuidarmos, acabamos incorporando valores e princípios impostos pela lógica patriarcal, machista e preconceituosa, reforçando a divisão sexual do trabalho, que impõe papéis distintos para homens e mulheres na sociedade em geral e, em especial no cuidado com a casa e filhas/os.

Vocês já pararam para pensar em uma sociedade sem cuidado? Afinal, o ato de cuidar é importante somente a uma parte dos seres humanos ou a todos e todas nós? Segundo Leonardo Boff (2014, p. 38), “o cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano”, sendo uma de suas principais características, logo, o descuido, a falta de zelo, podem ser vinculados à desumanização. Assim, podemos entender que atitudes de desleixo, de indiferença ou abandono daqueles que necessitam de cuidado, de descuido com nós mesmos, com outros seres humanos, com outros seres vivos e com o espaço em que vivemos estando ligada à desumanização pode ser um elemento gerador de atitudes que geram violência, pois rompem com preceitos de uma nova civilização que entende a sustentabilidade e o cuidado como centrais.

Na sociedade patriarcal capitalista as tarefas do cuidado são atribuídas às mulheres. Mas, se todos os seres humanos precisam de cuidado, em todos os momentos da vida, e se o cuidado está diretamente ligado a sermos humanos, então porque somente metade de nós deve cuidar?

Neste sentido, estamos propondo uma reflexão sobre o lugar que o ato de cuidar ocupa no cotidiano da vida dos homens e pensamos que, talvez, o momento onde isso se apresenta de maneira mais explícita e cotidiana é na paternidade e na sua construção, a partir do que entendemos como processo para a construção da nova sociedade que almejamos.

O que é paternidade?

Muita gente vai dizer simplesmente que é ser pai. Mas será que ser pai é algo natural, ou suas atribuições mudam de acordo com a história e a cultura onde se vive? No contexto histórico da sociedade capitalista, ser pai é ser o PROVEDOR, ou seja, aquele que é responsável por garantir os recursos financeiros para o sustento da família, cabendo à mulher todas as atividades de CUIDADO, necessárias para o bem-estar da criança.

Portanto, lavar as roupas, trocar a fralda, dar banho, alimentar, dar atenção, definir a roupa que vai usar em caso de estar frio ou calor, acalentar e acolher, acompanhar a vida escolar, levar ao médico e etc. parece ser COISA DE MÃE, coisa de mulher. E cabe ao homem “ajudar” a companheira, quando der, nessas tarefas, como forma de boa vontade, ou favor. Quantas vezes não ouvimos camaradas falando: “mas eu ajudo minha mulher” ou “ele até me ajuda”…

Daí, pensando na sociedade que a gente pretende construir, surgem as seguintes dúvidas:

  • Quem disse que cuidar das crianças é tarefa somente da mulher?
  • Será que essa não seria uma tarefa a ser partilhada pelo pai e pela mãe? E mais ainda, com a comunidade?
  • Um pai deixar de assistir ao jogo de futebol ou ir ao jogo para estar com a cria, dando carinho, atenção ou fazendo alguma tarefa ligada a ela, vai fazer dele menos homem?
  • Ficar com a filha ou filho, para que a companheira participe de alguma atividade do Movimento, ou mesmo vá se divertir com amigas e amigos vai fazer dele mais ou menos homem?

O que é masculinidade e feminilidade e o que a paternidade tem com isso

Se a gente parar e pensar nessas duas palavras, podemos dizer que são características que reforçam a ideia do que é ser homem e ser mulher. Por exemplo: Usar saia é coisa de ___? Usar calça é coisa de ____? Trabalhar na roça é coisa de _____? A cor rosa é coisa de ____?

Foto: José Eduardo Bernardes

A gente poderia fazer um monte de outras perguntas, mas o que mais chama a atenção é que a resposta vai variar de acordo com o tempo e o lugar, porque são construções sociais. E como estamos em um sistema de poder opressor dos homens sobre as mulheres, essa construção também vai ao encontro dessa lógica.

Características que expressam fragilidade, dependência, cuidado estão vinculados à masculinidade ou feminilidade? E as características relacionadas à fortaleza, frieza, racionalidade e originalidade, estão relacionadas a quem?

Quando fazemos esse tipo de associação, estamos colocando todas as pessoas em duas caixas e se alguém agir diferente, logo estará errando e tem que ser corrigido, de qualquer forma. Quem age de tal forma é nessa caixa e quem age de outra forma é na outra caixa. Agindo assim, será que estamos nos permitindo viver todas as dimensões do que é ser humano?

Ser pai está muito além da biologia e muito além do que ajudar a criar um ser humano, está vinculado ao exercício de uma FUNÇÃO PATERNA, que implica em prover as filhas e filhos, gerados ou escolhidos, de muito mais do que necessidades materiais, mas também afetivas e emocionais, dando suporte ao seu processo de humanização. É também função paterna partilhar a criação e o cuidado das crianças com a mãe, para que esta possa exercer sua maternagem em pé de igualdade. São nestas relações parentais, que as crianças constroem seus primeiros espelhos para seguir se forjando na vida.”

Quais valores, princípios e sentimentos fortalecemos no Ser humano Sem Terra?

O SER HUMANO é aquele dotado de sentimentos, raciocínio, sabedoria, de potência criadora e de convivência em grupos sociais, mas que necessita de um processo de formação, ou de humanização, para realizar aquilo que está nele em germe. Nessa definição, poderíamos dizer que a família seria um exemplo de espaço de humanização?

Quando partimos desse princípio, compreendemos que não existe homem ou mulher, mas sim pessoas, que se unem e criam acordos que possibilitam a convivência e a sobrevivência coletiva. Cuidado, proteção, ajuda, empatia, socialização são ações expressas por pessoas e não são atribuídas a sexos. A família e a comunidade podem ser um dos espaços de humanização das nossas relações como forma de resistência às imposições sociais do capitalismo patriarcal.

Fica então para nossa reflexão coletiva, quais os sentimentos que mobilizam o ser humano Sem Terra? Quais os valores, princípios e elementos que nos constituem enquanto seres humanos revolucionários, camponeses, que desejam transformar a sociedade?

Existe a necessidade de discutirmos de forma permanente os acordos estabelecidos entre as pessoas responsáveis pelos filhos e filhas Sem Terra. Não há como forjarmos novos seres humanos sem novas práticas e concepções.

O patriarcado que é um sistema baseado na opressão e submissão e não cabe na formação desse novo ser humano, do projeto de Reforma Agrária Popular que estamos construindo. Ser pai não é ajudar, é fazer parte da criação, assumindo qualquer tarefa que seja necessária, sem desmerecer ou engrandecer a nenhuma das partes envolvidas. Ser pai é estar junto, não por bondade ou benevolência, mas por consciência e responsabilidade. O cuidado é uma característica que nos constitui, como homens e mulheres, e qualquer um tem a possibilidade de exercê-la.

Referências:

BOFF, L. Saber Cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 20 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
HOMENM, Maria; CALLIGARIS, Contardo. Coisa de Menina? Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo. Papirus 7mares, 2019.
SIMULA, Pertti. Transformação das Relações Humanas e Cooperação. 1ª ed. São Paulo, Expressão Popular, 2017.

*Editado por Solange Engelmann