Reforma Agrária

O que a justiça social do Brasil deve ao MST nos seus 40 anos

O MST é um movimento popular ao qual a justiça social do país, como prevista no preâmbulo da sua própria Constituição, deve muito
Arroz é o principal produto do modelo agroecológico dos assentamentos do MST no RS. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Por Jacques Távora Alfonsin (*)
Do Brasil de Fato

No fim deste janeiro de 2024 estão sendo celebrados, no Brasil inteiro, os 40 anos de vida do movimento popular MST, nascido de uma indignação ético-política de gente pobre sem-terra, inconformada com as causas da injustiça social que caracteriza a nossa realidade há séculos, violando direitos humanos fundamentais de grande parte do seu povo ao acesso à terra rural e urbana. 

Disposto a enfrentar dois outros poderes muito superiores ao seu, a ditadura da época em que foi criado e a concentração ilegal e injusta desse bem de vida em latifúndios, armados de violência e fortemente apoiados por uma elite socioeconômica capitalista, firmemente ancorada na produção, interpretação e aplicação de leis por ela impostas, por meio de Poderes “públicos” (?) que lhe são cúmplices, aquele povo pobre resolveu organizar-se e lutar por sua vida, dignidade e cidadania. 

Passou a ocupar terras, privadas ou públicas, cujos direitos de propriedade ou posse estivessem traindo a própria natureza desse bem, descumprindo sua função social ou em desuso, à espera da especulação que aumentasse seu preço, quanto maior se mostrasse a necessidade alheia de acesso a ele. Em vez de dinheiro, pagou com o sangue de muitos mártires da causa pela qual existiu e ainda existe vivo, forte e atuante. Nas décadas de oitenta e noventa do século passado e em grande parte da primeira década deste século vinte e um, sofreu forte repressão dos tais poderes públicos, especialmente de um poder Judiciário de notável fidelidade a um direito por ele aplicado de modo aparentemente imparcial, mas notavelmente classista. 

Herdeiro de uma tradição jurídica alienígena, colonialista e conservadora, que não hesitava em usar da lei como álibi suficiente para não ser acusado do crime de negar a justiça presente nos direitos que motivavam as ocupações de terra, esse poder serviu de braço dado ao que, de pior, o pretexto de “aplicar a lei” justifica preferir o argumento de afirmação da autoridade (com a fama que o uso da violência lhe empresta de respeito e temor, como se fosse sempre “legal e justa”) à autoridade do argumento. Até a alimentação e a moradia, como os direitos mais indispensáveis à vida, inerentes à própria terra e que entraram, por emendas, na própria Constituição Federal de 1988 (artigo 6º), sempre ficaram esquecidos pelo Poder Judiciário, quando chamado a julgar os conflitos gerados por essas ocupações.  O mesmo aconteceu, na grande maioria das vezes, com o descumprimento da função social da propriedade ou da posse da terra ocupada.   

Indiferente às notáveis mudanças das relações sociais criadas pela modernidade, o crescimento vertiginoso da pobreza e da miséria que ela criou, por força de um modelo econômico que se tem como único garante de “progresso”, as execuções das reintegrações de posse de terras ocupadas pelos sem-terra, passaram a ocorrer em todo o país. Tanto mais frequentes e aplaudidas pela burguesia, quanto pela mídia que ela sustenta, o horror da violência empregada, em obediência a essas decisões judiciais, nunca oferecia chance de ser comparado com o escândalo das causas mais do que legítimas e justificadas das ocupações. A importante diferença jurídica entre a ocupação e a invasão, essa sim própria do esbulho possessório, nunca aparecia nesses julgados.  

O mesmo vale para o nosso Poder Legislativo, um exemplo ilustrando bem esse fato. É certamente impossível que a extensão criminosa da grilagem de terras, da superposição de registros cartoriais de imóveis, da invasão das áreas de quilombolas e indígenas por grandes empresas do agronegócio e da mineração, do trabalho escravo, do envenenamento criminoso da terra e dos rios pelos agrotóxicos, essas tragédias que afetam não só o país como o meio ambiente de todo o mundo, por piores, injustos e ilegais efeitos que provoquem, abram chance à convocação de uma CPMI, capaz de enfrentá-las e responsabilizá-las penal e civilmente. Para o MST, entretanto, não faltou apoio a uma comissão desse tipo, proposta pela bancada ruralista do Congresso. O fiasco e a vexatória inconclusão daquele trabalho parlamentar, durante o ano passado, entraram para a história do nosso parlamento como uma vergonhosa tentativa de, em utilizando atabalhoadas, despropositadas e despidas de prova as acusações feitas contra o MST, a tal CPMI, ao contrário do que visava, acabou levando o Movimento a ser muito mais conhecido, legitimado e apoiado do que ele já era antes da instauração daquela MI (má intenção).

Assim, estão sendo cada vez mais conhecidos os méritos do   modelo de organização e militância de defesa de direitos do povo pobre que o MST criou, nesses quarenta anos. Não só os da produção de alimentos saudáveis e abundantes das suas cooperativas que, com seus caminhões abarrotados e suas cozinhas de acampamento fez chegar às famílias mais afetadas pela pandemia da covid e pelas enchentes que vitimaram milhares de famílias brasileiras no ano passado. Mas também pela motivação recriada e renovada de outras organizações populares se mobilizarem em defesa dos seus direitos, como os sindicatos de trabalhadoras/es rurais, as pastorais sociais das igrejas como a CPT, por exemplo, os movimentos de justiça e direitos humanos, o MTST, de sem tetos, o MMC, de mulheres camponesas, o MAB, de atingidas/os por barragens, o MNLM, de luta pela moradia, a UNMP (União Nacional por Moradia Popular) e outras a quem o Movimento frequentemente se une em defesa de direitos humanos fundamentais, especialmente sociais. 

Oxigenou direta e indiretamente, por seu exemplo, ONGs e comissões de defesa de direitos humanos de grande abrangência e necessidade de atuação, como as da OAB e do IAB, em diversos Estados da Federação, a RENAP, de advogadas populares e a Terra de Direitos, entre muitas outras organizações.  

Como aconteceu, aliás, no julgamento da ADPF (Arguição de descumprimento de preceito fundamental) 828, com a prorrogação sucessiva de um verdadeiro “despejo zero”, imposto pelo Supremo Tribunal Federal, durante todo o período da pandemia de covid que se abateu sobre o país, acrescentada logo depois pela Resolução 510, de 26 de junho do ano passado, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Ali apareceu bem retratado o “direito conquistado na rua” pelas ocupações de terra promovidas pelo MST. 

A dita Resolução criou Comissões Regionais de soluções fundiárias, no âmbito de cada Tribunal do país, “para o tratamento das ações que envolvam “despejos ou reintegrações de posse em imóveis de moradia coletiva ou de área produtiva de populações vulneráveis”, prevendo uma série de cautelas conciliatórias prévias para disciplinar esses tipos de ação judicial, onde é visível o cuidado de se impedir o uso violento da força pública que se utilizava amiúde anteriormente, tristemente famoso pelo que provocou de mortes e lesões de famílias rés dessas ações. 

O mesmo CNJ, ainda por efeito do que o STF já decidira na ADPF 828, encaminhou consulta ao jurista Georges Abboud, doutor e livre docente de Direito Constitucional na PUC de S. Paulo, sobre “qualquer possibilidade de acordo em jurisdição constitucional, no bojo da ADPF 828 em tramitação perante o Supremo Tribunal Federal.” O seu parecer, datado de 7 de dezembro de 2023, pode ser lido, na íntegra, na edição do Brasil de Fato de 29 deste janeiro. Entre outras observações pertinentes a essa matéria, uma grande surpresa: além de usar os dados de fato fornecidos pelo IBDU (Instituto Brasileiro de Direito urbanístico) como “um dos coordenadores da campanha Despejo Zero”, segundo os quais havia no Brasil, no fim do ano passado, 1.702 conflitos mapeados, 40.643 famílias despejadas e 281.677 famílias ameaçadas, reconheceu ainda o parecerista: 

“A presente ação foi ajuizada para responder às demandas de diversas entidades relacionadas às questões fundiárias no Brasil, em especial o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o Movimento Sem terra (MST), conhecido pelas ações em prol da defesa do direito à moradia urbana e rural. Em conjunto, o MTST e MST são sabidamente responsáveis pela promoção de diversas ações que visam promover o bem comum a partir da utilização de terras até então improdutivas sem qualquer função social.” {…} “O MST é responsável por uma intrincada cadeia produtiva que congrega, conforme se observa por seu website, 185 cooperativas,120 agroindústrias, 1.900 associações, 400.000 famílias assentadas, e 70 mil famílias acampadas. O Movimento é responsável pela produção de diversos gêneros alimentícios em mais de uma dezena de estados brasileiros. MTST e MST são apenas dois exemplos da fecundidade das ações espontâneas tomadas pelos integrantes de diversas ocupações coletivas que podem contribuir para a implementação das políticas públicas que necessárias à concretização dos princípios constitucionais elencados pelo autor da ação, e isso não só a partir de uma regulamentação a ser fornecida pelo STF  em sede de controle abstrato de constitucionalidade como, também, mediante acordos em demandas concretas nas quais são discutidos conflitos fundiários específicos.” 

O MST não tem defeitos? Suas lideranças reúnem-se com seus integrantes de cada estado para detectá-los e corrigi-los, como todas as organizações humanas deveriam fazê-lo sem exceção, já que nenhuma é perfeita. Por isso, o certo é que, se o balanço do inspirado, planejado e executado pelo MST nesses 40 anos, for feito à luz dos seus resultados, em defesa da terra e do direito humano fundamental de acesso à ela, o saldo lhe é altamente positivo e encorajador para continuar crescendo e agindo. Longa vida, portanto, para um Movimento Popular ao qual a justiça social do país, como prevista no preâmbulo da sua própria Constituição tanto deve, justamente pelos efeitos concretos com que ele garante promovê-la.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko

** Artigo também republicado pelo Sul 21