Aromas de Março

Não vão mais nos roubar o prazer!

Confira a coluna Aromas de Março deste mês, feito pelas Mulheres Sem Terra
Arte: @dracoimagem

Por Danielle Morais
Da Página do MST

No mês em que reafirmamos a importância da Consciência Negra e do enfrentamento às violências contra as mulheres para os processos emancipatórios da humanidade, nos colocamos a seguinte pergunta: como anda seu prazer? E o que o direito ao gozo, ao livre exercício da sexualidade, tem a ver com a emancipação das mulheres?

Ao longo dos séculos, uma narrativa que limitava o prazer feminino e restringia o direito das mulheres de explorar seu próprio corpo foi tecida nas teias da história, influenciada pela colonialidade e pelo cristianismo com o objetivo de controlar corpos femininos e seus direitos sexuais e reprodutivos. Após a instituição da propriedade privada, da constituição de sociedades patriarcais, a expansão do cristianismo, corpos femininos foram controlados com objetivos econômicos e de poder.

Durante os tempos coloniais, senhores e senhoras de escravizados impuseram suas próprias normas, frequentemente enraizadas no puritanismo cristão, tornando o corpo de mulheres negras objeto sexual aos interesses masculinos, fosse à reprodução de mais mão de obra ou para aplacar os interesses da carne. Desta forma, o corpo feminino foi frequentemente sujeito à objetificação e ao controle, perpetuando alguns aspectos da desigualdade entre os gêneros.

O cristianismo, em muitas instâncias, propagou a visão de que a sexualidade e sua relação com o corpo era pecaminosa e impura, reservando a castidade e a modéstia como virtudes inquestionáveis para as mulheres. Esse pensamento serviu para subjugar as mulheres e reprimir seus desejos e necessidades sexuais.

Além disso, a colonialidade impôs uma hierarquia social e cultural que desvalorizou as tradições e práticas sexuais de culturas indígenas e africanas, muitas das quais reconheciam a sexualidade feminina como um aspecto essencial da identidade e do bem-estar, para além de energia criadora da vida. 

Em alguns exemplos, a Kunyasa do povo ruandense, no kama sutra indiano, a relação com o sexo e o prazer é muitas vezes vista com uma reverência à humanidade e à conexão espiritual. O prazer não é considerado tabu, mas sim uma parte natural e bela da experiência humana. Muitas culturas africanas têm tradições que celebram a intimidade e a sexualidade como uma manifestação da vida e da fertilidade.

Em vez de repressão, há um foco na comunicação aberta e no respeito mútuo entre parceiros. O prazer é entendido como algo que pode fortalecer os laços entre as pessoas e enriquecer a experiência humana. Essa visão natural do sexo e do prazer é uma lição valiosa que nos lembra da importância de desmistificar e celebrar a sexualidade como um aspecto fundamental de nossa humanidade, inclusive em relação ao amor próprio.

O resultado desse longo legado é uma persistente desigualdade de gênero quando se trata de expressar a sexualidade e entender o próprio prazer, também a nível científico, em que as pesquisas sobre o prazer feminino ainda são muito poucas e recebem pouco investimento. Em comunhão a isso, as mulheres, muitas vezes, são ensinadas a se conformar com normas que restringem sua agência sobre seus corpos e desejos, sendo rotuladas negativamente quando o fazem, enquanto os homens são frequentemente incentivados a explorar e buscar o prazer sem impedimentos, algo visto como natural e inerente ao masculino, usando também os corpos femininos para satisfazer seus desejos. 

A autora americana Audre Lorde aprofundou ainda mais a relação – também – do prazer com o agir e apontou “Os usos do erótico” como recurso enérgico (e de tesão) para fomentar a agência de mulheres negras, profundamente pautado na relação feminina e espiritual. Tesão, aqui, não de forma sexual, apenas, mas como pulsão de vida; também como tesão, porque versa sobre tudo aquilo que envolve nossos sentimentos indizíveis, mas que nos movem. E a carne também grita desejo. 

“Fomos ensinadas a desconfiar desse recurso [o erótico], que foi caluniado, insultado e desvalorizado por pela sociedade ocidental. De um lado, a superficialidade do erótico foi fomentada como símbolo da inferioridade feminina; de outro lado, as mulheres foram induzidas a sofrer e se sentirem desprezíveis e suspeitas em virtude de sua existência. Daí é um pequeno passo até a falsa crença de que, só pela supressão do erótico de nossas vidas e consciências, podemos ser verdadeiramente fortes. Mas tal força é ilusória, porque vem maquiada no contexto dos modelos masculinos de poder” (1984).

O tabu é tamanho que até para escrever, experienciando ou não, muitas mulheres recorreram a pseudônimos para abordar assuntos que versem sobre tesão, experiências, desejos, a exemplo de Nedjma, autora de A Amêndoa, onde a mesma relata o despertar sexual de uma mulher no mundo árabe, envolto em poder religioso e masculino. 

Para desafiar essas normas opressivas, é fundamental reconhecermos e dialogarmos sobre como as visões de gênero e sexualidade foram construídas e sendo alteradas ao longos dos séculos, mas tão importante quanto, é estarmos abertas para ouvir, conhecer, sentir e tocar nossos próprios corpos. Frequentemente vimos mulheres reclamar sobre a falta de perícia masculina e conhecimento da anatomia e zonas erógenas femininas, mas a verdade é que muitas de nós também não conhece o próprio corpo. Uma pesquisa lançada em 2020 apontou que apenas 36% das mulheres atingem o orgasmo durante o sexo, por outro lado, uma pesquisa realizada com duas mil mulheres em 2023 apontou que 71% das mulheres se masturbavam diariamente.  

O prazer feminino é um território de descobertas e autoconhecimento que, por muito tempo, foi cerceado pelas amarras do machismo e do pudor impostos pela sociedade. No entanto, é uma jornada com potencial incrivelmente prazeroso, que nos convida a explorar a nossa própria anatomia, a conhecer o nosso corpo, a sentir e a entender o que nos faz vibrar, o que evoca nosso tesão, muitas vezes, desconhecido. Tocar o próprio corpo é um ato de amor-próprio, uma expressão de autonomia e um caminho para fortalecer a relação com o próprio corpo. O machismo e o pudor tentaram controlar e reprimir essa busca pelo prazer, mas as mulheres estão cada vez mais se libertando dessas amarras, reivindicando o direito de se sentirem bem consigo mesmas, de celebrarem a sexualidade e de se conectarem com suas próprias vontades e desejos.

Conhecer o nosso próprio corpo, despertar o tesão e abraçar a sensualidade é um caminho de amor-próprio e de reconexão com a nossa essência, com o nosso próprio poder. Nesse percurso de descobertas e despertares, construímos uma jornada de confiança e autonomia, onde o nosso prazer se torna um farol a iluminar nossos sorrisos e deixar a pele mais bonita. Que possamos continuar a desafiar os estigmas, a quebrar os tabus e a abraçar a dádiva da natureza que é o potencial ilimitado de sentir prazer do corpo, celebrando a capacidade única de cada mulher de se conectar consigo mesma, de se amar e de se permitir a plenitude do gozar. 

Agora, eu te pergunto: como anda seu prazer? 

Confira dica de leitura abaixo:

**Editado por Fernanda Alcântara

*Danielle Morais é gente, mas também bacharel em Serviço Social, mestra em Migrações, Inter-etnicidades e Transnacionalismo pela Universidade Nova de Lisboa, articuladora política em Criola, mãe, escritora e macumbista.