História

Samir Amin: um dos raros cortadores de diamantes de seu tempo 

Conheça a história de Samir Amin (1931–2018), um dos grandes intelectuais e teórico distinto, cuja militância política abrangeu mais de seis décadas
Samir Amin, economista e escritor de origem franco-egípcia. Foto: Reprodução/Universidade do Ceará

Por Aijaz Ahmad *
Da Página do MST

Ser “marxista” é continuar o trabalho que Marx apenas começou, ainda que esse começo tenha sido de um poder inigualável. Não é para ficar em Marx, mas começar a partir dele… Marx é ilimitado porque a crítica radical que ele inicia é ela mesma sem limites, sempre incompleta, e deve sempre ser o objeto de sua própria crítica (“marxismo como formulado em um momento particular tem que sofrer uma crítica marxista”). 
Samir Amin, The Law of Worldwide Value [A lei do valor mundial] 
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Samir Amin (1931–2018) foi um dos grandes intelectuais de nosso tempo. Um teórico distinto, cuja militância política abrangeu mais de seis décadas. Socialista desde tenra idade e formado em Economia, ele insistiu que as leis da ciência econômica, incluindo a lei do valor, estavam operacionalmente sujeitas às leis do materialismo histórico.

Também com formação em Matemática, ele evitou matematizar muito seus conceitos e manteve as fórmulas algébricas a um nível mínimo, mesmo no mais técnico de seus escritos. A ambição sempre foi manter o rigor teórico e, ao mesmo tempo, comunicar-se com o maior número possível de leitores – e militantes em particular – por meio da exposição em prosa relativamente direta. Seus leitores, como sua própria militância política, estavam espalhados por países e continentes. 

Amin chegou à vida adulta nos anos 1950, quando a onda de revoluções socialistas parecia estar em ascensão e os velhos impérios coloniais estavam sendo desmantelados na Ásia e na África. Partidos comunistas e movimentos socialistas haviam surgido nesses continentes, mais na Ásia que na África, ainda antes da Segunda Guerra Mundial.

O início do período pós-guerra testemunhou uma imensa expansão da atividade revolucionária – a Revolução Chinesa, a Revolução Coreana, o início dos movimentos revolucionários de liberação na Indochina, e assim por diante. Com a notável exceção da China, entretanto, a maioria dos países desses continentes produziram relativamente poucos trabalhos originais no campo do conhecimento teórico marxista.

O estudo de qualquer tipo de marxismo significava a tradução ou explicação de textos produzidos em outros lugares, e mesmo estes se limitavam a breves textos, extratos dos clássicos ou exegeses marxistas feitas na Grã-Bretanha, França ou União Soviética. Isso começou a mudar, de diversas e notáveis maneiras. Primeiro, testemunhamos o surgimento de uma nova geração de militantes e acadêmicos marxistas em toda a Ásia e África ao longo dos mesmos anos em que impérios coloniais estavam sendo desmantelados.

Segundo, alguns desses novos intelectuais, muitas vezes associados a partidos comunistas ou a movimentos de libertação nacional, traziam para seus trabalhos conhecimentos cada vez mais sofisticados sobre os mais fundamentais clássicos: as principais obras de Marx, Lenin, Rosa Luxemburgo, Bukharin, Kautsky e outros.

Terceiro, a atenção se volta para análises extensas e rigorosas sobre 1) o desenvolvimento histórico, modos de produção e estruturas de classe não tanto da Europa, mas dos países asiáticos e africanos, e 2) os mecanismos muito elaborados envolvidos na exploração dos países imperializados, ou seja, o processo pelo qual os valores produzidos nas colônias foram apropriados para acumulação nos centros imperialistas. 

A menção a algumas datas deve esclarecer isso. Samir Amin, por exemplo, submeteu sua tese de doutorado de 629 páginas à Universidade de Paris em 1957 e a publicou muito mais tarde nos dois volumes de Accumulation on a World Scale [Acumulação em escala mundial] (edição francesa de 1970 e tradução inglesa de 1974). Aproximadamente ao longo dos mesmos anos, a Índia testemunhou a publicação de três livros que foram fundacionais na elaboração da historiografia marxista indiana: An Introduction to the Study of Indian History [Uma introdução ao estudo da História da Índia] (1956), de D. D. Kosambi; The Agrarian System of Mughal India [O sistema agrário da Índia Mongol] (1963), de Irfan Habib; e Indian Feudalism [O feudalismo indiano] (1965), de R. S. Sharma.

Do outro lado do mundo, na América Latina, todos os textos fundadores dos teóricos da dependência – Theotônio Dos Santos, Celso Furtado, Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank e outros – também apareceram na década de 1960 e no início da década seguinte2. Teoricamente, Amin estava muito mais perto de Paul Baran, que publicou The Political Economy of Growth [A economia política do crescimento], em 1957, ano em que Amin apresentou sua enorme tese. O grande clássico da economia política marxista que Baran é coautor com Sweezy, Capitalismo monopolista, foi lançado logo depois, em 1966. A anatomia do imperialismo havia, assim, chegado ao centro do novo pensamento marxista em todo o mundo, e o próprio marxismo tornou-se uma poderosa ferramenta para pensamento e pesquisa independentes em todo o Tricontinente. Em ambos os casos, a tese de Amin parece estar entre os primeiros textos que refazem os contornos do marxismo do pós-guerra de uma forma muito particular, como discutiremos a seguir. 

Amin possuía proficiência em diversas línguas, mas escreveu principalmente em francês. Ele era um escritor incrivelmente prolífico, produzindo livros e artigos com grande velocidade até a morte silenciar sua mente fecunda. Amin trabalhou em uma dúzia de campos de pesquisa; sua obra é em qualquer medida magistral, embora um pouco repetitiva nos anos finais. 

Passar algum tempo na companhia de Samir Amin foi como compartilhar um pedaço de sol no meio do cinza e do escuro. Sua estrutura física era pequena e começou a manifestar alguma fragilidade nos últimos anos e, ainda assim, seus movimentos permaneceram ágeis, exalando entusiasmo, como se o corpo fosse para sempre eletrificado por reservatórios de energia política e intelectual. Ele foi infalivelmente caloroso, educado, cortês, extraordinariamente receptivo em sua conexão com os outros, com um comportamento repleto de charme do velho mundo que parecia desmentir a dureza granítica de suas convicções.

As qualidades combinadas de sua cultura pessoal eram bastante únicas e ele tinha uma personalidade muito distinta, diferente de qualquer outra pessoa que conheci, mas ele era, devido ao hábito de toda uma vida, basicamente um homem em um grupo que serviu como seu habitat social e seu lar político. Ele era ativo e familiarizado em muitos rincões do mundo, e os lares políticos variavam, mas havia sempre e em todo lugar um grupo com o qual atuar e se comunicar. O pertencimento político e uma vida de solidariedade era uma segunda natureza internalizada, embora de modo algum livre de conflitos, grandes e pequenos, pois a vida tanto de políticos como de intelectuais nunca estão livres de dissensões ou alinhamentos. A mente dele era afiada e combativa, e ele chegou a acreditar, com quase uma confiança infantil, que havia resolvido alguns dos grandes enigmas do nosso tempo. No entanto, em suas relações com os outros, ele era genuinamente humilde. 

Samir Amin era, em suma, um dos raros cortadores de diamantes de seu tempo. 

*Aijaz Ahmad é professor e pesquisador do Centro de Estudos Contemporâneos do Nehru Memorial Museum and Library, em Nova Delhi, e professor colaborador do Departamento de Ciência Política da Universidade de York, Canadá.

**Editado por Fernanda Alcântara