Exemplo de Luta

Artista plástico Sérgio Ferro envia carta sobre a arte dos 40 anos do MST

O artista e professor brasileiro, que vive na França e pintou o quadro para o aniversário, afirma que o MST é a demonstração concreta de uma alternativa possível hoje
Quadro de Sérgio Ferro ilustra os 40 anos do MST. Foto: Janaina dos Santos

Da Página do MST

O pintor, desenhista e professor brasileiro, que vive na França há mais de 30 anos, Sérgio Ferro Pereira, pintou o quadro para o aniversário de 40 anos do MST e se impressionou, com o que ele chamou de “o poder simbólico e a força mítica da cruz”, como parte dos processos de lutas e resistências dos trabalhadores/as Sem Terra ao longo desses 40 anos. “…Parece que vocês criaram uma variante inédita em dois mil anos de existência da cruz cristã”, afirma.

Confira a carta na íntegra:

Caros camaradas do MST, bom dia. 

Em primeiro lugar, quero saudar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra na festa de seus 40 anos. Num mundo que parece destinar-se ao desastre final, o MST oferece a demonstração concreta, realista, justa e cada dia mais bonita de uma alternativa possível hoje. Creio que nenhum outro movimento social atual no mundo pode ser comparado ao de vocês quanto à abrangência de seu abraço aos descartados pela fúria do capitalismo senil, à dinâmica positiva de sua atuação e, sobretudo, à coragem ética e fraternal de sua prática quotidiana. 

Quis oferecer a vocês um pequeno testemunho de minha admiração e respeito. Pensei em utilizar um dos mais antigos símbolos enraizados na tradição do MST, a cruz já presente nos tempos da Romária Conquistadora da Terra Prometida, organizada pela Comissão Pastoral da Terra. Mas, mesmo assim ela já possuía uma história. Na legenda de uma foto no livro de Mitsue Morissawa, A História da Luta pela Terra e o MST (Editora Expressão Popular, 2008) podemos ler, a respeito desta cruz alguns anos antes, em 1981): “No acampamento, a cruz era de início, fincada no chão, mas passou a ser escorada. Cada escora simbolizava um apoio recebido, os panos brancos, as crianças que morriam ali” (p. 126). No capítulo sobre “A mística dos Sem Terra” volta a definição desta cruz: “Na Encruzilhada Natalino, a cruz simbolizava em si mesma a fé cristã que unia os Sem Terra num momento crucial de sua luta. As escoras que lhe foram sendo postas representavam os apoios recebidos de instituições, entidades e pessoas de fora do movimento. Os lençóis usados pelas crianças mortas pela fome e pelo sofrimento no acampamento eram um protesto contra as autoridades. Fé, esperança, dor e ânimo político estavam reunidos naquela cruz” (p. 209). A cruz adquiriu força mística extraordinária. Neste mesmo acampamento da Encruzilhada Natalino, até os soldados da ditadura em 1980/81 que o cercaram e atacaram não ousaram desrespeitar a cruz com a qual os acampados avançaram contra eles. O cerco foi rompido sem resistência (p. 128). 

Faço estas diversas citações para lembrar que a cruz, como o MST, se adaptou e adapta permanentemente às diversas condições de luta. No 6o Encontro Nacional de 1991, o “MST colocou em discussão o imperativo da constante auto-superação e do enfrentamento de novos desafios” (p. 147). A cruz é uma prova desta constante transformação. 

Pinto lentamente, retido por dores frequentes em minha mão de 85 anos de idade. Por esta razão o quadro para os 40 anos do MST permaneceu algum tempo em meu ateliê e várias pessoas puderam vê-lo. Todas ficaram impressionadas com o poder simbólico e a força mítica da cruz que vocês desenvolveram. Faço análise com um psicanalista padre (os vestígios da tortura comandada pelo Ustra voltam de tempos em tempos). Ele viu o quadro pronto e teve a mesma impressão. Não conhecia esta variante da cruz do Cristo. Sondou outros padres e eles também não a conheciam. Não posso afirmar categoricamente, mas parece que vocês criaram uma variante inédita em dois mil anos de existência da cruz cristã. Ele, aliás, pretende escrever ou fazer escrever a jornalistas amigos seus sobre esta cruz que o maravilhou.

Mas poucos perceberam o simbolismo dos lençóis brancos que eu tinha representado num primeiro esboço. Isto me inquietou. O avanço extraordinário do MST, seu prestígio crescente e, sobretudo, a obtenção de sua soberania alimentar, deve provocar, espero, a diminuição das mortes de crianças nas ocupações e assentamentos. Seria absurdo que essa vitória do movimento levasse ao abandono pouco a pouco da solidariedade. Lembro que a cruz cristã tem o mesmo valor e significado com ou sem representação de Jesus. Para mim, mais ainda que o hino ou a bandeira do MST, a cruz de vocês, com ou sem lençóis, deveria tornar-se também um símbolo permanente, e não somente “circunstancial” (ver p. 209).

A cruz, tal como a transformaram, ganhou sentido mais amplo. Tornou-se a expressão perfeita da teologia da Libertação. “Haverá sempre Simões de Cirene, que serão ou pessoas, ou classes inteiras, prontas a se encarregarem da cruz de Jesus, que sofre e se encontra no ponto de sucumbir na vida de milhões de trabalhadores (…). A paixão de Cristo continua a ser completada por cada geração que terá seus mártires cujo sangue continuará a gritar na direção do céu para o advento do Reino de Deus” (Leonardo Boff, Chemin de Croix de la justice, Les Editions du Cerf. 1984, pp. 33 e 72). A cruz do MST encarna hoje a esperança solidária da maioria esmagadora dos sem… “

Com meu abraço. 

Sérgio Ferro, 22/O1/2024.

*Editado por Solange Engelmann