Violência no Campo

Especialistas veem indícios de que ‘Invasão Zero’ é milícia rural e age fora da lei

Investigado por assassinato de indígena, grupo ruralista usa força armada para desfazer ocupações, mas nega ilegalidades
“Bora matar esses vagabundos”: indígenas Pataxó dizem ter ouvido ofensas durante ação do Invasão Zero. Foto: Alass Derivas/@derivajornalismo

Por Murilo Pajolla
Do Brasil de Fato

O grupo de fazendeiros “Invasão Zero”, investigado pelo assassinato de uma liderança indígena na Bahia, age de forma ilegal. É como quatro especialistas que acompanham profissionalmente o caso descrevem a agremiação ruralista, que se espalhou por nove estados, virou frente parlamentar no Congresso e prega que fazendeiros “combatam o MST”.

Os entrevistados ressaltaram que é preciso aguardar a conclusão das investigações, mas todos veem indícios claros de que o “Invasão Zero” funciona como uma milícia rural que, herdeira da jagunçagem, reúne fazendeiros por meio de grupos de WhatsApp para impedir ocupações de terras. Tudo, conforme relatos, com uso de armas de fogo e do apoio de policiais militares. 

As opiniões convergentes a respeito do “Invasão Zero” são de Aléssia Tuxá, defensora pública da Bahia; Gabriel Cesar, defensor público da União na Bahia; Julio Araujo, procurador da República no Rio de Janeiro; e Pedro Diamantino, advogado popular em Salvador (BA) e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Os quatro profissionais do Direito público disseram que, em conflitos pela posse da terra, a única alternativa legal disponível aos proprietários é acionar a polícia e entrar com uma ação judicial de reintegração de posse. Não há lei que justifique o uso da força para repelir ocupações, dizem os entrevistados, desde que elas sejam feitas no contexto da luta política coletiva pela terra – e não para benefício econômico privado.  

O “Invasão Zero” foi criado na Bahia em 2023 em resposta às ocupações do MST e de indígenas, devido à alta desigualdade fundiária do estado. Em uma das “desocupações” do “Invasão Zero”, Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, foi assassinada e outros indígenas foram espancados e baleados. Em 20 anos, mais de 30 indígenas foram assassinados em situações semelhantes na região.

Dida Souza, fundadora do ‘Invasão Zero’, explicou como age o grupo; especialistas contestam fundamentação jurídica dada pelos ruralistas – Reprodução/Twitter/Dida Souza

“A situação nos preocupa e por isso nós vamos acompanhar e apurar em âmbito nacional, tentar identificar as características dessa movimentação, ainda mais diante de um processo de fortalecimento, de uso de armas e organização aparentemente até paramilitar, com viés fortemente antidemocrático”, disse o procurador do MPF Julio Araújo.

Maria de Fátima Muniz de Andrade, a Nega Pataxó, é a 31ª indígena a ser assassinada dentro da TI Caramuru-Paraguassu desde 2012. Foto: Comunicação – Teia dos Povos

Por que o “Invasão Zero” se considera legal

Ao Brasil de Fato, um dos líderes do “Invasão Zero”, Luiz Uaquim, lamentou o assassinato da indígena, mas argumentou ser legal que proprietários usem a força para desfazer ocupações sem decisão judicial de reintegração de posse. Para justificar as ações do grupo, ele citou um dispositivo do Código Civil chamado desforço imediato, que significa agir imediatamente para evitar a perda da posse de um bem. 

A justificativa jurídica não convenceu os quatro especialistas ouvidos pela reportagem. Segundo todos eles, as ações do grupo ruralista não se enquadram no desforço imediato e se assemelham mais a um grupo paramilitar financiado por grandes latifundiários, determinados a dispor de forma irrestrita do direito à propriedade, sem qualquer intermediação das instituições do Estado e das instâncias judiciais.

“No caso da morte de Nega Pataxó, nós chegamos a ver algumas mensagens [de fazendeiros em grupos virtuais do Invasão Zero] que vão no seguinte sentido: ‘se o Estado brasileiro não garante a nossa propriedade, a gente garante. Se o Estado brasileiro vai ficar nessa palhaçada de dar terra para a indígena, a gente vai resolver isso’. Eles estão previamente organizados para serem os ‘ordeiros do Estado’. Tudo indica que é um grupo que age à margem da lei”, constatou Aléssia Tuxá, da DPE-BA. 

Entenda o desforço imediato

O desforço imediato, trazido pelo Código Civil e usado como salvaguarda jurídica pelo “Invasão Zero”, é definido pelos especialistas como uma espécie de legítima defesa da posse. São pré-requisitos para o desforço que pessoa lesada aja com sua própria força, de forma moderada e imediatamente após a perda da posse. 

Essas pré-condições, argumentam os especialistas, não estão presentes nas ações do “Invasão Zero”. Ao contrário, elas são marcadas pelo planejamento prévio em grupos virtuais, pelo uso desproporcional da força, e pela participação de terceiros, com multidões de fazendeiros e policiais à paisana vindos de outras regiões. Não à toa, as vítimas são quase sempre indígenas – quase nunca os ruralistas. 

A própria fundadora e coordenadora do “Invasão Zero”, a empresária e advogada Dida Souza, já explicou nas redes sociais como o grupo se planeja. 

“Nós criamos o núcleo maior e depois o dividimos por cidades. Aí tem oito cidades num núcleo, mais seis cidades em outro… Todo mundo fica ligado um no outro. Se ocorre uma invasão nas suas terras, imediatamente você coloca [a informação] dentro do grupo [virtual] que você participa. Manda sua localização, diz o que está acontecendo, quem está indo, quantos são. E todo mundo dos núcleos ao redor se une e vai tirar o invasor”, explicou a idealizadora do grupo ruralista.

Aléssia Tuxá avalia o funcionamento do “Invasão Zero”: “Ou seja, não aconteceu o desforço imediato. Eles não estavam lá protegendo o que era deles. Estavam protestando uma crença de que, na ausência do Estado, eles podem assumir a função de segurança, podem ser garantidores da propriedade deles ou de terceiros”, disse a defensora pública da Bahia. 

O procurador Julio Araújo reforçou: “Esse tipo de atuação [do “Invasão Zero”] não se enquadra na ideia de desforço imediato, que é uma previsão muito excepcional, muito específica. Ela demanda uma reação de um suposto proprietário num contexto imediato à eventual ação invasiva de sua propriedade”, esclareceu. 
    
“O desforço é, portanto, uma circunstância muito própria, muito específica que o Código Civil estabelece para autorizar que o proprietário atue, e não se confunde com qualquer tipo de atuação, organização, mobilização, ainda mais armada, com finalidade de enfrentar uma situação que se entende ilícita”, prosseguiu o integrante do Ministério Público Federal (MPF-RJ). 

Gabriel Cesar, defensor pública da União na Bahia, complementou: “Se fosse desforço imediato, não poderia ir além do indispensável à manutenção ou restituição da posse. O que evidentemente não foi observado no caso da Morte de Nega Pataxó. Nessa e outras situações, foram atos de extrema violência, tanto que ocasionaram lesões gravíssimas e um assassinato”.

Desforço imediato não se aplica à luta coletiva pela terra, diz especialista 

O caráter antidemocrático do “Invasão Zero” também é uma constatação unânime entre os especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato. Segundo eles, há uma clara transgressão ao Estado Democrático de Direito, que, no Brasil, reconhece a luta coletiva pela terra como um direito.  

“Desde os anos 90, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera as ocupações de terra por movimentos sociais como ação coletiva legítima, não configurando esbulho. Essa interpretação se aplica à reforma agrária, urbana, e à proteção de territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais”, lembrou o docente. 

Enterro de Nega Pataxó foi acompanhado pela ministra dos Povos Indígenas Sonia Guajajara. Foto: Leo Otero/Ministério dos Povos Indígenas

“O desforço incontinente é um instituto praticamente em desuso. O uso desse instituto obsoleto [desforço imediato] em contexto de conflito coletivo pela posse da terra é um desvio e um abuso”, disse Pedro Diamantino, professor de Direito da UFBA. “Não existe autorização legal para que uma pessoa possa violentar a outra”, completou o Diamantino, que também é advogado popular. 

O Defensor Público da União, Gabriel Cesar, também afirmou que o desforço imediato não se aplica à luta coletiva no campo. E reforçou que o caminho legal de proprietários que se sintam lesados é acionar a Justiça. 

“Então a gente já tinha uma certa preocupação e agora ainda mais. Porque esse grupo se constitui de uma forma, vamos dizer assim, mais explícita, com um nome, com até representação parlamentar de nome semelhante. E a situação é muito preocupante que, em nosso entender, a gente considera que há uma evidente finalidade criminosa na Constituição desse grupo”, disse o integrante da Defensoria Pública da União (DPU). 

Íntegra da posição do Invasão Zero  

Em resposta, o “Invasão Zero” enviou uma nota assinada por seu “Comitê Jurídico”, mas não respondeu quem são os integrantes. Veja na íntegra:

“Não existe, no ordenamento jurídico nacional, a figura de lei em desuso. Uma lei só deixa de ser válida a partir do momento em que ela for revogada. Dessa forma, o comitê jurídico do Movimento Invasão Zero reafirma a validade e a perenidade da Lei do Desforço Imediato. 

De acordo com o Código Civil brasileiro, em seu artigo 1.210, §1º, do Código Civil (art. 502, do Código Civil revogado): “o possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse”.

De mais a mais, ressalta-se novamente que a ação do Movimento Invasão Zero se deu com o devido acompanhamento da Polícia Militar da Bahia; que os envolvidos nos disparos que vitimaram a líder indígena não fazem parte do Movimento; que a Fazenda foi invadida por um grupo de pessoas armadas e encapuzadas e que o primeiro tiro partiu dos invasores.

Logo, dizer que uma lei em vigor não pode ser levada em conta por estar em “desuso” é uma estratégia de narrativa para reavivar um assunto que está sendo devidamente investigado pelas autoridades competentes. 

Bem como não está em desuso investigar quem financiou o grupo de invasores fortemente armado, quem é o líder que o chefiou e quem são os seus integrantes. Uma ação fora de qualquer procedimento legal e humano. Fatos que a sociedade cobra e espera que sejam devidamente elucidados.

O Movimento Invasão Zero reitera que lamenta a morte da indígena Nega Pataxó e se coloca à disposição para quaisquer esclarecimentos”. 

Edição: Thalita Pires/ Brasil de Fato