Coluna

Entre telas e esculturas: a arte de defender o que não deve ser negociável

"Esse é o papel da arte em nossas vidas: nos fazer questionar, pensar, refletir"
Imagem: reprodução

Por Iris Pacheco*
Do Brasil de Fato

Tive a oportunidade de visitar três lugares que me possibilitaram o acesso à arte africana zambiana. O Museu Nacional de Arte em Lusaka, uma galeria mantida por uma família e a Galeria Lechwe Trust – criada como uma espécie de fundação que apoia artistas locais.

Foi nessa última que encontrei a artista Ammaarah Khota, com sua obra “Attempt at suturing myself”, que pode ser traduzida como “tentativa de me suturar/curar”.

Esse é o papel da arte em nossas vidas: nos fazer questionar, pensar, refletir“.

Todos nós somos atravessados por muitas questões, memórias e histórias que às vezes nem são de nossa geração, mas estão conosco. Em um país como a Zâmbia, marcado pela colonização, é perceptível como a arte africana ganhou novos contornos a partir da independência em 1964 e se tornou uma ferramenta criativa que carrega muita consciência social, de si e do outro.

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Arte: universal e particular

Ao passear pelas galerias consigo identificar a perceptível transição ao longo do tempo de uma Zâmbia rural em uma Zâmbia urbana. Os materiais usados para explorar as potencialidades artísticas são inúmeros, a tradição de belas artes, no conceito ocidental do termo, remonta à época colonial e vem crescendo constantemente. Porém, as pinturas, as esculturas, as gravuras e desenhos africanos zambianos nos apresentam concepções fundamentais sobre o que é arte e como fazê-la.

É importante perceber que não vemos aqui um estereótipo etnocêntrico sobre a arte africana. E isso também é uma forma do ocidente reconhecer apenas fragmentos do que se considera arte africana. A caminhada por esses espaços me fez perceber os diferentes traços sócio históricos percorridos por diferentes artistas, homens e mulheres, mas que carregam uma linha tênue que trazem similaridades de forma única, que é a identidade africana zambiana.

Por meio das obras artísticas podemos ver o orgulho de serem quem são e onde estão, mas sem perderem a capacidade crítica sobre as questões da sociedade zambiana.

Vários artistas pioneiros foram esquecidos em vários momentos da história, interrompendo processos de continuidades importantes. Entre eles, podemos citar Henry Tayali, Akwila Simpasa, Agnes Buya Yombwe e Mulenga Mulenga.

Escrever a história da arte da Zâmbia é fundamental para que se reconheça, sobretudo, a importância da contribuição das mulheres para a arte zambiana durante os anos iniciais e perigosos de luta pela independência. Uma história que nos lembra o valor de olhar para nós mesmos e de onde viemos.

Passado e presente lado a lado


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Outros aspectos são a logística para obter materiais de produção de artes, tais como tintas especiais, a desvalorização da produção artística, condições econômicas de escassez e a falta de cobertura da mídia. Aspectos que acabam fazendo com que o artista não consiga difundir adequadamente suas obras no país e impedem que o artista viva da sua arte.

Passado e presente caminham lado a lado nas artes expostas nas galerias. Antigas tradições conflitam com as novas possibilidades. Dialogar com o tempo e a sabedoria ancestral requer profundo entendimento sobre quais valores devem ser mantidos e quais questões precisam, assim como o ouro, passar pelo fogo para se criar o novo caráter da arte africana zambiana moderna.

Por exemplo, o tema do trabalho é um dos mais explorados na arte da Zâmbia. A precarização, a informalidade, e por outro lado a valorização de manter-se em movimento pelo sustento, pois é o que nos traz dignidade. Há também a retratação do trabalho feminino que se duplica no cuidado e reprodução da vida. Mas, há também a contradição clássica das mulheres serem exaltadas como o útero do mundo, enquanto lidamos no dia a dia com desigualdades de gênero gritantes.

Esse é o papel da arte em nossas vidas: nos fazer questionar, pensar, refletir.

E a arte africana não é diferente. Podemos ver a crítica aos políticos que se ocupam em discutir questões não centrais para o povo no parlamento, enquanto os jovens que deveriam ser beneficiados por políticas públicas estão imersos na miséria, na luta diária contra o desemprego, a pobreza e o abuso de álcool.

Ao mesmo tempo que a arte nos alerta para que saibamos defender o que não é negociável: o gozo, a alegria de viver e a esperança rumo a um futuro digno.

*Jornalista, especialista em Teologia das Religiões Afro-Brasileiras e especialista em Estudos Latino-Americanos. É comunicadora popular e internacionalista na Zâmbia.

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Elis Almeida