Integração e harmonia

Agricultura Biodinâmica

Confira artigo sobre o funcionamento da agricultura biodinâmica, sua importância para a recuperação do meio ambiente e a produção de alimentos saudáveis
Foto: Carlinhos Luz

Por Pedro Jovchelevich e Fernando Silveira Franco
Do IAPC Raízes

Apresentaremos aqui alguns elementos importantes para o entendimento da agricultura biodinâmica, como esta foi pensada e desenvolvida ao longo de um período de quase 100 anos, sendo considerada pelos que a praticam e vivenciam como muito mais do que um método de produção agrícola sem venenos e adubos químicos.

Rudolf Steiner (1861-1925), cientista austro-húngaro, sistematizou a gnosiologia contida em Goethe como base científica para o desenvolvimento da ciência do espírito ou antroposofia. Nasceram, dessa forma, a agricultura biodinâmica, a medicina e a farmacologia antroposóficas, a pedagogia Waldorf, dentre outras. A antroposofia não é uma religião, é uma ciência que permite a construção de um conhecimento que integra matéria e espírito. Para Steiner, o pensar é o elo entre o homem e a realidade espiritual, berço da liberdade (Klett; Miklós, 2001). Assim, iniciou-se em 1924 a pedra fundamental do Movimento Biodinâmico, em forma de um ciclo de 8 palestras para agricultores. Esse congresso foi realizado em Koberwitz, Polônia. É o primeiro movimento de agricultura alternativa a surgir de forma organizada no Ocidente, antes da agricultura orgânica e natural.

O aspecto básico da agricultura biodinâmica consiste em entender a propriedade agrícola como uma individualidade, um organismo com seus diferentes componentes (solo, vegetais, animais, recursos naturais e humanos). O método considera três pontos básicos: a) os ciclos das substâncias e forças (formas de atividade); b) as inter-relações entre os componentes e a localidade, e; c) a organização da empresa agropecuária (Koepf; Pettersson; Schumann, 1983).

Sua principal meta é a fertilização dos solos de uma forma duradoura e, a partir da construção da atividade biológica, modificar as condições físicas e químicas do solo. A este aspecto biológico deve-se agregar o aspecto dinâmico, que consiste no uso de preparações caseiras utilizando substâncias orgânicas e minerais de forma bastante diluída (homeopática), que configuram a base do método biodinâmico. Tais contribuições específicas e originais da biodinâmica partem do uso de preparados de ação semelhantes aos da homeopatia e dos calendários baseados em pesquisa sobre a influência dos ciclos astronômicos sobre a terra e as plantas. A agricultura biodinâmica tem seu fundamento não só nas práticas comuns à agricultura orgânica, mas também no reconhecimento de que a saúde do solo, do mundo vegetal, animal e do próprio ser humano dependem de um relacionamento mais amplo entre as forças que estimulam os processos naturais (Koepf; Pettersson; Schumann, 1983). Assim, ela tem como objetivo renovar o manejo agrícola, sanar o meio ambiente e produzir alimentos realmente condignos ao ser humano.

Esse impulso quer devolver à agricultura sua força original criadora e fomentadora, cultural e social, força que ela perdeu no caminho à industrialização direcionada à monocultura e à criação em massa de animais fora do seu ambiente natural. A agricultura industrial priorizou a produção em grande escala, com uso intensivo de agrotóxicos, máquinas e energia à base de petróleo, levando à contaminação do ambiente e à concentração da posse da terra, entre outros impactos socioambientais negativos.

A Agricultura Biodinâmica quer ajudar aqueles que trabalham no campo a superar a unilateralidade materialista na concepção da natureza para que possam, cada um por si, encontrar um relacionamento espiritual com o solo, com as plantas e os animais e com os outros seres humanos. Não apenas como um método de agricultura, mas como uma concepção espiritual de vida baseada na ciência espiritual antroposófica, como um caminho de desenvolvimento humano.

A biodinâmica quer lembrar a todas as pessoas que “a Agricultura é o fundamento de toda cultura, ela tem algo a ver com todos”. O ponto central da agricultura biodinâmica é o ser humano, que conclui a criação a partir de suas intenções espirituais baseadas em uma verdadeira cognição da natureza. Este quer transformar sua fazenda ou sítio em um organismo em si concluso e maximamente diversificado; um organismo que seja, a partir de si mesmo, capaz de produzir uma renovação. O local natural deve ser elevado a uma “espécie de individualidade agrícola”.

O fundamento para tal transformação é a integração harmônica de todos os elementos ambientais agrícolas, como culturas do campo e da horta, pastos, frutas e outras culturas permanentes, florestas, agroflorestas, cerca-vivas e capões arbustivos, mananciais hídricos, várzeas etc. Caso o organismo agrícola se ordene em volta desses elementos, nasce uma fertilidade permanente e, com ela, a saúde do solo, das plantas, dos animais e dos seres humanos.

A partida e a continuidade desse desenvolvimento ascendente da totalidade do organismo agrícola são asseguradas pelo manejo biodinâmico dos tratos culturais agrícolas e do uso de preparados, apresentados pela primeira vez por Rudolf Steiner no Congresso de Pentecostes, em 1924. Trata-se de preparados que incrementam e dinamizam a capacidade intrínseca da planta de ser produtora de nutrientes, por mobilização química, transmutação ou transubstanciação do mineral morto, ou ainda, por harmonização e adequação na reciclagem das sobras da biomassa produzida. Preparados que simultaneamente apoiam a planta a ser transmissor, receptor e acumulador do intercâmbio da Terra com o Cosmo, ou seja, beneficiar todo o agroecossistema a partir das influências vindas do céu em nossa volta, como a luz do sol, da lua e dos planetas.

Adubar na biodinâmica significa, portanto, aviventar ou vivificar o solo, diferente de fornecer nutrientes para as plantas.

A única preocupação que se deve ter é o que fazer para que isso aconteça. Fornecendo conforto fisiológico, é possível abster-se de tudo que hoje em dia parece ser imprescindível na agricultura convencional. No organismo agrícola biodinâmico não são usados adubos nitrogenados minerais, pesticidas sintéticos, herbicidas e hormônios de crescimento etc. A concepção do melhoramento biodinâmico dos cultivares ou das raças está em irrestrita oposição à tecnologia transgênica . A ração para os animais é produzida no próprio sítio ou fazenda e a quantidade dos animais mantidos está em relação com a capacidade natural da área ocupada.

O agricultor biodinâmico está empenhado em fazer somente aquilo pelo qual ele mesmo pode responsabilizar-se, a saber, o que serve ao desenvolvimento duradouro da “individualidade agrícola”. Isso inclui o cultivo e a seleção das suas próprias sementes e a adaptação e a seleção de raças de animais. Além disso, a agricultura biodinâmica significa uma orientação renovada na pesquisa, consultoria e formação profissional.

O agricultor biodinâmico aprende, dentro do processo de trabalho, a ser ele mesmo um pesquisador; aprende a participar e transmitir sua experiência a outros e a fazer de seu estabelecimento um local de formação profissionalizante para gerações vindouras.

Uma renovação desta natureza desperta o interesse das pessoas que vivem nas cidades. Elas se ligam a esta ou aquela fazenda ou sítio, apoiam e ajudam como podem, tornando-se fiéis fregueses. Elas colaboram na formação de mercados regionais, tornando-se associados solidários mútuos. Há iniciativas novas de importância fundamental em toda parte para que a agricultura possa enfrentar com sua autonomia regional a globalização do mercado mundial, como por exemplo as CSAs (Comunidade que Sustenta a Agricultura) que têm se espalhado no Brasil e em outros países junto ao impulso da biodinâmica.

Em mais de 50 países, a agricultura biodinâmica é praticada a serviço do cultivo do meio ambiente e da alimentação saudável do ser humano. No mundo inteiro, os produtos biodinâmicos são uniformemente comercializados sob a marca “Deméter”. A marca Deméter garante uma cultura agrícola baseada em medidas novas nos campos culturais (espirituais, políticos), legais, econômicos e ecológicos.

Os preparados biodinâmicos

Os preparados biodinâmicos foram desenvolvidos por Rudolf Steiner, com base na antroposofia, antes e durante o Curso Agrícola, em 1924. Steiner afirma que “adubar consiste em vivificar a Terra” e, com base nesta afirmação, traz os preparados como sendo mediadores entre a Terra e o Cosmo, ajudando as plantas em sua tarefa de serem órgãos de percepção da Terra.

Os preparados biodinâmicos são similares a remédios homeopáticos no que diz respeito às substâncias naturais utilizadas, aos processos de dinamização, à atuação através de forças e não de substâncias, e por serem utilizados em quantidades mínimas, entretanto eles não se prendem à teoria ou à prática da homeopatia médica.

Eles são elaborados a partir de plantas medicinais, esterco e silício (quartzo), que são envoltos em órgãos animais, enterrados no solo e submetidos às influências da Terra e de seus ritmos anuais.

Uma de suas funções é harmonizar o meio onde estarão, atuando por meio de um equilíbrio dinâmico entre os diversos componentes do organismo agrícola. Entende-se “organismo agrícola” como estrutura formada por solo, planta, animal e ser humano. Sendo assim, trabalha-se com a interação dos componentes da propriedade.

Preparado chifre-esterco – 500

O preparado chifre-esterco é destinado ao solo e a todos os processos formativos de desenvolvimento radicular, assim como favorece a interação das raízes com o solo e todos os organismos vivos presentes e atuantes. Este preparado tem uma atuação vertical, que permitirá o estabelecimento das raízes e posteriormente o desenvolvimento “para o alto” das plantas; ele traz força para o solo, permitindo a formação correta das plantas. O preparado chifre-esterco deve ser aplicado no momento do preparo do solo, na semeadura, no transplante, ou seja, no momento em que se deseja dar um impulso ao desenvolvimento radicular. Depois da dinamização, este deve ser aplicado em gotas grossas, direcionado ao solo, ao entardecer. É importante ressaltar que a água utilizada para a dinamização dos preparados seja proveniente de chuva ou de poço. Não se utiliza água tratada.

Preparado chifre-sílica – 501

A aplicação é direcionada à planta. Atua diretamente nas funções foto- sintéticas da planta, favorecendo os processos de luz e calor. Este é o “preparado da luz”, que traz forças da periferia cósmica intensificando a atuação da luz solar. Este preparado é essencial para a estruturação interna das plantas e seu desenvolvimento, assim como para a qualidade nutritiva das plantas e para a resistência a doenças. Não se recomenda utilizar no estágio inicial de desenvolvimento da planta, até que as raízes estejam bem estabelecidas. Aconselha-se utilizá-lo principalmente na prefloração e frutificação. Recomenda-se a aplicação rítmica para o fortalecimento das folhas contra fungos e insetos; três dias seguidos na mesma hora, com repetição de duas a três semanas. Para a maturação de frutos, fazer a aplicação na parte da tarde.

Preparados para composto/ biofertilizante – 502 ao 507

Os seis preparados elaborados a partir das plantas medicinais Milfolhas (502), Camomila (503), Urtiga (504), Casca de Carvalho (505), Dente de Leão (506) e Valeriana (507) servem como suplemento ao composto, esterco, chorume e biofertilizante, conduzindo e organizando os processos de fermentação e decomposição. Por meio do composto preparado, eles colocam as plantas em uma condição na qual as forças do cosmo sejam mais atuantes.

Segundo experimentações práticas, foi comprovado ser eficiente o uso da Valeriana individualmente no caso de ocorrência de geada. Este preparado trabalha com as forças de calor e com processos nos quais o elemento fósforo é atuante. Para este fim, o preparado de Valeriana deve ser borrifado sobre a área afetada pela geada, de modo a fortalecer a planta em caso de danos. Pode-se, ainda, utilizá-lo de maneira preventiva na noite anterior à geada.

Fladen

É uma forma de composto na qual são aplicados os preparados de plantas medicinais e que age como um condutor/orientador nos processos de decomposição. Recomenda-se utilizar em matéria vegetal roçada, em recuperação de pastagens, após a adubação verde ou sobre qualquer material a ser decomposto no campo de cultivo, enriquecendo a matéria húmica, assim como em áreas de agroflorestas, sobre o material podado das espécies arbóreas e arbustivas usadas como adubadeiras do sistema. É uma forma de utilizar os preparados de composto em áreas maiores, aumentando a influência da ação destes.

Dinamização

É um movimento muito especial e de grande importância para a propriedade e para o sucesso da ação dos preparados; portanto, deve ser feito conscientemente. Neste processo, as forças contidas nos preparados são transmitidas à água por meio da agitação contínua. A dinamização deve ser feita preferencialmente em barricas de madeira, mas pode também ser feita em cerâmica ou aço inox. Deve-se iniciar mexendo-se a água com o preparado para um lado, na periferia primeiramente, e depois até o centro para se formar um vórtex; quando este vórtex estiver formado e quase se puder ver o fundo da barrica, inverte-se o movimento, provocando o caos e restabelecendo a ordem novamente com o redemoinho para o novo lado. Desta maneira promove-se a polaridade associação e dissociação. Este movimento deve ser repetido por uma hora e o preparado dinamizado deve ser aplicado em até 3 horas.

Estudos científicos

Reganold e Palmer (1995 apud Castro, 2005), analisando solos em propriedades convencionais e biodinâmicas na Nova Zelândia, demonstraram que os solos oriundos de propriedades biodinâmicas mostravam maior qualidade biológica, física e química do que os solos oriundos de propriedades convencionais.

Piamonte (1996), em experimentos comparativos com adubação mineral, orgânica e biodinâmica em cenouras, demonstrou que a massa seca, textura, conservação, teores de vitamina A e betacaroteno foram superiores em cenouras com adubação orgânica e biodinâmica.

Miklós et al. (1999), trabalhando com compostagem de resíduos da indústria de cana-de-açúcar, demonstraram que, com a utilização de preparados biodinâmicos, houve uma redução considerável de perdas de nutrientes durante o processo de compostagem.

A agricultura biodinâmica tem história recente no Brasil, iniciando-se principalmente a partir da década de 1970, com o início da Estância Demétria, em Botucatu-SP, e percorrendo um caminho de desenvolvimento e adaptações às condições socioambientais tropicais, expandindo-se e despertando interesse tanto de agricultores quanto de consumidores envolvidos na busca da produção de alimentos saudáveis. Ainda existem muitos desafios que, pelos sentimentos e vivências, passam por estratégias de inclusão social, no sentido de divulgar os conhecimentos adquiridos, tornando a produção mais acessível aos agricultores, principalmente familiares, e que os alimentos assim gerados também possam ser acessíveis para todas as pessoas, sendo nesse caso necessários processos solidários e justos de certificação e de comercialização. Do ponto vista ecológico, vemos a importância do olhar para a dinâmica e estrutura do ecossistema local, que passa pela observação do papel do componente arbóreo no organismo agrícola, conforme foi proposto por Rudolf Steiner em seu curso fundamental, no ano de 1924: “A Terra necessita de agrupamentos de plantas, florestas, para ser viva e cosmicamente consciente. Ela tem isso realizado, principalmente árvores, com seus troncos retos, que são um segmento de raios que vão do centro da Terra à periferia do cosmo, cuja esfera é espelhada na sua copa” (Steiner, 2001).

Fonte: Republicado do livro “Dicionário de Agroecologia e Educação”, 1a edição: setembro de 2021. Editora Expressão Popular LTDA / Traduzido do portugues pela RAÍZES: (Link)

Referências

1. KOEPF, H.; PETTERSSON, B. D.; SCHUMANN, W. Agricultura biodinâmica. São Paulo: Nobel, 1983. 316p.

2. KLETT, M.; MIKLÓS, A. A. W. Agricultura biodinâmica e nutrição humana. In: MIKLÓS, A. A. W. A dissociação entre homem e natureza. Reflexos no desenvolvimento humano. São Paulo: Antroposófica; 2001. p. 215-59.

3. MIKLÓS, A. A. W. et al. Avaliação dos efeitos dos preparados biodinâmicos sobre as perdas de nutrientes na compostagem. Agricultura Biodinâmica, ano 16, n. 82, p. 27-32, 1999.

4. PIAMONTE, P. R. Rendimento, qualidade e conservação pós-colheita de cenoura (daucus carota l.) sob adubação mineral, orgânica e biodinâmica. 1996. Dissertação (mestrado em Agronomia/ Horticultura). Faculdade de Ciências Agronômicas, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 1996.

5. STEINER, R. Fundamentos da agricultura biodinâmica. 3. ed. São Paulo: Editora Antroposófica, 2001.