Mulheres em Luta
Mulheres do MST produzem alimentos saudáveis e diversidade nas áreas de Reforma Agrária
Por Solange Engelmann e Mariana Castro
Da Página do MST
As mulheres Sem Terra vêm a cada dia conquistando mais espaço e assumindo o protagonismo na luta pela terra e Reforma Agrária Popular, atuando em uma diversidade de áreas e coletivos, a exemplo da produção de alimentos saudáveis e fitoterápicos, essenciais para garantir a vida, a saúde e sobrevivência das famílias Sem Terra nos territórios dos acampamentos e assentamentos do MST pelo país.
“As experiências têm modificado várias coisas em relação à vida da mulher camponesa no assentamento. Primeiro, os chocolates, nibs, bombons e os derivados do cacau têm nos representado, com o protagonismo das mulheres. Segundo, essas mulheres têm se sentido valorizadas com o fruto do seu trabalho. E terceiro, elas também começam a ser ousadas e tomar decisões importantes, com a liberdade financeira. Então, a mulher tem autonomia de decisão”, comemora Zonália dos Santos, moradora do assentamento Madre Cristina, em Ariquemes, Rondônia.
Na luta contra a invisibilização do trabalho das camponesas nas áreas de Reforma Agrária, Giselda Pereira, da coordenação nacional do setor de Produção do MST, ressalta que as mulheres Sem Terra têm avançado em vários espaços na área da produção de alimentos saudáveis e no enraizamento da agroecologia, conquistando maior visibilidade no fruto do trabalho feminino e na participação das camponesas nos assentamentos e acampamentos do Movimento.
“Acho que o espaço da feira dá essa visibilidade, é a expressão também da origem dos produtos e de quem está envolvido diretamente nesses processos. Nessa perspectiva, na Feira Nacional [da Reforma Agrária], eram mais de 53% de mulheres participando. No levantamento realizado na última Feira estadual do Pará, 60% eram mulheres”, pontua.
Giselda também relata que é possível notar avanço das mulheres na condução de alguns processos organizativos, por meio da organização das cooperativas. Os espaços dos coletivos de mulheres do MST nos territórios também têm contribuído para ampliar a atuação das camponesas na produção, comercialização e processamento dos alimentos da Reforma Agrária.
“A atuação das mulheres na produção de alimentos saudáveis nas áreas de assentamento pelo país tem acontecido de diversas formas. No cotidiano, vemos na produção de alimentos a partir dos quintais produtivos, na inserção em coletivos de produção de mulheres e cooperativas e nos processos de formação e em debates sobre a agroecologia”, afirma Giselda.
Mas as mulheres do campo ainda convivem com a desigualdade de gênero e a dominação do patriarcado, exercida a partir de vários tipos de violências, discriminações e desigualdades.
Em geral, 8 em cada 10 lotes são dirigidos por homens e a participação das mulheres na gestão dos lotes e na posse da terra nos territórios rurais ainda é pequena, inclusive nas áreas de produção familiar e camponesa.
Segundo dados do Censo Agropecuário de 2017, os homens concentram a direção de 81,3% (4,11 milhões unidades) do total de estabelecimentos agropecuários entre as 5,07 milhões de unidades levantadas, enquanto as mulheres dirigem apenas 18,7% (946 mil unidades) dessas áreas, considerando todas as formas de direção.
A produção de chocolates e fitoterápicos em Rondônia
O chocolate produzido pelas camponesas e jovens assentadas de Rondônia é cultivado no modelo de produção agroecológico, a partir da implantação de agroflorestas, com os cuidados de respeito e equilíbrio com a natureza e os seres vivos do entorno.
A assentada Zonália conta que o gosto das mulheres e jovens pela produção do chocolate e beneficiamento dos derivados do cacau veio após alguns cursos, experiências de produção para o autoconsumo e o reconhecimento dos consumidores/as da primeira Feira Nacional do MST, em São Paulo. Hoje as camponesas produzem barras de chocolate, bombons, chocolate em pó e doces à base de cacau.
“O cacau a gente já tinha lavouras, a maioria feito em áreas de recuperações. E a gente só recolhia a amêndoa e vendia o cacau, aí começamos a fazer alguns cursos e fazia pro consumo e depois começamos a vender para amigos e o pessoal começou a gostar. Na primeira Feira Nacional da Reforma Agrária a gente fez uma quantidade boa e vimos que o chocolate, feito por nós de Rondônia, tinha uma valorização. Começamos a sentir gosto de fazer os chocolates, o povo gosta muito dos nossos chocolates e isso tem nos ajudado muito, porque saiu de Rondônia e foi pro Brasil, tomando uma proporção que a gente nem esperava”, relata Zonália.
As famílias assentadas de Rondônia, em sua maioria mulheres, também trabalham com a produção de fitoterápicos para a cura de suas famílias e de pessoas próximas. A produção é voltada para o autoconsumo e a sobrevivência das pessoas dentro da proposta agroecológica, nos assentamentos do estado, explica a assentada.
“Quando a gente fez os primeiros acampamentos em Rondônia, nos anos 90, fomos agraciados com uma proposta que era trabalhada nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Quando vamos para os nossos acampamentos, a gente leva esse saber, que é trabalhar com os fitoterápicos. Hoje a gente tem em todos os assentamentos pessoas que se dedicam com muito carinho e amor ao trabalho com fitoterápico e ajudam o próximo. E a maioria dos grupos é de mulheres”, relata Zonália.
A assentada de Rondônia explica que com a produção e comercialização dos produtos da Reforma Agrária, as camponesas do estado têm buscado garantir renda, agregando valor ao trabalho, bem como “garantir um alimento saudável com um valor mais acessível a todas/as/es, e garantir a nossa sobrevivência, enquanto camponesa, mas também a nossa militância”.
A avaliação das mulheres Sem Terra de Rondônia é de que as experiências do chocolate e fitoterápico tem um papel central em vários sentidos para avançar no protagonismo das mulheres na luta do MST: “Primeiro que as lavouras são próximas ao quintal, e como o cacau é uma árvore grande, bonita, os quintais ficam bem arborizados; segundo, tem lugares que as mulheres se juntam para fazer o chocolate ou colher o cacau. E terceiro, essa questão da liberdade financeira, isso tem sido muito rico para as companheiras em Rondônia”, conclui Zonália.
Nesse sentido, Giselda ressalta que os quintais produtivos se tornam um espaço importante na vida das mulheres Sem Terra e na produção de alimentos para o autoconsumo das famílias e de fitoterápicos em volta das moradias nas áreas de Reforma Agrária. Em muitos assentamentos, além da casa, o quintal também é usado na produção de frutas, hortaliças, criação de pequenos animais, plantas medicinais, entre outros.
“Como está no entorno da casa e quem passa o maior tempo nesse ambiente são as mulheres, no geral, acaba tendo uma atuação muito forte nessa perspectiva, inclusive, em muitos casos são alimentos base do autoconsumo da família, portanto, não contabilizados, inviabilizando o trabalho de quem faz. Mas essa produção tem sua importância na segurança alimentar e na diversificação dos alimentos, que chegam na mesa de quem vive nos territórios dos assentamentos”, analisa Giselda.
Mulheres, preenchem assentamento do Maranhão com “Arte e Vida”
No Maranhão, mulheres do assentamento Cristina Alves, localizado no município de Itapecuru, estão na linha de frente da produção de artesanato, alimentos saudáveis, criação de animais de pequeno porte, fortalecimento da cultura, do lazer e formação.
Criado em 2012, o Coletivo de Mulheres Arte e Vida surgiu a partir da produção de artesanato com materiais recicláveis coletados no próprio assentamento, como garrafas pet, pneus, garrafas, papéis e outros, transformados em peças decorativas, como lembra a integrante Maria de Jesus, conhecida como Djé.
“O grupo surgiu a partir do artesanato, com aulas na Vila Cabanagem. A partir do grupo do artesanato fomos nos envolvendo também com a horta, onde produzimos hortaliças como couve, cebolinha, alface. Com o conhecimento que conseguimos no coletivo, hoje também plantamos nos nossos lotes individuais as hortaliças, verduras e legumes e garantimos uma renda cada vez melhor”, explica Djé.
Com o reconhecimento, após um ano de criação do coletivo as mulheres garantiram o apoio de amigos, do próprio assentamento e da Cooperativa para a criação de uma sede própria, que antes era improvisada de taipa e palha e, aos poucos, se organizaram para a garantia de equipamentos como freezer, polpadeiras e outros utensílios para a ampliação e fortalecimento da produção.
O assentamento Cristina Alves é organizado por núcleos de famílias e está dividido em três agrovilas: Vila “17 de Abril”, Vila “Cabanagem” e Vila “07 de Março”. Atualmente, o coletivo “Arte e Vida” atua com um grupo de cerca de 20 mulheres na Vila 17 de Abril, outro com cerca de 30 mulheres na Cabanagem e um grupo infanto-juvenil.
Dirigente do MST no estado e assentada na Vila 17 de Abril, Alzerina Montelo explica o fortalecimento do coletivo ao longo dos anos, com a inserção na produção de hortaliças a partir de 2016, em 2018 nos derivados do babaçu, como mesocarpo e biscoito, comercializados via cooperativa. E recentemente, na criação de animais de pequeno porte, como suínos e aves caipira.
“Em 2021, a partir do Crédito Solidário da CCA, as mulheres têm acessado financiamento também para a produção de suínos, comercializado localmente e com o recurso destinado ao coletivo de mulheres. Em fase inicial, hoje elas também estão criando aves caipiras para a comercialização”, explica Alzerina.
O apoio do Movimento e acesso a créditos para pequenas agricultoras têm proporcionado um salto de qualidade na produção do coletivo e na melhoria de renda às camponesas da região, que agora lutam pela certificação da produção para ampliar a comercialização.
“Esse ano conseguimos acessar um apoio para produção agroecológica, e graças a ele estamos ampliando as nossas hortas e regulamentando a nossa produção de polpas de frutas, com o sonho ainda de inaugurar todos os nossos registros e certificações até o final desse ano”, conta Alzenira.
Além de estar na linha de frente da produção, o coletivo “Arte e Vida” desempenha um importante papel na garantia de acesso à cultura, lazer e formação de assentados e assentadas, com a organização de festividades coletivas e espaços de estudo contínuo.
“Temos reuniões todos os meses para a divisão de tarefas para a produção, mas também do lazer e formação do assentamento. Sempre nos organizamos para comemorar aniversários do mês, quadrilhas, carnaval, passeios turísticos e assumimos festas e estudos coletivos. Estamos nesse momento participando do curso Feminismo e Cooperativismo, pelo Movimento, e também temos nossos encontros das mulheres do assentamento, a cada três meses, com debates como o enfrentamento da violência contra as mulheres”, continua Alzerina.
A partir da produção agroecológica, as mulheres garantem melhorias na renda da família e todo o recurso produzido é repartido entre elas, que asseguram que a produção é importante não só para elas, mas para todo o assentamento, pois dá vida ao espaço e apresenta uma dinâmica possível de organização coletiva, dialogando com o MST.
Não basta organizar o povo e não ter diálogo com a organicidade do Movimento e as famílias, incidindo na política e nas decisões!”
O arroz agroecológico e a construção da autonomia feminina
O avanço na construção da autonomia das mulheres do MST também vêm se tornando uma realidade concreta na produção, comercialização e certificação do arroz agroecológico em assentamentos da Reforma Agrária no Rio Grande do Sul. Como a cultura depende de um cultivo mais mecanizado, geralmente, é vista como “trabalho de homem”. Ao contrário disso, na Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap), as camponesas têm se organizado para se apropriarem, cada vez mais, desse tipo de produção, atuando no cultivo da lavoura, na parte administrativa, no trabalho das agroindústrias, na comercialização e certificação.
“Na cooperativa Cootap atualmente a gente conta com 33 pessoas trabalhando fixo, entre direção e coordenação de setores, sendo 18 homens e 15 mulheres. Ou seja, 45% são mulheres que estão na parte da direção e nos setores. No grupo Gestor do Arroz nós temos mais ou menos 350 famílias envolvidas, onde cerca de 20% dessas mulheres se envolvem ativamente nesse trabalho”, relata a assentada e agricultora agroecológica de arroz, Dionéia Ribeiro, que mora no assentamento Hugo chaves em Tapes, no RS, faz parte da direção da Cootap e coordena o setor de Bioinsumos no RS.
Porém, a produtora de arroz agroecológico argumenta que a ampliação da participação feminina nesse tipo de produção só foi possível a partir da agroecologia, que vem possibilitando maior inserção e empoderamento das mulheres nessa cultura de produção de alimentos saudáveis.
“Foi através da agroecologia que nós, mulheres, começamos a ter voz e lugar e a se inserir mais no setor de produção. Então, a certificação também foi muito importante, porque é um sistema de certificação participativa, então é um instrumento que também envolve toda a família. Isso acaba gerando o maior empoderamento para nós mulheres”, comemora Dionéia.
Contudo, as camponesas ainda precisam lidar com desigualdades na divisão social do trabalho doméstico, visto culturalmente, como de responsabilidade das mulheres e meninas. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as mulheres do campo dedicam 28 horas por semana no trabalho doméstico, enquanto no espaço urbano as mulheres dedicam cerca de 22 horas nesse tipo de trabalho.
A dupla jornada de trabalho no campo para as mulheres segue como um desafio a ser superado, também nos territórios da Reforma Agrária e espaços coletivos do MST. Algumas iniciativas como as cirandas infantis, cozinhas coletivas e equidade de gênero nos espaços de direções e formações já existem no Movimento desempenhando um papel muito importante na participação das mulheres, mas são iniciativas que precisam ser ampliadas. “Então, é um desafio a ser superado, de como organizar para ter ciranda, lavanderias e espaços para além das divisões de tarefas, nos processos de formação e entendimento que as atividades precisam ser compartilhadas, para permitir uma participação e atuação maior das mulheres”, indica Giselda.
Nesse contexto, permanece também a necessidade em avançar na participação feminina nas frentes de trabalho e direções das cooperativas, buscando a equidade de gênero e a construção de ambientes de trabalho mais igualitários. “Nas cooperativas e associações, especialmente, ainda é um desafio aumentar o número de mulheres com atuação de direção nesses espaços, para conduzir os processos de organização da produção”, conclui Giselda.
*Editado por Fernanda Alcântara