Lutas 8M

No campo, nas águas, nas florestas e nas cidades: quais as lutas das mulheres?

Feminicídio aumenta e 8M reivindica acesso à terra e moradia como inseparável da luta pelo fim da violência de gênero
8M: protestos estão confirmados em cidades de todas as regiões do Brasil. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Por Gabriela Moncau
Do Brasil de Fato | São Paulo (SP)

Uma quebradeira de coco babaçu do Maranhão. Uma pescadora quilombola do recôncavo baiano. Uma camponesa do Mato Grosso. Uma sem-teto da maior metrópole do país. A relação entre suas lutas, expressa neste 8 de março, dia internacional de luta das mulheres é, segundo elas, a defesa da autonomia de seus corpos conectada com a luta para conquistar ou defender seus territórios. 

O 8M chega, neste ano de 2024, com um índice de feminicídio recorde. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgada nesta quinta-feira (7) mostra que, em linha crescente nos últimos nove anos, apenas em 2023 as que foram mortas pelo fato de serem mulheres chegaram a 10.655.  

“As mulheres são defensoras da vida. Eu não conheço florestas devastadas por mulheres. Quando vem a destruição, aqui são as primeiras que sofrem. São as que vivem do babaçu. Quando vem o despejo da comunidade, são elas as que seguram a barra com os filhos”, descreve a quebradeira de coco e quilombola Maria Nice Costa Machado, do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS). 

“Por isso temos que nos organizar, temos que ter força, nos unir”, defende Dona Nice, como é conhecida. Ela é uma das 1,3 milhão de pessoas que, segundo o censo do IBGE, são quilombolas no Brasil. Destas, quase 90% vivem em comunidades que ainda não foram tituladas.  

“Essa é a nossa história, nosso desafio, mas também o nosso conhecimento. Mais que ninguém, precisamos do nosso lugar para sobreviver”, acrescenta.  

Nenhuma a menos 

Lucineia Freitas, nascida em uma família de camponeses no Mato Grosso, chegou ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) há cerca de duas décadas e é hoje da direção nacional do Setor de Gênero. O aumento da violência no campo, afirma, recai de forma específica nas mulheres e é, para o movimento, uma das grandes denúncias deste 8M. 

Dados parciais de conflitos no campo brasileiro sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que no primeiro semestre de 2023 houve 973 casos de conflitos no campo, representando um aumento de 8% em relação ao mesmo período do ano anterior. São contabilizados, por exemplo, expulsões, destruição de roças e casas, crimes de grilagem e pistolagem.

No que diz respeito às mulheres do campo, houve também um aumento da violência. Os registros subiram de 94 em 2022 para 107 em 2023. O relatório destaca, em especial, os estupros de 30 adolescentes Yanomami em fevereiro do ano passado. Já as vítimas de assassinatos são em sua maioria homens indígenas, seguidos de trabalhadores sem-terra. 

“Por mais que as mulheres não sejam o maior número de pessoas assassinadas no campo, pensamos a violência de modo amplo, incluindo expulsão da terra, tortura, ameaças”, contextualiza Lucineia. “E quando vêm os assassinatos, são elas as que sobrem com os filhos, a baixa assistência estatal e em meio ao conflito, que permanece”, descreve.  

A geografia muda, mas o discurso é semelhante ao de Débora Lima, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em São Paulo. “Aqui a gente está vivendo uma guerra imposta pelo governador Tarcísio de Freitas [Republicanos]”, menciona, se referindo à Operação Escudo na Baixada Santista.  

A investida policial já matou, desde o último 7 de fevereiro, 39 pessoas. Todos homens, em sua maioria negros. Em um protesto contra a violência policial feito por familiares das vítimas na Vila dos Pescadores no último 3 de março, todas as manifestantes eram mulheres.  


Moradoras da Baixada Santista denunciam viver em um território que está sob uma “operação chacina”. Foto: Gabriela Moncau

“Quem morre são os filhos das mães da periferia, as mulheres negras. Isso tem a ver com o nosso direito ao território, a viver em paz, a ter nossos filhos livremente”, avalia Débora. Seu filho mais velho, um menino negro, tem 14 anos. “A gente fica com medo. Não deixo ele sair com o celular, por exemplo, porque sei que pode ser facilmente criminalizado. Até provar que o aparelho é dele, vai saber”, se preocupa. 

O direito de ser e de não ser mãe 

As opções reprodutivas para mulheres periféricas, diz Lima, são limitadas. Seja para aquelas que decidem ser mães, seja para as que não querem e não conseguem interromper a gestação de forma segura. 

“Os homens podem abortar. Quantos são aqueles que, quando sabem que a mulher está grávida, deixam ela sozinha?”, comenta Débora – ela mesma uma mãe solo de quatro filhos. “Muitas vezes as mulheres engravidam e, sem o direito de abortar, procuram a clandestinidade. Isso está muito presente na periferia e, sem acessar clínicas de qualidade, a sentença é de morte. Quem morre são, principalmente, as manas pretas”, diz. 

A cada ano cerca de 200 mulheres morrem no Brasil em decorrência de aborto inseguro, segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021. Ou seja, uma mulher a cada 43 horas. A despeito de ser um tabu, o Ministério da Saúde atesta que 73% das jovens entre 18 e 24 anos que engravidam consideram interromper a gravidez. As que mais morrem ou são criminalizadas são mulheres jovens, pobres, negras, indígenas e das regiões Norte e Nordeste do país.  

A entrevista com Débora, feita por vídeo, foi interrompida por um choro de bebê. “Um minuto”, pediu. Chamou uma menina, que pegou no colo a irmãzinha de apenas 10 dias – “leva para a sua avó”.  

Se de modo geral os trabalhos de cuidado ficam a cargo de mulheres e é a rede entre elas que faz com que sejam possíveis, na visão de Débora é a valorização destes trabalhos a chave para que um dia sejam divididos de forma igualitária. “Isso ainda não acontece. Quando o trabalho de cuidado for valorizado, os homens vão entender que também tem essa responsabilidade”, opina.  

Débora chegou ao MTST por necessidade. Há 12 anos, com um filho pequeno, trabalhava como cozinheira e já não conseguia permanecer na coabitação familiar onde vivia. Quando chegou na ocupação do MTST, se deu conta que as mulheres são maioria no movimento de moradia. 

“A preocupação de ter um lar, dar um ambiente sadio e estabilidade para as crianças é mais presente entre as mulheres”, analisa. “A luta por moradia é também uma busca por autonomia. Muitas são casadas e vivem em situação de dependência porque é o marido que paga o aluguel. Aí chegam nas ocupações como forma de romper um ciclo de violência“, destaca Lima.   

Do déficit habitacional brasileiro, que em 2019 correspondia a 5,9 milhões de casas consideradas inadequadas para se viver, 60% são ocupadas por mulheres. 

Entre os pontos que ligam as pautas dos movimentos urbanos e rurais, Lucineia Freitas elenca o combate à fome como central. Segundo a Rede Penssan, a insegurança alimentar atinge mais as famílias de mulheres negras. Em domicílios chefiados por pessoas autodeclaradas pardas e pretas, 20,6% sofriam com a fome. Já no caso de pessoas brancas, o índice era de 10,6%. 

“A gente não enfrentou ainda a fome“, resume ela. “E neste último ano, com a crise climática houve as cheias no Sul, as secas no Nordeste, impactando muito a produção de alimentos”, alerta.  

A defesa do corpo e do território 

“Esta relação entre corpo e território é uma construção que vem do feminismo comunitário”, diz a dirigente do MST. “Existe uma interrelação em pensar a natureza e o gênero, não por uma essencialidade da mulher, mas pelo modo de produção do capital que agride, de forma contínua, esses dois corpos. Nem as mulheres nem os territórios devem ser dominados”, defende.  

Para a pescadora, marisqueira e quilombola Elionice Conceição Sacramento, a despeito de serem invisibilizadas, as mulheres são maioria em retomadas, assembleias e mobilizações. Isso tem a ver, em sua visão, com o “entendimento do território como extensão do próprio corpo”.  

Elionice sempre foi uma “alma inquieta”, como se define. “Mas alguns momentos na minha vida foram desses que você não tem o direito de se ausentar da luta”, explica. Ao que logo complementa: “Quando digo alguns, é por generosidade”. 

Ela estava no ensino médio quando pescadores da sua comunidade, o quilombo Conceição de Salinas, foram encontrados mortos em tanques das empresas de criação de camarão em cativeiro. “Eles estavam em processos de rebeldia, sem se conformar com a carcinicultura tomando o território, impedindo que o camarão da pesca artesanal pudesse competir em valores, atacando profundamente nossa tradição e forma de vida”, lembra. 

“Fomos entendendo que fazer a luta no território de forma isolada estava muito perigoso. Então nos aproximamos de outras comunidades e, nesse meio tempo, a gente começa a fazer uma discussão mais específica de gênero”, conta Elionice, que hoje integra a Articulação das Mulheres Pescadoras (AMP) e a Teia dos Povos. 

De lá para cá, participou de lutas coletivas contra investidas do complexo industrial naval do Estaleiro Enseada Paraguassu, da privatização da Ilha do Meio e de empreendimentos imobiliários, como o Parque das Margaridas.  

A despeito das tentativas de criminalização e ameaças de morte, Elionice nunca se mudou da sua comunidade, que tem cerca de 300 anos. “Hoje a prefeitura de Salinas da Margarida e o empreendimento solicitaram na Justiça a nulidade da nossa certidão quilombola”, conta. Enquanto isso, a comunidade aguarda a finalização dos estudos antropológicos para avançar na titulação do território.  

A 1,5 mil quilômetros dali, na cidade maranhense de Penalva, dona Nice também espera a demarcação do território quilombola onde vive, em Enseada da Mata. Sua comunidade, a despeito do nome Bairro Novo, tem cerca de um século.  

Foi por meio da Igreja Católica, “ainda bem criança”, que dona Nice começou a se organizar. “Eu não canto bonito, mas gostava de ir lá cantar”, relata. Já se destacava na oratória, era chamada a ir na frente falar algumas palavras e com o tempo conheceu outras comunidades.  

“Você sabe que nesse tempo a mulher não tinha documento, ela era considerada dependente de pai, de marido e de filho. Então uma das primeiras lutas que me envolvi, nos anos 1980, para que as mulheres se libertassem foi essa”, conta dona Nice.  

“Eu sentia, pela minha mãe, pela minha avó. O jeito de que elas eram tratadas, só para trabalhar, só para ir para a roça, só para parir. E aí eu já ia me inteirando nisso”, relata. A partir dos anos 2000, dona Nice faz parte da criação do Movimento de Mulheres Quebradeiras de Coco de quatro estados.  

“Quando se trabalha para fortalecer a vida, você vem de baixo para cima. Essa é a base”, afirma. “E da base você vai começar das águas, da terra, da floresta em pé, das nossas comunidades”, defende dona Nice: “Se não for assim, a gente não consegue vencer”, garante.  

Se referindo a um grito de ordem comum entre movimentos populares, “da luta do povo, ninguém se cansa”, Elionice pondera que “às vezes a gente cansa, porque a gente é humano. E quando na nossa humanidade a gente cansa, essas tantas mulheres têm estado presentes para partilhar conosco”.

“A gente só teve êxito na luta pela independência do Brasil na Bahia, em Palmares e outras experiências quando foi possível fazer uma articulação entre povos”, ressalta Elionice, ao pensar nas conexões entre as mulheres das águas, floresta, campo e cidades. “Para fazer enfrentamento ao capital, ao latifúndio, a gente precisa estar juntas”, diz: “A gente tem percebido que a aliança que foi feita lá atrás, entre as nossas ancestrais, se renova entre nós”.  

Edição: Thalita Pires