Soberania Alimentar

Theodora Pius: “Eles querem monocultura, nós queremos justiça e a democratização dos sistemas alimentares”

Em entrevista, Integrante da MVIWATA e da Marcha Mundial das Mulheres na Tanzânia discute as lutas camponesas no país
Theodora Pius. Foto: Reprodução

Por Bianca Pessoa e Iolanda Depizzol*
Da Capire

Rede Nacional de Grupos de Pequenas Agricultoras e Agricultores da Tanzânia [Mtandao wa Vikundi vya Wakulima Tanzania – MVIWATA] integra a Via Campesina e a Marcha Mundial das Mulheres na Tanzânia. Desde 1993, a organização camponesa atua na questão de direitos de pequenas e pequenos agricultores e camponesas e camponeses do país. Conversamos com Theodora Pius, presidenta da MVIWATA e militante da Marcha Mundial das Mulheres na Tanzânia, sobre a ação de empresas transnacionais e agendas políticas capitalistas no continente africano e em seu país.

Sobre a organização, Theodora explica que “o movimento começou em 1993 para se unir a outras agricultoras e agricultores do país. Os desafios estavam voltados sobretudo para a comercialização e as políticas que estavam sendo promovidas, que não eram favoráveis aos agricultores e às agricultoras”. No ano de 2023, a MVIWATA celebra 30 anos de existência.

Theodora também compartilhou soluções propostas pelo campesinato do país e falou sobre o significado de construir o feminismo camponês e popular. Esta entrevista, concedida durante a Conferência Dilemas da Humanidade, foi produzida coletivamente por Capire e pelo Brasil de Fato. Leia, assista e ouça a entrevista abaixo:

África é utilizada como uma fonte de terras e recursos a serem explorados por corporações internacionais. Você pode falar sobre como isso está afetando o continente e, mais especificamente, a Tanzânia?

Não é possível falar do contínuo acaparamento de terras em África sem levar em consideração o que vem acontecendo no mundo. No que chamam de crise alimentar e financeira global de 2007, vimos o movimento do capital do Ocidente direcionado à agricultura e à terra. Nesse período, houve uma série de planos de investimentos fantasmas feitos sob o nome de “biocombustíveis”. A Europa precisava transformar [sua matriz energética] e precisava de outra fonte de combustível, então muitas terras foram oferecidas para investidores para se plantar aquelas árvores que oferecem biocombustíveis. Esses projetos fracassaram, inclusive na Tanzânia. Mas também nesse período, grandes empresas do agronegócio vieram para África em busca de terras, tomando terras, porque África tem um mercado imenso e incrível para seus produtos, sejam pesticidas ou fertilizantes, sementes híbridas, tudo. Anunciaram que África tem muita terra agricultável, terras vastas e desocupadas, então chamaram todo mundo para vir investir aqui.

Um exemplo é a Aliança para a Revolução Verde em África (Agra). O alvo dela são as populações africanas, e isso fez parte das estratégias para manter África à mercê do capital quando se trata de nossa agricultura. Eles chegaram com todo tipo de falsas promessas, como chamamos. Disseram que se a Agra começasse a funcionar, não haveria mais insegurança alimentar em África, a produtividade aumentaria, todo tipo de promessa. Essa aliança nasceu na Europa, mas chegam a dizer que é uma iniciativa dos africanos para os africanos. Foi outro desastre que acabou consolidando o que já se havia iniciado. A chegada da Agra facilitou todos esses grandes projetos.

Além disso, hoje todo o mundo começou a falar a língua das mudanças climáticas. Então eles mudaram de “viemos com a solução” para “identificamos uma alternativa”, mas falam com base no que querem falar, e não necessariamente na linguagem da população. As mudanças climáticas estão tendo muitos efeitos sobre as africanas e os africanos, e aí outro movimento de acaparamento de terras surgiu, tendo África como alvo. As pessoas estão vindo para África, tomando florestas nativas e naturais pelos créditos de carbono. Todo mundo hoje está vendendo os chamados títulos verdes. Todo dia acontecem coisas novas e eles vão acumulando mais problemas sobre os que já existem.

O governo da Tanzânia começou recentemente um novo programa chamado “Construindo um amanhã melhor: iniciativa de jovens e mulheres para o agronegócio”. Esse programa foi denunciado pelos movimentos como uma falsa solução para os problemas da juventude camponesa. Como o programa ameaça camponesas e camponeses, e como o movimento está se organizando para combatê-lo?

Isso também faz parte dos solucionismos técnicos. Querem tentar aumentar a participação da juventude e das mulheres na agricultura, enquanto todo o mundo hoje fala que as mulheres formam a maioria das pessoas que trabalham na agricultura. Além disso, a juventude já está na agricultura. Talvez seja necessário ver como é possível facilitar o acesso à terra para essa juventude, como ela pode ter os recursos necessários para cultivar, como é possível facilitar a comercialização do que é produzido. A juventude existe e já está nas zonas rurais. Então o governo lançou esse “Construindo um amanhã melhor” e o que se fez até agora foi só pegar e reunir terras para os investidores tomarem. Também querem recanalizar o padrão de produção tanzaniana. Nossa agricultura é muito rica e diversa, mas essa não é a receita que a Agra e outros querem. Eles querem a monocultura. Resumindo, é um projeto de acaparamento de terras.

Quais são as soluções e o caminho para a justiça e para a democratização dos sistemas alimentares? Como é possível que isso se baseie na agroecologia e no feminismo? Em primeiro lugar, queremos que o alimento saia do mercado. O grande agronegócio olha para os alimentos como meros produtos que podem ser vendidos. É por isso que querem produzir muitos alimentos baratos: querem garantir que você não tenha opção de escolher o que quer comer. Se o assunto é a democratização do sistema alimentar, estamos falando de estabelecer mecanismos para garantir que as agricultoras e os agricultores tenham liberdade de escolher o que querem cultivar, e também garantir que o mecanismo que utilizarem na produção de alimentos seja seguro, seja qual for. Não podemos vincular as pessoas agricultoras a contratos. Elas já têm conhecimentos e mecanismos para fazer as coisas funcionarem e garantir que todas e todos nós tenhamos alimentos suficientes. Hoje estamos falando sobre dobrar ou triplicar a produtividade, mas essa produtividade está sendo dobrada às custas das vidas das agricultoras e dos agricultores.

Democratizar o sistema alimentar significa estabelecer mecanismos para garantir que as consumidoras e os consumidores tenham direito de escolher o que querem comer e consumir alimentos seguros. É uma questão de relações de poder, o que significa devolver esse poder para quem produz o alimento. É preciso ter esse poder de decidir a segurança com que se quer produzir. O poder das sementes e das feiras de alimentos nos conecta como pessoas da mesma cultura. Nossas vidas e as formas de organização devem enfatizar o compartilhamento de sementes e outros mecanismos que forem acordados entre nós, como pessoas da mesma comunidade.

O que a MVIWATA vem fazendo para combater essas políticas e agendas capitalistas no país?

A constituição da MVIWATA de 2018 define como pequeno(a) agricultor(a) qualquer pessoa que tem uma ligação especial com a terra. Com essa definição, as pessoas indígenas, agricultoras que estão envolvidas na produção de determinada cultura, pessoas que atuam na pesca artesanal, pastoras e pastores, pessoas que vivem nas florestas e outras que trabalham em zonas rurais integram a organização. Atualmente, nossas principais formas de luta incluem o esforço de garantir que as zonas rurais tenham serviços sociais básicos e eliminar a relação que é feita entre o campesinato ou a pequena agricultura e uma ideia de atraso, rejeitando a visão de que todo mundo precisa avançar para a grande produção ou o agronegócio.

Contestamos o sistema alimentar existente por meio de mecanismos como a agroecologia e a soberania alimentar, garantindo que a produção de alimentos seja centrada nas necessidades, nos direitos e na cultura da população. Lutamos para garantir direitos agrários para pessoas camponesas e pequenas agricultoras e também para garantir a produção e distribuição suficiente de alimentos para todas as pessoas.” Theodora Pius

MVIWATA, 2021

Outra área em que estamos atuando é a justiça de gênero. Estamos olhando para as mulheres e a juventude com a ideia de feminismo camponês desenvolvida pela Via Campesina como forma de olhar para as mulheres camponesas de forma holística nas zonas rurais. Também trabalhamos com a ideia de justiça econômica. Criamos cooperativas de agricultoras e agricultores, uma instituição financeira de agricultoras e agricultores, e mecanismos da economia solidária entre agricultoras e agricultores. Além disso, também abrimos recentemente um mercado agroecológico em Morogoro.

Como as mulheres da MVIWATA constroem o feminismo camponês?

Alguns anos atrás, as mulheres da Via Campesina começaram a se perguntar quem elas eram, quais eram suas lutas e se suas lutas como mulheres camponesas seriam as mesmas de outras mulheres. Conforme nos movimentamos, reconhecemos o papel central das mulheres na MVIWATA. As primeiras pessoas que iam às vilas para chamar outras para entrar na organização eram mulheres. A partir daí, a organização começou a cultivar a vantagem de que, desde o início, temos mulheres. Não precisamos sentar e pensar em formas e estratégias de trazer as mulheres para o movimento.

Mas o que é que queríamos como mulheres? Todo mundo está falando de feminismo. O que é feminismo para nós? E como é o feminismo para nós? Talvez as pessoas pensem que as mulheres camponesas não saibam o que é feminismo ou sequer conhecem a palavra. Perguntávamos em suaíli: “Você conhece ‘feminismo’?” E elas respondiam: “Que palavra é essa? Nunca ouvi falar.” E aí eram dados alguns exemplos e elas diziam: “Mas nós estamos fazendo isso nas nossas vilas, então somos feministas”. Perguntamos: “O que é o feminismo para você?” E elas respondem: “Para nós, feminismo significa acesso a sementes, à terra, à agua, porque hoje a água está sendo mercantilizada”.

*Traduzida do inglês por Aline Scátola/Edição por Helena Zelic