Nenhuma a Menos

Para mulheres Sem Terra, descriminalização do aborto é saúde pública e igualdade de gênero

Neste 28 de setembro: Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto, camponesas ressaltam a importância do debate sobre o assunto e a pressão ao STF
Mulheres pobres e negras são as que mais morrem devido a criminalização do aborto no país. Foto: Danielle Melo

Por Solange Engelmann e Lizandra Guedes
Da Página do MST

No Brasil, historicamente, as mulheres têm tido sua voz silenciada e sua vontade negada quando se trata da autonomia sobre seus corpos, principalmente sobre a escolha em manter ou não uma gravidez indesejada. A Lei nº 2.848, datada de 1940, tipifica o aborto como “crime contra a vida”, e ao fazê-lo amplia ainda mais as estatística de mortes de mulheres no país.

O debate popular sobre o tema é complexo e polêmico, já que é atravessado por questões religiosas e é uma pauta cara ao conservadorismo. No entanto, é urgente e necessário. Buscando discutir o assunto com a sociedade, o dia 28 de setembro foi instituído como Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto. A data é ocasião para promover um debate fundamental para o combate a um conjunto de violências físicas e mentais cometidas contra as mulheres por lhes negar o direito de decidir, e que tem se tornado um problema de saúde pública, pois, no Brasil, o aborto é o quarto maior causador de mortes maternas.

Segundo dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), publica em 2021, uma a cada sete mulheres com mais de 40 anos já fizeram pelo menos um aborto na vida. No entanto, a triste estatística de vidas de mulheres interrompidas por abortos mal realizados tem recorte de classe e de raça/etnia, pois são as mulheres pobres e negras, que não têm condições de arcar com os altos custos para interromper a gravidez nas clínicas clandestinas, mas seguras e bem equipadas, que servem às mulheres das classes mais altas. Assim, acaba-se recorrendo a serviços precários ou a métodos perigosos, sem acompanhamento profissional, que muitas vezes levam à morte.

No último dia 22 de setembro, em sessão virtual, a ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), votou pela descriminalização do aborto, com a interrupção voluntária da gravidez, nas primeiras 12 semanas de gestação. Ela é a relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 e votou a favor da descriminalização do aborto pouco antes de se aposentar.

Ministra Rosa Weber. Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Após o voto, o ministro Luís Roberto Barroso solicitou um destaque, o que leva o caso para o plenário presencial e o julgamento foi suspenso, ainda sem nova data definida para que a análise seja retomada, mas o voto de Rosa Weber deverá ser preservado mesmo após sua saída. 

Foto: MST em SC

A advogada e vereadora do Rio de Janeiro (Psol), Luciana Boiteux analisa que o voto da ministra Rosa Weber é muito importante, porque é a primeira vez que se vê um voto tão avançado sobre esse tema no STF, ao mesmo tempo em que coloca para a sociedade a oportunidade de fazer um debate sobre esse assunto, com base nos marcos da democracia, da Constituição e dos direitos humanos.

“A ministra Rosa toca em vários aspectos. Eu acho que ela tem a sensibilidade de trazer a luta das mulheres reais, das mulheres trabalhadores, em especial das mulheres pobres e negras, que todos os dias acabam morrendo, vítimas de abortos inseguros ou sendo obrigadas a carregar uma gravidez sem que tenham condições socioeconômicas de ter aquela família, ainda mais naquele momento que não está adequado para ela”, afirma Boiteux.

A coordenadora nacional do Setor de Gênero do MST, Lucinéia Freitas, também elogia o voto da ministra e afirma que a pauta da descriminalização do aborto é urgente e de interesse de todas as mulheres trabalhadoras do campo e da cidade, “principalmente porque são as mulheres pobres as mais impactadas por esse processo, são as que mais morrem”. Ressalta ainda para a necessidade de tratar essa questão, não a partir de dogmas morais ou religiosos, mas como um problema de saúde pública que tem matado muitas mulheres no país, “já que não é a criminalização que impede as mulheres de realizarem a interrupção voluntária da gravidez”.

Como afirma a ministra Rosa Weber, “a criminalização do ato não se mostra como política estatal adequada para dirimir os problemas que envolvem o aborto”, ou seja, na prática, o aborto é realizado com ou sem o aval do Estado. No entanto, apesar da criminalização do aborto afetar as mulheres de todas as classes sociais, de todas sofrerem e serem impedidas de exercer o direito de escolha sobre seus corpos, são as mais pobres e vulneráveis as que mais morrem.

Luciana Boiteux considera que o julgamento pelo Supremo muito importante, mas reforça que esse debate precisa ser ampliado na sociedade. “Falar do aborto não pode ser um tabu. E falar do aborto até a 12.ª semana é falar de direito à cidadania das mulheres, direito à justiça social, a justiça reprodutiva que implica em você garantir às mulheres o direito de serem mães e o direito também de não serem mães. E também de lutar para que se reduza a morte materna”, ressalta.

“Várias pesquisas mostram que o impacto da criminalização do aborto na vida das mulheres é diferenciado conforme a raça e a classe. Mulheres brancas de classe média classe alta realizam abortos inseguros, mas abortos para os quais elas pagam e, portanto, conseguem ter acesso a esses espaços, ainda que ilegais, enquanto as mulheres negras e pobres estão nas estatísticas de morte materna. No Rio de Janeiro, o aborto é a terceira maior causa de morte materna”, denuncia Luciana.

A intenção da ação com a descriminalização do aborto é garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gravidez, de acordo com a sua escolha e autonomia, sem a necessidade de consentimento do Estado. A aprovação da descriminalização também é fundamental para assegurar aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento e o atendimento dessas mulheres no Sistema Único de Saúde (SUS).

A intenção da ação, proposta pelo PSOL, e que tramita no STF desde 2017, é garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gravidez, de acordo com a sua escolha e autonomia, sem a necessidade de consentimento do Estado, compreendendo que a criminalização do aborto até a 12ª semana de gestação viola direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade e à integridade física. 

A aprovação da descriminalização também é fundamental para assegurar aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento e o atendimento dessas mulheres no Sistema Único de Saúde (SUS). Hoje, o profissional que faz um aborto, com ou sem consentimento da gestante, incorre em crime e pode pegar pena de 3 a 10 anos de prisão.

Meu corpo, minhas regras

Manifestação cobra justiça reprodutivo pela vida das mulheres. Foto: Reprodução

A ministra Rosa Weber, em seu voto, ainda ressalta um pilar fundamental que sustenta a criminalização do aborto: a perpetuação da discriminação com base no gênero. “Fomos silenciadas! Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna”, afirma a ministra.

O Movimento Sem Terra vem construindo suas reflexões e ações nesta mesma direção. Na atualização das Linhas Políticas do Setor de Gênero do MST, em 2018, o Movimento afirma “a defesa inalienável do direito das mulheres de decidirem sobre seu próprio corpo, no que se refere a sua vestimenta, com quem e como se relacionar e sobre sua vida reprodutiva” e aponta “a necessidade de aprofundar o debate e potencializar a reflexão com a base social acerca da importância da descriminalização do aborto”.

“Entendemos que o processo de criminalização do aborto se insere num bojo de políticas misóginas que impactam a vida das mulheres no cotidiano e, por isso, precisa ser amplamente debatido com elas”, afirma Lucinéia Freitas. Nesse mesmo sentido, Luciana Boiteux reafirma a necessidade das mulheres brasileiras da classe trabalhadora se mobilizarem em coletivos, movimentos e grupos, para pressionar o STF a colocar essa pauta em votação o quanto antes e se posicionar pró-descriminalização do aborto, pois o julgamento está só começando.

“A gente precisa estar nas ruas, conversando com as mulheres, dialogando com a sociedade, mobilizando, em especial nossa semana do dia 28 de setembro, que é o Dia Latino-americano e Caribenho da descriminalização e legalização do aborto. É muito importante que a gente lembre dessas mulheres que morrem e da chance que a gente pode dar de um futuro diferente para as próximas gerações, com a descriminalização e futuramente, com a legalização do aborto no Brasil”, conclui Luciana.

*Editado por Fernanda Alcântara