Comida de Verdade

Soberania alimentar, Sem Terrinha, PNAE e a luta por educação e comida de verdade

A partir das jornadas de luta do MST deste mês de outubro, entenda a importância do PNAE voltado à alimentação saudável
Incluir as crianças no processo de preparo de refeições e discutir a importância dos diferentes grupos de alimentos pode ajudar a desenvolver hábitos alimentares positivos desde cedo. Foto: Agência Brasil.

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

Neste mês de outubro, o MST está em ação, comemorando quase quatro décadas de história com diversas atividades e mobilizações. Um exemplo é a Jornada Sem Terrinha, que desde segunda-feira (09) vem animando centenas de crianças dos acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária em todo o país. Este ano, a jornada celebra os 40 anos do MST com atividades de organização, estudo e diversão para as crianças Sem Terra.

Além disso, de domingo (15) a sexta (21), o MST também está promovendo a Jornada Nacional por Terra e Comida de Verdade para o Povo. Essa iniciativa abraça a causa da luta pela terra, reforma agrária popular, agricultura familiar e produção de alimentos sem agrotóxicos. A conexão entre essas duas jornadas se torna evidente quando o assunto é comida de verdade e as discussões sobre políticas públicas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). 

Criado em 1954, o PNAE tem como objetivo garantir o direito à alimentação adequada no ambiente escolar e contribuir para o crescimento, desenvolvimento, aprendizagem, rendimento escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis das crianças, adolescentes e jovens. O programa passou por diversas mudanças e aprimoramentos ao longo dos anos.

O PNAE beneficia 41 milhões de estudantes da educação básica pública, através da transferência de recursos para complementar o orçamento de 27 estados e 5,5 mil municípios para a compra de merenda escolar na educação básica das escolas públicas, instituições filantrópicas e comunitárias sem fins lucrativos. Uma pesquisa realizada pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) mostrou que, na região metropolitana do Rio de Janeiro, 56% dos estudantes da rede pública de ensino têm a merenda escolar como única ou principal refeição do dia.

Foto: Agência Brasil.

“O PNAE é um instrumento de grande importância por possibilitar à agricultura familiar comercializar sua produção saudável e sustentável para alimentação escolar. Reconhecendo este instrumento, as cooperativas da agricultura familiar passam a se organizar para atender as exigências e normativas apresentadas na lei do PNAE, e assim contribuir com excelentes produtos, levando para nutricionista e alimentação escolar segurança e confiança na produção do MST em compor uma alimentação saudável”, conta Maurício Zinn Klemann, do Setor de Produção do MST.

Este é um dos princípios dos acampamentos e assentamentos do MST, que têm desempenhado um papel importante na produção de alimentos saudáveis em todo o Brasil. A produção Sem Terra, que só é possível graças à luta por terras e a promoção da agroecologia, se alinha com os princípios do PNAE na busca de proporcionar uma alimentação de qualidade e nutritiva para estudantes de todo o país.

Agroecologia é o caminho

Falar de alimento saudável é trazer exemplos da produção de alimentos agroecológicos nas áreas do MST, que proporciona diversas vantagens para a alimentação escolar saudável. Batata, couve, cebola, batatinha, pêssego, ameixa, molho de tomate, salsinha, cebolinha, chuchu e banana. Esses e tantos outros são alimentos cultivados de maneira a respeitar o meio ambiente, promovendo a saúde do solo e evitando a utilização de substâncias químicas prejudiciais. Isso resulta em produtos mais saudáveis, frescos e com maior valor nutricional.

O PNAE ajuda os agricultores e as agricultoras na organização das cadeias produtivas, possibilitando a viabilidade econômica e a permanência das famílias trabalhando na terra. Foto: Maiara Rauber.

Ao longo destes 40 anos, o Movimento tem possibilitado que milhares de famílias rurais tenham acesso à terra e aos meios de produção. Maurício lembra que o MST cumpre em suas quase quatro décadas um papel contestatório em relação aos meios de produção e ao acesso à comida saudável, “pautando a importância da universalização do acesso à terra, e assim, ao alimento e à agricultura sustentável. Neste sentido, ao longo de toda sua história, consolidaram-se inúmeras áreas de produção de alimentos saudáveis produzidos a partir dos princípios da Agroecologia, livres da utilização desenfreada de insumos químicos e tóxicos.”

Ao envolver agricultura familiar a práticas agroecológicas, a produção Sem Terra vem estabelecendo esta conexão valiosa com o PNAE, contribuindo para a melhoria da qualidade dos alimentos servidos nas escolas. Do outro lado, ao apoiar a agricultura familiar e a produção agroecológica, o PNAE contribui para o desenvolvimento econômico das áreas rurais, reduzindo o êxodo rural e gerando empregos. Essas iniciativas fortalecem as comunidades locais, criando um ciclo virtuoso que beneficia a produção de alimentos e a nutrição nas escolas.

Para além disso, avançamos nos procedimentos de certificação orgânica e organização dos agricultores familiares em cooperativas produtoras que trabalham as suas colheitas até produtos de qualidade superior, certificados orgânicos, para comercializar na alimentação escolar via PNAE.” 

– Maurício Zinn Klemann

Esta demanda envolve também o debate sobre agroecologia, abordagem da agricultura que prioriza a sustentabilidade e a saúde do solo, a biodiversidade, e a produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos ou substâncias químicas prejudiciais. Nas áreas do MST, a agroecologia é uma prática central, com métodos de cultivo que respeitam o meio ambiente e promovem a saúde do solo, resultando em uma variedade de alimentos de alta qualidade, frescos e saudáveis, que promovem a nutrição e o bem-estar dos estudantes.

“São várias as áreas do MST que dão um bom exemplo de sustentabilidade, agroecologia e produção de alimentos saudáveis registrados e segurados pelos órgãos governamentais competentes.”

O debate por terra e comida de verdade

Foto: Joka Madruga/MST.

Nos últimos anos, a promoção da alimentação saudável nas escolas tem sido um tema de discussão cada vez mais relevante, recorrente e de interesse público. Essa discussão tem sido impulsionada por uma crescente conscientização sobre os desafios relacionados à saúde das crianças e dos adolescentes, bem como por esforços para criar ambientes escolares mais propícios à adoção de hábitos alimentares nutritivos.

Debater sobre a importância da comida saudável nas escolas se tornou algo cada vez mais comum e que chama a atenção de todos. Essa conversa ganhou força com as pessoas mais conscientes dos desafios de saúde que afetam as crianças e adolescentes. Além disso, movimentos populares têm realizado esforços para tornar as escolas lugares onde seja mais fácil escolher comida de verdade. 

“Tem sido discutido nas escolas a importância da alimentação para o desenvolvimento saudável de todas as faculdades de um jovem corpo humano e a importância dos alimentos serem minimamente seguros e suficientes nutricionalmente pras crianças. Neste sentido, as escolas brasileiras vem sendo orientadas por instruções normativas vindas do Ministério da Educação e do FNDE para que o cardápio da alimentação escolar seja suficiente pras crianças, contendo a diversidade nutricional demandada para elas crescerem saudáveis”, lembra Maurício.

A crescente preocupação com problemas de saúde causados pela má alimentação, como a obesidade infantil, diabetes e outras doenças crônicas, tem feito com que muitas pessoas, incluindo pais, professores, médicos e políticos, estejam se unindo para encontrar soluções e promover escolhas alimentares mais saudáveis. Atualmente, há esforços significativos por parte dos governos em níveis municipal, estadual e federal para promover a alimentação saudável nas escolas.

“Nesta dinâmica, as nutricionistas responsáveis pela alimentação passaram a elaborar os cardápios a partir das propostas sugeridas nas novas normativas, que proíbem na alimentação escolar produtos ultraprocessados e açucarados e sinaliza que a dieta seja com ingredientes naturais e integrais, contenha diversidade de frutas e vegetais de acordo com os costumes de cada território.”

Leite produzido em assentamentos do MST no Paraná. Foto: MST no PR

Uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e publicada em parceria com o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), aponta que a verba gasta com processados e ultraprocessados nas escolas públicas municipais diminuiu 10,5% em 4 anos; média nacional de gastos com esses produtos foi de 24% em 2019.

“Trazer tais questões à luz e ensiná-las pras crianças é trabalhar com a certeza de que no futuro teremos um planeta saudável para além dos nossos filhos, para todas as gerações futuras conscientes da importância da preservação do meio ambiente através da consciência do consumo alimentar.”

Além disso, muitas regiões têm implementado políticas específicas, como a proibição de venda de alimentos não saudáveis em escolas e a criação de programas de educação nutricional. Essas iniciativas buscam criar ambientes escolares que estimulem a escolha de alimentos mais nutritivos.

Luta e desafios

Para que as melhorias na alimentação saudável sigam avançando, é importante que as pessoas estejam mais conscientes. Na Jornada Sem Terrinha, uma das pautas que o MST coloca como fundamental é o envolvimento das crianças e adolescentes do Movimento em diferentes atividades, afinal, “lugar da infância Sem Terra é nos diferentes espaços do Movimento”.

Foto: Renan Mattos.

 “A Jornada Sem Terrinha é o meio pelo qual crianças de vários territórios do Brasil tem a oportunidade de conhecer a cadeia de produção de alimentos saudáveis, tendo acesso prático e didático aos meios de produção e de como devem ser as relações entre o agricultor que cultiva a terra com a natureza e a biodiversidade”, lembra Maurício. Ele enumerou alguns desafios do cotidiano escolar, considerando a realidade apresentada em conversas com nutricionistas de vários municípios:

1. O hábito comum do preparo por efeito da praticidade de ultraprocessados e alimentos açucarados nas cozinhas escolares, de modo a gerar certa resistência, em alguns locais, para implementar um novo cardápio;

2. A baixa aceitabilidade dos alimentos saudáveis e sem açúcares pelas crianças que possuem o paladar acostumado aos mesmos, consequência do fácil acesso a estes produtos açucarados e ultraprocessados por comodidade e costume no ambiente familiar, demandando neste ponto a importância de uma conscientização que chegue até os familiares responsáveis pelas crianças;

3. O alto custo de aquisição de alguns alimentos para alimentação escolar, evidenciando outro problema associado ao baixo repasse de recurso para os departamentos da alimentação escolar, e fomento ao desenvolvimento e organização social de agricultores familiares locais nos territórios;

4. Em alguns locais há conflitos de interesses, pois há nos departamentos públicos pessoas que incentivam o consumo de ultraprocessados nas escolas por interesses pessoais de agentes públicos, principalmente nos departamentos responsáveis pelas compras institucionais;

5. Interesse pontual do próprio município em buscar na agricultura familiar ações conjuntas para produção e desenvolvimento de alimentos saudáveis para serem adquiridos para alimentação escolar.

Atualmente, o PNAE atende milhões de estudantes em escolas de todo o Brasil, contribuindo para a promoção da alimentação saudável e a erradicação da fome, ao mesmo tempo em que impulsiona o desenvolvimento agrícola e econômico das regiões. Além disso, o programa tem se adaptado a novos desafios, como a inclusão de cardápios adequados para pessoas com restrições alimentares e a promoção de uma alimentação cada vez mais balanceada e nutritiva, livre de agrotóxicos.

Nos últimos anos, o programa sofreu diversos ataques nos governos Temer e, principalmente, Bolsonaro. Foram cinco anos sem nenhuma correção nos valores, o que gerou defasagem e crise na merenda escolar. O governo Lula reajustou os repasses para o programa em 39%. A estimativa é de que sejam investidos R$ 5,5 bilhões de reais no programa este ano.

Para além dos debates populares sobre alimentação escolar, o Movimento Sem Terra tem como orientação em seus espaços que, para realmente proporcionar comida de verdade, é fundamental pensar no tipo de produção que está sendo realizada. Trazer o debate sobre todo o ciclo do alimento, desde o acesso à terra, o acesso à água e a forma como está sendo produzido e comercializado. E assim, seguimos reiterando a alimentação escolar saudável como um direito!

*Editado por Maria Silva